17 respostas para 2023: da guerra na Ucrânia aos protestos na China e no Irão, passando por epidemias e acordos globais

Podemos prever o futuro? Provavelmente não, tal como não escapamos a apostar no desenvolvimento dos temas que acompanhamos ao longo do ano. Aqui ficam as respostas da equipa do Internacional às perguntas que colocaram por si, leitor

1 A Guerra na Ucrânia vai acabar?
Sem vontade de procurar uma solução diplomática, a guerra só pode terminar no terreno com uma conquista suficientemente esmagadora (ou, no caso da Ucrânia, uma reconquista) que obrigue o outro lado a capitular ou a aceitar negociações de paz. O Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, diz que a paz pressupõe que a Rússia entregue a Kiev todos os territórios anexados desde 2014, o que é pouco realista. Do lado russo continuam os ultimatos e ameaças. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, disse que a Ucrânia tem de completar o processo de “desnazificação e desmilitarização”, ou “o assunto será resolvido pelo exército russo”.

2 A próxima COP (28) conseguirá um acordo de redução dos combustíveis fósseis?
O elefante no meio da sala das conferências globais das Nações Unidas para o Clima permanece a ausência de acordo para a redução das emissões de gases com efeito de estufa de modo a impedir que o aumento da temperatura média do planeta ultrapasse os 1,5º, o que já é uma irrealidade em si. A vitória da COP27 foi o reconhecimento das “perdas e danos” e “falar-se” em indemnizações para os países mais prejudicados pelas ondas de calor prolongadas, secas agudas prolongadas, subida do nível da água do mar, acidificação dos oceanos, incêndios selvagens, inundações bíblicas e extinção de espécies no chamado Sul global. O lóbi dos combustíveis fósseis não perdeu ainda terreno.

3 Lula da Silva vai governar o Brasil à esquerda?
O homem que, pela terceira vez, toma posse como Presidente a 1 de janeiro tem de privilegiar as políticas sociais e ambientais para cumprir as promessas feitas na campanha eleitoral. O grande desafio do novo Governo é conseguir atribuir verbas para a Cultura, Educação, Saúde e Ambiente – sobretudo no combate ao desmatamento da Amazónia – e manter o equilíbrio das contas públicas para evitar uma escalada inflacionista. A resposta executiva passa, em boa parte, pelo trabalho dos futuros titulares da pasta da Fazenda, Fernando Haddad, e da pasta do Planeamento, Simone Tebet.

4 Cyril Ramaphosa é destituído da presidência da África do Sul?
Em 13 de dezembro, Cyril Ramaphosa sobreviveu a um voto de destituição na Assembleia Nacional pedido pelos partidos da oposição. O Presidente da República e do ANC, que sucedeu a Jacob Zuma após escândalos de corrupção sem precedentes e captura do Estado, prometeu voltar a pôr o país nos eixos. Porém viu-se envolvido num processo cujas acusações combate ainda em tribunal, o qual pode vir a acusar Ramaphosa de “má conduta e violação da Constituição”. Ainda que tenha vencido até agora, o ANC, tem perdido eleitores em cada eleição desde 1994. Por enquanto, Ramaphosa conta com o apoio do ANC para limpar o seu nome sem perder a credibilidade política. Até quando, se 2023 é ano de eleições gerais?

5 Como vai acabar a revolta no Irão?
Os protestos já contam mais de 100 dias e as imagens que nos chegam do Irão mostram que as pessoas continuam a acorrer às ruas apesar dos castigos aplicados serem cada vez mais severos. Pelo menos 506 pessoas já perderam a vida e outras 40 aguardam execução, segundo uma investigação da CNN. Sem liderança coesa e com este nível de repressão, tortura, prisão e morte é pouco provável que a liderança dos aiatolas venha a ser derrubada, porém os iranianos dizem que algumas mudanças já são visíveis nas ruas. Um exemplo é a recusa de muitas mulheres em usar o lenço sobre os cabelos.

6 O regime chinês vai ceder aos protestos?
Semanas depois de o Presidente Xi Jinping assumir um terceiro mandato na liderança do Partido Comunista da China emergiram protestos em várias cidades do país contra a política de ‘zero casos’ de covid-19. Foram a maior demonstração pública de descontentamento desde o massacre de Tiananmen em 1989. A ida à rua parece ter resultado. Várias medidas foram relaxadas no seu seguimento e demonstrou a capacidade da população em manifestar-se apesar da censura existente no país. No entanto, é incerto quais são as políticas estatais que podem vir a gerar oposição com esta capacidade de mobilização.

7 As pandemias e vírus assustadores vieram para ficar?
O risco de novas epidemias é certo e os especialistas alertam os Estados para que tenham respostas enérgicas. Tal como os tsunamis, a covid-19 convenceu da necessidade de sistemas de alerta que permitam detetar os problemas de forma a controlá-los. Antes da Sars-cov-2, a década de 1980 conheceu a sida. Porém, foi “a partir do ano 2000 que se assistiu a uma série de acontecimentos que traduzir a emergência inesperada de fenómenos epidémicos de natureza zoonótica”, como lembra Francisco George, ex-diretor-geral de Saúde de 2005 a 2017, referindo-se a doenças que têm origem em agentes infecciosos que têm animais como reservatório.

8 Erdogan perde a presidência da Turquia?
É possível. Porém não se sabe ainda se é provável, uma vez que a oposição, grande parte dela unida com o único propósito de derrotar Erdogan, ainda não apresentou candidato. As sondagens, contra um opositor desconhecido, dão ao incumbente cerca de 34% das intenções de voto, o mesmo valor atribuído ao seu partido, Justiça e Desenvolvimento (AKP), nas eleições parlamentares, também em 2023, o ano do centenário do país. Não chega para a vitória. O declínio da economia vai ser o tema principal da campanha. Resta saber a quem vai o povo atribuir a culpa.

9 A Itália de Giorgia Meloni vai continuar nas boas graças de Bruxelas?
Giorgia Meloni – líder do partido de extrema-direita Irmãos de Itália – foi eleita primeira-ministra de Itália em setembro. A postura de euroceticismo gerou preocupação, porém Meloni tem procurado acalmar a esfera internacional assumindo um discurso mais moderado. Perante o Parlamento repudiou o fascismo e mostrou oposição a “qualquer forma de racismo”; em viagem a Bruxelas afirmou querer uma defesa dos interesses nacionais “dentro da dimensão Europeia”. A reação foi positiva, com a Presidente da Comissão Europeia a agradecer Meloni pelo “forte sinal” ao escolher Bruxelas como a primeira viagem enquanto líder do governo italiano.

10 A Índia vai continuar a comprar petróleo à Rússia?
É provável. A Rússia tornou-se o principal fornecedor de petróleo da Índia em novembro, com importações a chegarem aos 908 mil barris por dia. As declarações de figuras do governo indiano não sugerem mudanças de rumo. Em dezembro, o ministro dos Negócios Estrangeiros deu a entender que se a Europa pode priorizar as suas necessidades energéticas, não deve pedir à Índia para nao priorizar as suas também. Em outubro, a Assembleia Geral das Nações Unidas votou numa resolução a condenar os referendos ilegais de anexação realizados pela Rússia em territórios da Ucrânia. A Índia foi um dos 35 países a absterem-se.

11 O regime talibã vai ser reconhecido internacionalmente?
Não é de esperar. Os talibãs estão há mais de um ano no poder, o tempo suficiente para que algum país os reconhecesse como governo legítimo. Na década de 1990, quando governaram pela primeira vez, foram reconhecidos por Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Paquistão. Decisões como a recente proibição do acesso das mulheres afegãs às universidades tornam embaraçoso o reconhecimento do regime. A medida foi criticada de forma generalizada, inclusive por países muçulmanos: a Arábia Saudita expressou “espanto e desapontamento” e a Turquia considerou a decisão “nem islâmica nem humana”.

12 O conflito no Nagorno-Karabakh voltará a escalar?
É inevitável. Não há um processo de paz digno desse nome neste conflito que opõe dois países tornados independentes após o desmembramento da União Soviética: a cristã Arménia e o muçulmano Azerbaijão. De um lado e do outro, há apoios importantes que conferem a este conflito, que se arrasta desde finais da década de 1980, uma dimensão geopolítica: a Rússia apoia os arménios e a Turquia os azeris. Esta disputa pelo enclave de Nagorno-Karabakh, no sul do Cáucaso, que oscila entre períodos de guerra aberta e outros de tensão latente, ressente-se muito do estado da relação entre estes dois países.

13 O embargo dos EUA a Cuba vai terminar?
Não é provável, ainda que as razões que sustentam o bloqueio económico à ilha sejam cada vez mais indefensáveis. O embargo dura há décadas basicamente por uma questão de política interna dos EUA. É ponto de honra da imensa comunidade cubana que vive na Florida, que odeia o regime cubano e que, a cada ato eleitoral, vota em função da posição dos partidos / candidatos em relação a Cuba. A eleição de Joe Biden, que não venceu na Florida, prova que o voto cubano não é imprescindível. A nível internacional, os EUA estão praticamente isolados nesta questão: na ONU apenas Israel vota ao seu lado.

14 Ron DeSantis vai entrar na corrida presidencial?
É muito possível. A menos de dois anos das presidenciais de 2024, ele é visto como o republicano melhor posicionado para bater o pé a Donald Trump, que já anunciou que irá disputar as primárias do partido do elefante. O potencial de Ron DeSantis decorre da reeleição como governador da Florida, em novembro, derrotando o candidato democrata com quase 60% dos votos. Entre os republicanos, também o antigo vice-presidente de Trump, Mike Pence, dá cada vez mais sinais de querer aventurar-se na corrida à Casa Branca: lançou um livro e tem-se desdobrado em viagens pelo país, discursos e entrevistas.

15 Isabel dos Santos pode ir parar à prisão?
Desde que a investigação do Luanda Leaks começou a ser divulgada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, no início de 2020, a filha do antigo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, tem confiado nos melhores escritórios de advogados dos vários países europeus onde os negócios que ali fazia se transformaram em problemas. Autoridades de Portugal e da Holanda arrastaram contas bancárias, imobiliário e participações em empresas e, mais recentemente, o Supremo Tribunal de Angola autorizou o arresto preventivo dos bens da empresária Isabel dos Santos no valor de mil milhões de dólares, a pedido do Ministério Público. As múltiplas camadas usadas nos negócios ainda a protegem, porém, o cerco aperta-se.

16 A China vai invadir Taiwan?
A China afirma que Taiwan é “uma questão interna” e “a primeira linha vermelha que não deve ser cruzada” nas relações com os Estados Unidos. A aliança internacional que os EUA e a União Europeia mostraram contra a Rússia pode levar a China a ser mais cautelosa nos passos para uma reunificação com Taiwan, mas as tensões têm-se vindo a agravar e mantêm-se os receios de um escalar da situação. No Congresso do Partido Comunista da China, o líder Xi Jinping afirmou que o objetivo é uma reunificação pacífica ainda que o país não renuncie ao uso da força. Em outubro, o almirante americano Mike Gilday alertou que pode ocorrer uma invasão até 2024.

17 Irá Donald Trump ser acusado formalmente pelo Departamento de Justiça norte-americano?
Há vários indicadores nesse sentido, sim. Porém o caso é muito sensível uma vez que Trump já apresentou a candidatura à Casa Branca e levá-lo a tribunal poderia ser considerado um ato desenhado especificamente para o impedir de voltar à presidência, e provocar uma divisão ainda maior no país. No entanto, o homem que neste momento dirige as investigações, Jack Smith, já enviou diversas intimações para depor a várias pessoas que estiveram em contacto com Trump durante as suas tentativas para interferir com o resultado das presidenciais de 2020.

Texto escrito com Ana França, Cristina Peres, Manuela Goucha Soares e Salomé Fernandes.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

As imagens internacionais do ano: Rússia invadiu a Ucrânia, um telescópio captou o berço do universo, Roger Federer encostou a raquete

Num ano marcado pela guerra na Ucrânia, o Reino Unido foi destaque pela sucessão de inquilinos em Downing Street e pelo desaparecimento de Isabel II, e consequente mudança na monarquia britânica. A fúria climática desabou sobre o Paquistão e, 36 anos depois, a Argentina voltou a ser campeã do mundo de futebol. Em Hollywood, uma estalada na noite dos Óscares foi um grande ‘sucesso de bilheteira’. Algures no mundo, nasceu o terráqueo 8000 milhões

BÊNÇÃO. Um padre borrifa dois cães com água benta, num ‘drive-through’ de Quezon (Filipinas), no Dia Mundial dos Animais LISA MARIE DAVID / REUTERS

CONSAGRAÇÃO. Roger Federer abandonou os ‘courts’ ao estilo de ‘campeão dos campeões’. Na última partida, foi levado em ombros por rivais JULIAN FINNEY / GETTY IMAGES
SAUDADE. Dois corgis, a raça de cães preferida de Isabel II, despedem-se da rainha de Inglaterra à passagem do seu féretro PETER NICHOLLS / REUTERS
ADEUS. Isabel II reinou 70 anos. A comoção mundial perante o seu desaparecimento, a 8 de setembro, revelou respeito e gratidão EMILIO MORENATTI / GETTY IMAGES
DILÚVIO. A natureza fez sentor a sua fúria sobre o Paquistão, submergindo um terço do território após chivas abundantes JAN ALI LAGHARI / ANADOLU / GETTY IMAGES
CAMPEÃ. Abandonou o ténis, mas colocou reticências sobre um eventual regresso. “Nunca gostei da palavra reforma”, disse Serena Williams SHANNON STAPLETON / REUTERS
TRADIÇÃO. “La Tomatina” continua a atrair foliões de todo o mundo à cidade espanhola de Buñol JUAN MEDINA / REUTERS
SECA. Uma ovelha procura alimento num terreno sem pingo de água, na localidade espanhola de Villarta de los Montes SUSANA VERA / REUTERS
CONFRONTO. Protestos contra o uso obrigatório do ‘hijab’ (véu islâmico) rapidamente evoluíram para uma contestação generalizada ao regime teocrático AFP / GETTY IMAGES
ESPAÇO. Os mistérios do universo primordial, captados pelo telescópio James Webb, ao estilo de uma pintura NASA / REUTERS
FORÇA. A “pose” de um nadador, vencida a tração da água, nos Jogos da Commonwealth, em Birmingham (Reino Unido) STEFAN WERMUTH / REUTERS
ALTITUDE. Uma serpente de trânsito desbrava caminho entre a neve, numa zona montanhosa entre o Chile e a Argentina IVAN ALVARADO / REUTERS
VIOLÊNCIA. A força do pugilista britânico Derek Chisora está bem expressa no rosto do búlgaro Kubrat Pulev ANDREW COULDRIDGE / REUTERS
FÉ. Devotos hindus lançam lamparinas de óleo acesas nas águas do rio Buriganga, no Bangladesh MOHAMMAD PONIR HOSSAIN / REUTERS
DESESPERO. Nos EUA, as armas continuam a tirar a vida a inocentes: 19 crianças foram mortas a tiro numa escola primária do Texas ALLISON DINNER / AFP / GETTY IMAGES
SUCESSÃO. O dia chegaria, no Reino Unido. Desaparecida a respeitada Isabel II, sucedeu-lhe a incógnita Carlos III BEN STANSALL / GETTY IMAGES
GUERRA. A Rússia invadiu a Ucrânia e transformou em soldados os civis ucranianos com idades entre os 18 e os 60 anos STANISLAV YURCHENKO / REUTERS
FILME. A bofetada de Will Smith a Chris Rock, nos Óscares, demonstrou que a visa real também se pauta por cenas dignas da ficção ROBYN BECK / AFP / GETTY IMAGES
RECOMEÇO. Uma criança encontra uma boneca entre os destroços provocados pela passagem de um tornado, nos arredores de Nova Orleães ADREES LATIF / REUTERS
PARTIDA. Uma das feridas abertas pela guerra na Ucrânia: os homens ficaram para combater, mulheres e crianças tiveram de fugir SALWAN GEORGES / GETTY IMAGES
DESAFIO. A pequenez humana diante das ondas gigantes da Nazaré. Adrenalina pura para surfistas destemidos, como o brasileiro Éric Rebière PEDRO NUNES / REUTERS
FESTIVAL. Neste evento tradicional indonésio, chamado Pacu Jawi, um jóquei tenta que duas vacas corram em linha reta REUTERS
PROTEÇÃO. Neste hotel de Tóquio, é possível jantar dentro de cápsulas que resguardam os convivas dos perigos da covid-19 KIM KYUNG-HOON / REUTERS
DESILUSÃO. De joelhos e em lágrimas, Cristiano Ronaldo foi a imagem da capitulação portuguesa no Mundial do Catar FABRIZIO BENSCH / REUTERS
EUFORIA. Há 36 anos que a Argentina não ganhava um Mundial de futebol. O Catar e Lionel Messi foram talismãs AGUSTIN MARCARIAN / REUTERS
AUTORIDADE. Regado com o tradicional chá, o Congresso do Partido Comunista Chinês consagrou a liderança indicutível de Xi Jinping THOMAS PETER / REUTERS
ÊXODO. Partiram das Honduras a pé e foram intercetados pela polícia após atravessarem o Rio Grande, na fronteira entre o México e EUA ADREES LATIF / REUTERS
COMPETIÇÃO. A bola está protegida, já os dois futebolistas tiveram uma aterragem turbulenta GARY A. VASQUEZ / REUTERS
PROTESTO. Manifestantes e polícia de choque: um confronto que se replica mundo fora. Na Tailândia, o pretexto foi uma cimeira económica TANAT CHAYAPHATTHARITTHEE / REUTERS
REGRESSO. Donald Trump quer voltar à Casa Branca. No seu ‘resort’ de Mar-a-Lago, anunciou que irá disputar as primárias republicanas JONATHAN ERNST / REUTERS
POPULAÇÃO. Os habitantes da Terra são já mais de 8000 milhões. A China é o país mais populoso, mas a Índia cresce mais LISI NIESNER / REUTERS
AGRADECIMENTO. Numa aldeia perto de Kherson, resgatada aos russos, uma mulher leva flores para entregar aos militares ucranianos VALENTYN OGIRENKO / REUTERS
MEMÓRIA. O Muro de Berlim caiu há 33 anos, mas a cada 9 de novembro são colocadas flores num memorial, na capital alemã ANNEGRET HILSE / REUTERS
PROMESSA. Ron DeSantis destacou-se nas ‘midterms’ ao ponto de ser apontado como o principal rival republicano de Trump para 2024 MARCO BELLO / REUTERS
ORAÇÃO. Luz e cor, no interior de um templo de Dhaka, no Bangladesh, onde crentes hindus rezam MOHAMMAD PONIR HOSSAIN / REUTERS
CELEBRAÇÃO. Entre as mil e uma maneiras de comemorar um golo, esta é a do norueguês Erling Braut Haaland, ao serviço do Manchester City CARL RECINE / REUTERS
ANSIEDADE. Migrantes aguardam ordem de saída de uma embarcação da guarda costeira espanhola, na ilha da Gran Canaria BORJA SUAREZ / REUTERS
LUTO. No Dia de Todos os Santos, este músico peruano escalou um monte de Lima, até junto de um cemitério para confortar famílias enlutadas ANGELA PONCE / REUTERS
PASSAGEM. Liz Truss serviu em Downing Street pouco mais de um mês, o suficiente para privar com dois monarcas ingleses: Isabel II e Carlos III HENRY NICHOLLS / REUTERS
DISPUTA. No Cazaquistão, o cavalo é a arma do Kokpar, um jogo tradicional que envolve equipas de cavaleiros e a carcaça de uma cabra KONSTANTIN CHALABOV / REUTERS
AGITAÇÃO. O Haiti é um país sem sossego, entre assassinatos políticos, carências económicas e vulnerabilidade ambiental RALPH TEDY EROL / REUTERS
DISCIPLINA. Muitas horas de treino depois, esta chinesa não evita um esgar de dor, durante o Campeonato do Mundo de Ginástica, em Liverpool PHIL NOBLE / REUTERS
FRAGILIDADE. Aos 86 anos, o Papa Francisco está, visivelmente, cada vez mais debilitado. Mas no contacto com os fiéis, não perde o sorriso YARA NARDI / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Ruas bloqueadas no Kosovo, forças em prontidão na Sérvia: as razões de fundo da mais recente tensão numa relação turbulenta

Catorze anos após o Kosovo declarar unilateralmente a sua independência da Sérvia, a minoria sérvia do país continua a desafiar as autoridades de Pristina. O recurso a camiões para bloquear estradas do território, em protesto contra decisões das autoridades kosovares, mais não é do que uma forma de afirmação da soberania de Belgrado sobre partes do país

Mapa do Kosovo com as comunidades sérvias assinaladas a azul e as albanesas a amarelo, integrante do Acordo de Bruxelas de 2013, que foi o primeiro acordo de princípios relativo à normalização das relações entre a Sérvia e o Kosovo WIKIMEDIA COMMONS

Antes da invasão russa da Ucrânia, a última grande guerra na Europa foi travada no território da antiga Jugoslávia. O desmembramento deste Estado originou sete novos países, processos de independência sangrentos e feridas que não cicatrizam — a mais grave das quais chama-se Kosovo.

Esta antiga província sérvia de maioria albanesa (muçulmana) declarou a sua independência da Sérvia (cristã ortodoxa) de forma unilateral em 2008. Desde então, o reconhecimento internacional tem sido a grande prioridade da diplomacia kosovar.

O país já solicitou adesão à União Europeia (mas não é reconhecido pela totalidade dos 27 membros) e sonha com o estatuto de primus inter pares na comunidade internacional (mas ainda não faz parte das Nações Unidas).

Quanto à sua segurança, está dependente da presença militar internacional no território (como a KFOR, a missão da NATO que está no Kosovo desde 1999).

No terreno, o Kosovo é um território envolto em tensão permanente. Esta terça-feira, a temperatura subiu uns graus após populações da minoria sérvia do país erguerem novas barricadas nas ruas da região de Mitrovica (norte), numa ação de protesto que dura há semanas.

Horas antes, a Sérvia havia colocado exército e polícia em “completo estado de prontidão de combate”, temendo que as autoridades do Kosovo pudessem recorrer à força para retirar as barricadas e desobstruir as ruas que ligam as zonas sérvia e albanesa da cidade.

“Todas as medidas serão tomadas para proteção do povo sérvio no Kosovo”

Bratislav Gasic, ministro do Interior da Sérvia

O recurso a grandes camiões atravessados nas ruas e outras formas de barricadas é uma forma de protesto recorrente, em especial na parte norte do Kosovo, onde vive uma minoria de cerca de 50 mil sérvios.

Estes não reconhecem o Estado do Kosovo e declaram lealdade à Sérvia. No dia a dia, sentem-se motivados a cumprir as leis ditadas por Belgrado e rejeitam com orgulho as ordens que emanam de Pristina.

Distribuição das populações sérvias no Kosovo, em 1948 WIKIMEDIA COMMONS

A origem da atual tensão entre Sérvia e Kosovo reside num procedimento burocrático decidido, em agosto, pelo Governo do Kosovo que determinou que os carros dos sérvios kosovares passariam a ter matrículas com as letras RKS (uma sigla decorrente do nome do país: República do Kosovo).

Esta nova lei contraria a prática em vigor desde 1999, segundo a qual as viaturas da minoria sérvia circulam com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como KM para residentes em Kosovska Mitrovica ou PR para moradores em Pristina.

Apesar de as considerar ilegais, o Kosovo tem-nas tolerado — até agora. No mês passado, autarcas sérvios de municípios do norte, juízes e centenas de polícias demitiram-se em protesto contra esta lei das matrículas.

“O Kosovo não pode dialogar com gangues criminosos e a liberdade de movimento deve ser restabelecida. Não deve haver barricadas em nenhuma estrada”, defendeu o Governo kosovar, num comunicado divulgado na segunda-feira.

O documento acrescenta que a polícia do Kosovo está em condições de remover as barricadas, aguardando apenas autorização da força de manutenção de paz da NATO no território (KFOR).

A pensar na neutralidade a que a KFOR está obrigada, a Sérvia, por seu lado, solicitou à NATO a deslocação de mais de 1000 efetivos para o norte do Kosovo para proteger os sérvios kosovares de eventuais situações de assédio por parte dos albaneses.

Para acentuar a tensão, tudo acontece numa época festiva e especialmente sagrada para os sérvios. Em jeito de prenúncio de uma possível escalada, na segunda-feira, o Kosovo recusou a entrada no país ao Patriarca Porfírio da Sérvia.

A dias de os sérvios (tal como os russos) celebrarem o seu Natal, a 7 de janeiro, o líder da Igreja Ortodoxa Sérvia tencionava levar aos sérvios kosovares uma mensagem de paz. No atual contexto, qualquer intenção de paz bem pode transformar-se num rastilho para a guerra.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Kosovo assinou os papéis para entrar na UE, mas cinco dos 27 não o reconhecem como país independente

Quase 15 anos após a declaração unilateral de independência do Kosovo, cinco Estados-membros da União Europeia negam-se a reconhecer o mais jovem país do Velho Continente. A braços com pretensões separatistas a nível interno, Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia querem evitar que o reconhecimento da soberania kosovar faça ricochete nos seus territórios

Mapa do Kosovo pintado com a bandeira da União Europeia WIKIMEDIA COMMONS

Dos sete países que se formaram após o desmembramento da antiga Jugoslávia, apenas um não tinha ainda solicitado adesão à União Europeia (UE). Eslovénia e Croácia já fazem parte da União, três outros têm estatuto de candidato (Sérvia, Macedónia do Norte e Montenegro) e a Bósnia-Herzegovina também já formalizou o pedido de adesão. Faltava o Kosovo.

Na semana passada, as autoridades de Pristina deram esse passo, numa cerimónia em Praga, capital da Chéquia, que este semestre preside ao Conselho da UE. “A UE é um destino a que almejamos e é o destino que abraçamos”, afirmou então o primeiro-ministro kosovar Albin Kurti. “Este é um dia histórico para o povo do Kosovo, e um grande dia para a democracia na Europa”, acrescentaria, numa mensagem na rede social Twitter.

Para se tornar elegível para a adesão à UE, o Kosovo terá de cumprir os Critérios de Copenhaga — metas políticas, económicas — e demonstrar capacidade para assumir as obrigações decorrentes do acervo comunitário. Mas não só.

Quase 15 anos após ter declarado unilateralmente a independência em relação à Sérvia (de maioria cristã ortodoxa), o Kosovo (de maioria muçulmana) ainda não é reconhecido por cinco Estados-membros da UE: Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia.

Essa resistência deve-se não tanto aos contornos da questão kosovar em si, mas a razões de política interna. “Os cinco têm problemas internos com minorias nacionais ou nacionalidades com potencial secessionista”, explica ao Expresso o professor Pascoal Pereira, da Universidade Portucalense.

“Reconhecendo a independência do Kosovo, estariam a relativizar a interpretação do princípio da integridade territorial, um princípio do direito internacional estruturador do sistema internacional e da relativa estabilidade das fronteiras internacionais. O Kosovo, ao declarar a sua independência, compromete a integridade territorial da Sérvia (o Estado ‘de origem’), que se recusa a reconhecer essa secessão, por considerar precisamente que seria uma violação da sua integridade territorial”, acrescenta.

Para a Sérvia, o Kosovo é, como sempre foi, província sua. Mas que argumentos usam os cinco membros da UE para não estabelecerem relações diplomáticas, de igual para igual, com o Kosovo?

ESPANHA
Um precedente chamado Catalunha

Se há tema que, nos últimos anos, colocou Espanha nas notícias em todo o mundo foi o esforço separatista de parte da região autonómica da Catalunha. O diferendo entre Madrid e Barcelona atingiu o pico a 1 de outubro de 2017 quando o governo regional catalão (Generalitat) realizou um referendo — ilegal face à Constituição espanhola — com vista à proclamação da República da Catalunha. Os implicados no 1-O, como ficou conhecido o referendo, foram condenados a pesadas penas de prisão e inabilitação política.

“Se Espanha reconhecesse a independência do Kosovo — relativizando o princípio da integridade territorial —, estaria a dar argumentos legais e políticos aos movimentos separatistas internos (Catalunha, País Basco) para reivindicarem a independência dos seus territórios, pelo precedente criado por esse reconhecimento”, explica Pascoal Pereira.

Num desenvolvimento recente, o Governo de Pedro Sánchez promoveu uma revisão do enquadramento legal do delito de sedição no Código Penal, ao abrigo do qual o Tribunal Supremo condenou os organizadores do 1-O. Esta alteração, que vai ao encontro das exigências independentistas catalãs, é vista como cedência de Madrid, visando um apoio estável da Esquerda Republicana da Catalunha — que ocupa 13 assentos no Congresso dos Deputados (câmara baixa do Parlamento espanhol) —, o que permitirá a Sánchez enfrentar com alguma confiança as legislativas previstas para finais de 2023. A oposição teme pelo Estado de Direito.

CHIPRE
A culpa é da Turquia

A objeção ao reconhecimento da independência do Kosovo por parte da República de Chipre — os dois terços de território no sul da ilha cipriota, etnicamente grega — decorre da ocupação do terço norte por parte da Turquia (que aí reconheceu a República Turca de Chipre do Norte).

“Reconhecer o Kosovo seria um reconhecimento implícito da relativização do princípio da integridade territorial, fragilizando a sua posição em relação à sua região separatista”, explica o professor da Universidade Portucalense. À semelhança de Espanha, Chipre admite alterar a sua posição se o Kosovo chegar a um acordo formal com a Sérvia, o que, atendendo aos últimos desenvolvimentos, parece longe de acontecer.

Presentemente, Pristina e Belgrado travam um braço de ferro relativo às matrículas dos carros da comunidade sérvia kosovar. Esta recusa-se a alterar as placas para a sigla RKS (República do Kosovo), como exigem as autoridades do Kosovo, e quer manter os códigos que já vêm desde 1999, o que lhes possibilita circular com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como, por exemplo, PR para Pristina.

GRÉCIA
Solidária com o Chipre grego

A posição da Grécia sobre o estatuto político do Kosovo decorre da questão de Chipre — a divisão desta ilha mediterrânica entre um país (reconhecido internacionalmente) de maioria grega e outro (só reconhecido pela Turquia) de maioria turca. A Grécia é uma sólida aliada do Chipre grego e, como este, exige a retirada militar da Turquia do norte da ilha.

Paralelamente, Grécia e Chipre têm grande proximidade com a Sérvia, já que os três países têm populações maioritariamente cristãs ortodoxas.

A relação entre Grécia e Kosovo não é, porém, inexistente. Atenas tem um Gabinete de Ligação aberto em Pristina, uma espécie de embaixada não oficial que viabiliza contactos entre as partes. É, a este nível, um exemplo diferenciador para outros países que não reconhecem o Kosovo, designadamente Espanha.

ESLOVÁQUIA
O impacto na minoria húngara

A posição oficial da Eslováquia em relação ao reconhecimento do Kosovo é fortemente condicionada pela existência, no país, de uma minoria húngara e por receios secessionistas manifestados ao longo da história.

“Nos casos específicos da Eslováquia e da Roménia, também se coloca a questão do precedente político”, explica Pascoal Pereira. “Um reconhecimento da independência do Kosovo conferiria argumentos a movimentos separatistas das minorias húngaras que residem nos dois territórios.”

As raízes da posição eslovaca remontam à desintegração do Império Austro-Húngaro, após a Grande Guerra de 1914-18. Pela primeira vez, a Eslováquia surgiu no mapa político com território, englobando regiões étnicas, no sul, na fronteira com a Hungria.

Quatro décadas de domínio comunista estabilizaram essa fronteira, mas as sensibilidades não morreram e reanimaram-se após a queda do muro de Berlim quando, na Hungria, alguns partidos políticos começaram a exigir a reunificação das populações húngaras da Bacia dos Cárpatos.

“O reconhecimento do separatismo étnico-nacional (que está na base da independência do Kosovo) enfraqueceria a defesa do princípio da integridade territorial que, legalmente até agora, tem protegido a Roménia e a Eslováquia contra ambições territoriais (reais e/ou apenas retóricas) por parte da Hungria”, alerta o académico.

À semelhança dos gregos, os eslovacos mantêm presença política oficial em Pristina, reveladora da vontade de uma relação diferente. Simbolicamente, um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros eslovaco, Miroslav Lajcak, é o atual representante especial da UE para o Diálogo Belgrado-Pristina e outros assuntos regionais dos Balcãs Ocidentais. O seu mandato inclui a normalização da relação entre a Sérvia e o Kosovo.

ROMÉNIA
As garras da Hungria

A Roménia partilha os receios eslovacos quanto à sua própria minoria húngara, que reivindica a autonomia de uma área no leste da Transilvânia. Ao rejeitar o reconhecimento de direitos coletivos de minorias nacionais, receando o precedente que isso poderia significar no seu território e em países vizinhos como a Moldávia — esta a braços com separatismo na região pró-russa da Transnístria —, Bucareste não pode ter outra posição que não rejeitar a independência unilateral do Kosovo.

Apesar desta linha geral, a Roménia tem sido pragmática ao contribuir para missões internacionais no Kosovo, nomeadamente a Força do Kosovo (KFOR, liderada pela NATO), a Missão da UE para o Estado de Direito no Kosovo (EULEX) e a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK).

“As relações de Roménia e Eslováquia são tradicionalmente tensas com as suas minorias húngaras, algo que é agravado ainda pela persistência de um discurso revisionista húngaro em relação ao Tratado de Trianon (1920), assinado após a I Guerra Mundial. Ao abrigo dele, a Hungria perdeu parte significativa do seu território, incluindo as atuais Eslováquia e Transilvânia (na Roménia, onde reside essa população húngara)”, explica o docente.

“Esse discurso nacionalista tem sido alimentado por sectores políticos húngaros ao longo dos anos, destacando-se o primeiro-ministro Viktor Orbán. Mais de uma vez proclamou-se defensor dos interesses dessas minorias, alimentando a retórica revisionista que, em última análise, contesta o statu quo fronteiriço de toda a região.”

Para aderir à UE o Kosovo necessita do “sim” de todos os 27 Estados-membros: 22 estão garantidos, faltam cinco, mais problemáticos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Nas Nações Unidas, 185 países votaram pelo fim do embargo a Cuba. Então porque não acaba?

O bloqueio económico imposto pelos Estados Unidos a Cuba dura há 12 presidentes. Republicanos ou democratas, de John F. Kennedy a Joe Biden, nenhum se atreveu a contrariar a sensibilidade dos cubanos exilados em Miami. “Democratas como Biden deviam ter visto há muito tempo que a Florida já não é um estado indeciso. Os democratas não têm hipótese de ganhar”, diz ao Expresso um estudioso norte-americano da América Latina. “É moralmente injustificável continuar a negar as necessidades básicas ao povo cubano, especialmente medicamentos e equipamentos médicos”

As garras do Tio Sam envolvem a ilha de Cuba CARLOS LATUFF / CANADIAN DIMENSION

Há 124 anos, por esta altura, Cuba saboreava os primeiros dias como país independente. A 10 de dezembro de 1898, terminara a terceira guerra contra o colonizador espanhol, em que os cubanos contaram com a preciosa ajuda de tropas norte-americanas.

Nas décadas seguintes, a ilha caribenha ficou na dependência económica dos Estados Unidos. Quando, a 1 de janeiro de 1959, a revolução socialista de Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara triunfou sobre a ditadura de Fulgencio Batista, para muitos cubanos isso significou a libertação de outro tipo de colonialismo.

A nacionalização de dezenas de empresas norte-americanas, decretada pelo novo regime, levou Washington a impor restrições comerciais à ilha. Numa primeira fase, ficaram de fora alimentos e medicamentos (Administração Eisenhower); posteriormente, um embargo afetou todo o comércio (Administração Kennedy).

Esse bloqueio económico dura até hoje. Desde 1992, por iniciativa de Cuba, a Assembleia-Geral das Nações Unidas vota, anualmente, a resolução “Necessidade de acabar com o embargo económico, comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos da América contra Cuba” — em 2020, devido à pandemia, a votação não se realizou.

Estados Unidos quase isolados

A resolução não é juridicamente vinculativa, mas permite tirar o pulso à opinião mundial sobre o assunto. Na primeira resolução, em 1992, apenas 59 países votaram a favor; hoje, há quase unanimidade contra o embargo. É isso que espelha a última votação, a 3 de novembro passado:

▪ 189 Estados-membros votaram;
▪ 185 votaram a favor do fim do embargo;
▪ 2 votaram contra: Estados Unidos e Israel;
▪ 2 abstiveram-se: Brasil e Ucrânia.

ISRAEL — “O voto de Israel não parece ser surpreendente. É um firme aliado dos Estados Unidos”, explica ao Expresso o politólogo argentino Ignacio Labaqui. Na Assembleia -Geral da ONU — onde os votos dos países têm todos o mesmo peso —, o Estado judeu tem sido o único a replicar cegamente a posição dos Estados Unidos.

BRASIL — “O Brasil de Jair Bolsonaro tem uma relação fria com o Governo de Joe Biden e mantém boas relações com a Rússia de Vladimir Putin. Provavelmente, se Lula da Silva já fosse Presidente teria votado contra o embargo”, acrescenta Labaqui. De 1992 a 2018, o Brasil votou sempre a favor do fim do embargo; em 2019 (o primeiro ano de Bolsonaro no Palácio do Planalto) votou contra e desde então tem-se abstido.

UCRÂNIA — Kiev tem optado pela abstenção desde 2019. No atual contexto de guerra, o voto ucraniano não será alheio à necessidade de ajuda militar e de mais sanções à Rússia. Até então, com uma única exceção em 1993 (em que se absteve), os ucranianos votaram sempre contra o embargo.

E Portugal?

Portugal tem votado pelo fim do embargo desde 1995, ano em que António Guterres se tornou primeiro-ministro. Entre 1992 e 1995, quando o Governo era chefiado por Aníbal Cavaco Silva, Portugal absteve-se na resolução apresentada por Cuba.

Da votação na ONU resulta um quase total isolamento dos Estados Unidos nesta questão. Ronn Pineo, historiador norte-americano e especialista na área da América Latina, recua aos primórdios da democracia norte-americana para explicar o porquê de sucessivos governos — ora republicanos ora democratas — insistirem no embargo.

“O sistema político dos Estados Unidos é altamente disfuncional. Aspetos importantes antiquados foram concebidos há muito tempo para proteger interesses económicos poderosos de épocas passadas. Este sistema foi elaborado por fazendeiros ricos e donos de escravos para frustrar qualquer possibilidade de uma verdadeira democracia. Este sistema perdura”, diz ao Expresso.

“É justo criticar o sistema político dos Estados Unidos como algo em funcionamento para assegurar a lei de uma minoria fechada. Os Estados Unidos não têm uma democracia funcional.”
Ronn Pineo

O peso eleitoral da Florida

“Uma característica deste sistema político injusto é a estranha alocação de poder político indevido a swing states, estados que ora podem cair para os democratas, ora para os republicanos, nas eleições presidenciais. A Florida é um desses estados.”

Na Florida vive a maior comunidade de cubano-americanos do país. Tem origem no êxodo de cubanos em fuga às lideranças dos irmãos Castro, que mandaram em Cuba durante quase seis décadas — Fidel entre 1959 e 2008, Raúl entre 2008 e 2018. “Ao criar raízes na Florida, estes cubano-americanos notabilizaram-se por uma característica constante no seu comportamento eleitoral: votam em função de um assunto único.”

“A única coisa com que os cubano-americanos se importavam era punir os Castro e usar todo o poder dos Estados Unidos contra a revolução cubana.”
Ronn Pineo

“Nos Estados Unidos, todos os candidatos presidenciais sentem que têm de ganhar na Florida se quiserem vencer no colégio eleitoral, e a única forma de vencer nesse estado é obter o voto fundamental dos cubano-americanos. Manter o bloqueio económico a Cuba foi essencial para conquistar esse voto. Para os candidatos presidenciais e para os presidentes não houve penalização política pela continuação do bloqueio. E não há nenhum grupo de eleitores americanos que considere o levantamento do bloqueio assim tão importante.”

Além da influência do lóbi cubano de Miami, Ignacio Labaqui identifica outra razão que dificulta o levantamento do embargo. “O embargo surgiu por um decreto presidencial da Administração Kennedy. Manter ou levantar o embargo era uma decisão presidencial. Isso mudou na década de 1990 com a lei Helms-Burton [de 1996], que, entre outras coisas, converteu o embargo numa decisão legislativa”, passando a reforçar o papel do Congresso nesta questão.

Guerra Fria acabou, embargo continuou

Originalmente, o embargo foi uma decisão vinculada à lógica da Guerra Fria. Hoje, isso faz pouco sentido. O embargo mostrou ser ineficaz para conseguir o objetivo que presidiu à sua criação: provocar a queda do castrismo através de sanções económicas”, acrescenta Labaqui.

“Desde a aplicação do embargo, passaram-se 61 anos e 12 presidentes norte-americanos, e a ditadura cubana ainda lá está.”
Ignacio Labaqui

“Por outro lado, a Guerra Fria acabou há mais de 30 anos, pelo que o argumento a favor do embargo de que Cuba é uma ameaça estratégica para a segurança dos Estados Unidos não é sustentável. O embargo continua porque é difícil conseguir maiorias legislativas [no Congresso] para o levantar e por causa da influência dos grupos mais anticastristas do exílio cubano.”

Na Assembleia-Geral da ONU, só em 2016 os Estados Unidos não votaram contra o fim do embargo, optando pela abstenção. Israel acompanhou na abstenção e 191 países votaram a favor do levantamento do bloqueio económico à ilha. O inquilino da Casa Branca era Barack Obama que, em março desse ano, fizera história ao tornar-se o primeiro Presidente norte-americano a visitar Cuba em 88 anos — a última viagem realizara-se em 1928, por Calvin Coolidge.

O degelo ensaiado por Obama na relação bilateral com Cuba não produziu raízes. No ano seguinte, os Estados Unidos recuperaram o tradicional “não” e, assim que Donald Trump se tornou Presidente, os cubanos de Miami voltaram a respirar de alívio.

“Democratas como o Presidente Joe Biden deviam ter visto há muito tempo que a Florida já não é um estado indeciso. Esse cálculo político está errado. Os democratas não têm hipótese de ganhar este estado”, diz Pineo. O atual chefe de Estado foi eleito sem precisar de vencer na Florida, aliás.

“Podem ignorar com segurança os cubano-americanos que insistem em prosseguir com o bloqueio económico e, em vez disso, podem considerar apenas fazer a coisa certa”, diz o perito. “É moralmente injustificável continuar a negar as necessidades básicas ao povo cubano, especialmente medicamentos e equipamentos médicos.”

Florida, um feudo republicano

A eleições para o Congresso (midterms) de novembro passado confirmaram o domínio generalizado e amplo dos republicanos na Florida:

Ron DeSantis obteve 59,4% dos votos, sendo reeleito governador — é apontado como o mais forte candidato a desafiar Trump nas primárias republicanas para as presidenciais de 2024.
Para o Senado, Marco Rubio, de ascendência cubana, foi reeleito com 57,7%.
E para a Câmara dos Representantes, os eleitores da Florida elegeram 20 republicanos e oito democratas.

Nas Nações Unidas, o número máximo de países que votaram simultaneamente “não” foi quatro — aconteceu cinco vezes. Além de Israel, votaram ao lado dos Estados Unidos, em diferentes anos, Roménia, Albânia, Paraguai, Usbequistão, Ilhas Marshall, Brasil e Palau.

Um aliado chamado Palau

Ronn Pineo particulariza o caso deste microestado no Oceano Pacífico, com cerca de 20 mil habitantes, para expor a fragilidade de alguns apoios recebidos por Washington. “O Palau procurou defender o seu voto como ato de profunda consciência, contra a tirania socialista, mas esse voto é visto como resultado direto da dependência total da pequena nação em relação à assistência económica americana para a sua própria sobrevivência.”

“As nações que votam com os Estados Unidos são países que dependem profundamente da ajuda militar norte-americana. Os republicanos no Congresso poderiam acabar com a assistência militar americana se esses países, sobretudo Israel e a Ucrânia, votassem a favor de suspender o bloqueio económico dos Estados Unidos a Cuba.”

“O embargo terminará quando houver mudanças políticas efetivas ou de regime político em Cuba ou quando uma nova geração de cubanos ou de cubano-americanos entenda que deve terminar.” Nancy Gomes, diretora do polo em Portugal da Fundação Universitária Ibero-Americana (FUNIBER)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui