‘Kafala’, o sistema laboral do Catar que faz do sonho pesadelo

As críticas ao Catar, onde o Mundial arranca no domingo, decorrem de uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante

A esmagadora maioria dos migrantes abrangidos pelo sistema kafala entregam o seu passaporte ao seu empregador MIGRANT-RIGHTS.ORG

A polémica em torno dos direitos dos migrantes no Catar capturou um evento talhado para deslumbrar. Pelo exotismo de ser o primeiro Mundial a decorrer no Médio Oriente e por projetar um pequeno Estado com uma riqueza infinita, que recentemente lhe permitiu resistir a três anos e meio de bloqueio ao território aplicado por quatro países vizinhos.

Na base deste portento estão leis, práticas e costumes laborais que transformam os trabalhadores estrangeiros em ‘escravos dos tempos modernos’ — o sistema kafala. Em árabe, kafala significa ‘garantia’, a mesma que, em teoria, um empregador dá ao empregado quando o contrata.

“No centro deste sistema está uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante, o que a torna particularmente problemática”, explica ao Expresso Ryszard Cholewinski, responsável do gabinete para os países árabes da Organização Internacional do Trabalho.

“A entrada do migrante no país está vinculada a um empregador específico, através de uma autorização de trabalho e residência; a renovação da permanência no país é da responsabilidade do empregador, sendo que a não-renovação da autorização de residência coloca o trabalhador em situação irregular, sujeito a prisão, detenção e deportação; a rescisão do contrato de trabalho requer a aprovação do empregador; mudar de um empregador para outro requer a aprovação do primeiro; a saída do país tem de ter aprovação do empregador.”

Catar lidera nas reformas

O sistema kafala é aplicado nos seis países ribeirinhos do golfo Pérsico, mas também em países árabes, como Jordânia, Líbano e Iraque, com populações significativas de migrantes. Apesar de estar na mira das críticas, o Catar é um dos países que mais reformas tem realizado.

O sistema kafala está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os habitantes nativos

Segundo a Organização Internacional para as Migrações, em 2011, no Catar, 92% dos ‘colarinhos azuis’ (que realizam trabalhos manuais, como trabalhadores da construção civil ou motoristas) tinham entregado o seu passaporte ao empregador. Fruto de pressões regulatórias, em 2014 a percentagem tinha caído 18 pontos. Paralelamente, a quantidade de trabalhadores que dizia conservar consigo o passaporte subiu de 8% para 22%. Hoje, reter o passaporte do trabalhador é ilegal, exceto se tal for solicitado por escrito pelo próprio.

Que querem os nativos?

“O Catar está mais avançado em termos de reformas do sistema kafala e começou a desmantelar os aspetos mais problemáticos do mesmo”, diz Cholewinski. “As reformas incluem a abolição da autorização de saída e do Certificado de Não-Objeção”, ou seja, os migrantes já não precisam do ‘sim’ dos patrões para sair do país ou mudar de emprego.

“Os imigrantes sempre tiveram um papel imenso nas monarquias do golfo, com origem na indústria das pérolas, no século XIX, que impulsionou a imigração em massa a partir do Corno de África”, explica ao Expresso David B. Roberts, autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City State”. “Hoje, o sistema também está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os locais. Nativos e líderes querem ter um mecanismo de controlo de quem está no país.”

Cerca de 90% dos 2,8 milhões de habitantes do emirado são estrangeiros, sobretudo da Índia, Bangladexe e Nepal. “Os catarenses estão em desvantagem no seu próprio país, nas empresas, fábricas e casas.”

À parte a pressão interna­cional para que o sistema acabe, essa terá de ser uma vontade local. “O Catar é um país autocrático”, conclui o professor do King’s College de Londres. “E, mesmo em autocracias, os líderes precisam de perceber até que ponto podem insistir em ideias e políticas que os locais não querem. O sistema kafala é um tema quente no Catar. Os locais não querem que seja diluído e até gostariam que fosse alargado.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui

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