Se não existissem alertas de sobra em relação à crescente agressividade do clima, as históricas cheias do Paquistão ilustram como a vida pode tornar-se impossível. Depois de um terço do país ter ficado submerso, e enquanto a água não recua na totalidade, os números da calamidade não param de agravar-se — dos mortos ao surto de doenças
A cerca de 4000 quilómetros da estância egípcia de Sharm El Sheikh, onde decorre a 27ª sessão da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), o Paquistão é uma tragédia a céu aberto, reveladora da vulnerabilidade do planeta face à crescente agressividade do clima.
“Durante 40 dias e 40 noites, caiu-nos em cima um dilúvio bíblico, destruindo séculos de registos climáticos, desafiando tudo o que sabíamos sobre desastres e como geri-los”, disse em setembro passado o primeiro-ministro paquistanês, num emotivo discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas.
Shehbaz Sharif referia-se às cheias inéditas que submergiram um terço do país desde meados de junho. A calamidade resultou da combinação entre chuvas da tradicional época das monções, particularmente fortes em 2022, e o efeito das alterações climáticas, que originaram um rápido degelo dos glaciares das montanhas do norte. A água que daí resultou engordou os caudais dos rios.
Com mais de 220 milhões de habitantes, o Paquistão contribui menos de 1% para as emissões globais de dióxido de carbono.
OS CINCO MAIORES POLUENTES
(% das emissões globais)
- CHINA: 29,18%
- ESTADOS UNIDOS: 14,02%
- ÍNDIA: 7,09%
- RÚSSIA: 4,65%
- JAPÃO: 3,47%
O Paquistão surge na 31ª posição, com 0,50% das emissões globais (e Portugal em 60º, com 0,14%). O Paquistão é, porém, dos países que pagam um preço mais pela desregulação climática. Cinco meses após o início das chuvas torrenciais, os números da tragédia não param de aumentar. Cinco exemplos.
1739
É o número de mortos contabilizados, desde 14 de junho, pela Autoridade Nacional de Gestão de Desastres, do Paquistão. Há ainda 12.867 feridos registados, decorrentes de incidentes relativos à queda das chuvas das monções ou a inundações provocadas pelo transbordo de rios.
A última atualização, tornada pública a 4 de novembro, detalha que, entre os mortos, há 353 mulheres e 647 crianças. Ou seja, mais de um terço das vítimas mortais são crianças.
A província de Sindh, no sul, é a mais atingida, com um total de 799 mortos. Esta região é atravessada de norte a sul pelo rio Indo — o mais comprido e mais largo do Paquistão —, cujo extravase afetou quase 15 milhões de pessoas.
33.046.329
É a quantidade de pessoas diretamente afetadas pelas cheias. Perto de metade (14.563.770) vivem na província de Sindh e quase um quarto (9.182.616) no vizinho Baloquistão.
Para se ter noção da área alagada atente-se na dimensão do Paquistão (796.095 km²) e de Portugal (92.212 km²). Se ficou alagado um terço do território paquistanês, isso corresponde sensivelmente ao triplo do mapa português.
Dos 193 Estados-membros das Nações Unidas, 119 têm uma área terrestre inferior à extensão das terras paquistanesas inundadas.
A concentração de água parada expõe populações inteiras a ameaças acrescidas à saúde. Num relatório de 28 de outubro, o Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) alertou para o aumento de casos de malária “por causa da água parada, enquanto a incidência de diarreia é pelo menos cinco vezes maior do que o normal”.
Já se detetou um surto de dengue crescente, “com 74% dos casos maioritariamente reportados em áreas afetadas pelas cheias”. A destruição de casas e infraestruturas fez aumentar o velho hábito de defecar a céu aberto, com todas as consequências que isso traz ao nível de higiene, saúde pública e mesmo segurança.
2.288.481
É a quantidade de casas destruídas pelas inundações. As autoridades nacionais detetaram ainda 439 pontes danificadas, bem como 13.115 quilómetros de estrada intransitáveis.
As casas, em particular, colocaram milhões de paquistaneses de mão estendida na fila da assistência humanitária. Localidades inteiras passaram a viver em tendas, muitas delas doadas ao abrigo de mecanismos de ajuda internacional. Em Bholari, por exemplo, nasceu “a cidade de tendas Recep Tayyip Erdogan”, disponibilizada pela Turquia e batizada com o nome do Presidente do país.
9.400.000
São os acres de área de cultivo que ficaram encharcados (1 acre = 0,40 hectares).
Neste país que é o quinto produtor mundial de algodão, as cheias danificaram ou destruíram 40% da colheita anual dessa fibra, segundo uma estimativa da Iniciativa Better Cotton.
Esta organização, que promove boas práticas ao nível do cultivo de algodão em 21 países, não prevê “escassez de oferta este ano, embora os impactos provavelmente perdurem no próximo ano”.
No impacto económico desta calamidade, há ainda o registo de 1.164.270 cabeças de gado perdidas nas enxurradas de água e lama, privando milhões de pessoas desse meio de subsistência.
27.000
É a quantidade de escolas destruídas ou danificadas, que privam mais de dois milhões de crianças de irem à escola. Nas zonas mais atingidas pela intempérie, alguns estabelecimentos de ensino ficaram apenas com o telhado à tona, esperando-se que sejam precisos meses até que as águas recuem totalmente.
Para ajudar as crianças deslocadas a lidarem com os traumas provocados pela experiência, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) instalou 500 Centros de Aprendizagem Temporários, em colaboração com os departamentos educativos provinciais.
Estes centros “oferecem às crianças uma oportunidade de se encontrarem com outras crianças num ambiente seguro e protegido, onde podem brincar, aprender e ser crianças novamente”, descreve a UNICEF. Além de constituírem mais de um terço das vítimas mortais, estima-se que 16 milhões de crianças paquistanesas tenham a vida voltada do avesso por causa das inundações.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui