O primeiro-ministro de Israel destituiu um rabino dos cargos de ministro do Interior e da Saúde, após uma posição nesse sentido do Supremo Tribunal. Aryeh Deri, que lidera o partido religioso ultraortodoxo Shas, continuará, porém, a ser vice-primeiro-ministro. A outra formação ultraortodoxa que integra o governo já disse que vai continuar a trata-lo por ministro
O primeiro-ministro de Israel despediu, este domingo, um dos seus principais aliados políticos do cargo de ministro, na sequência de um pronunciamento do Supremo Tribunal que desqualificou o rabino Aryeh Deri para cargos ministeriáveis em virtude de uma condenação recente na justiça.
No conselho de ministros semanal, realizado este domingo, Benjamin Netanyahu expressou “grande pesar no coração” por ter de tomar a decisão e prometeu apoio a Deri, uma “âncora de experiência, inteligência e responsabilidade”.
“A decisão do Supremo Tribunal ignora a vontade da nação, e eu tenciono encontrar todos os meios legais possíveis para permitir que contribua para o país”, disse Netanyahu.
Deri, que lidera o partido religioso ultraortodoxo Shas, detinha as pastas do Interior e da Saúde, que passam agora para as mãos de outros membros do partido. “Não houve qualquer dúvida em momento algum”, disse Deri sobre suspeitas de que poderia não acatar a ordem do Supremo Tribunal.
Segundo o órgão de informação digital israelita “Times of Israel”, o líder do Shas vai continuar a desempenhar o cargo de vice-primeiro-ministro. A publicação refere que pouco após dispensar Deri, Netanyahu abandonou o conselho de ministros, deixando Deri a presidir à reunião.
O líder do outro partido religioso que integra o Governo israelita, o Judaismo Unido da Torá, afirmou que ele e o partido continuarão a tratar Deri como ministro. “No que respeita aos nossos ministérios [aqueles que o partido controla], Deri continuará a ser ministro e é dessa forma que nos relacionaremos com ele”, afirmou Yitzhak Goldknopf, ele próprio ministro (da Construção e da Habitação).
Qualquer um destes partidos é fundamental à sobrevivência do Governo de Netanyahu, que assumiu funções há menos de um mês trazendo alguma acalmia a Israel, após cinco eleições realizadas em quatro anos.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui
A sombra da instabilidade política regressa a Israel depois de o Supremo Tribunal ter desqualificado um dos ministros e principais aliados de Benjamin Netanyahu. Aryeh Deri lidera um partido religioso e tem em mãos as pastas do Interior, da Saúde e, ao abrigo de um regime de rotação, terá também a das Finanças. Se não sair pelo próprio pé, o primeiro-ministro poderá ter de demiti-lo — e ver o seu Governo cair
Três semanas após tomar posse, o Governo de Israel levou o primeiro abanão. Quarta-feira, o Supremo Tribunal considerou que um dos principais ministros do mais recente Executivo liderado por Benjamin Netanyahu não tem condições para ser governante.
Segundo o órgão judicial, Aryeh Deri não é qualificado para uma posição ministerial, em virtude de condenações passadas na justiça: no ano passado, por fraude fiscal (ficou com pena suspensa após um acordo judicial); em 1999, a três anos de prisão por ter aceitado subornos.
Dos onze juízes do Supremo, dez consideraram a nomeação “extremamente irracional”, pelo que o ministro deve ser afastado. Deri é ministro do Interior e da Saúde. No âmbito de um acordo de rotação com outro partido da coligação, está previsto que, dentro de dois anos, se torne ministro das Finanças (pasta hoje nas mãos de Bezalel Smotrich, líder do partido Sionismo Religioso, de extrema-direita).
Se Deri sair, “não haverá Governo”
Aryeh Deri lidera desde 2013 o Shas, um dos partidos religiosos ultraortodoxos que têm sido leais a Netanyahu e presença regular nos seus governos. O partido considerou a decisão do Supremo política. “O tribunal decidiu hoje que as eleições não fazem sentido”, declarou o Shas, quarta-feira.
Na véspera de o Supremo se pronunciar, outro ministro do Shas, Yaakov Margi, que detém a pasta dos Assuntos Sociais, preveniu para as consequências que o possível afastamento do líder pode ter. Netanyahu “sabe que não haverá Governo”, se Deri for desqualificado do cargo ministerial.
A deliberação judicial foi já criticada pelo ministro… da Justiça, Yariv Levin, que pertence ao Likud (direita), partido do chefe de governo. “Farei o que for necessário para reparar por completo esta flagrante injustiça feita ao rabino Aryeh Deri, ao movimento Shas e à democracia israelita”, disse, em comunicado.
Reforma polémica da justiça
O ministro da Justiça é peça central num plano de reforma do sistema judicial, que está em elaboração e visa conferir ao Governo maior influência sobre as nomeações judiciais e limitar o poder do Supremo para travar legislação.
O Executivo israelita assegura que o plano é necessário para conter juízes elitistas tendenciosos. Para quem se lhe opõe, é uma machadada na independência judicial e no sistema de freios e contrapesos que sustentam o Estado de Direito.
Qualquer reforma judicial promovida pelo Governo de Netanyahu será necessariamente analisada à lupa, dado ele próprio estar a contas com a justiça, acusado de corrupção em três processos.
Netanyahu encostado à parede
O desafio que o primeiro-ministro tem em mãos, a curto prazo, passa por arranjar um papel para Deri no Governo que agrade ao rabino e convença o Supremo. Se Deri não sair pelo próprio pé, Netanyahu poderá ser forçado a demiti-lo.
Num cenário extremo, o fim do apoio do Shas a Netanyahu poderá abrir uma brecha fatal na coligação e, possivelmente, determinará o regresso de Israel à maratona eleitoral que caracterizou os últimos quatro anos no país.
Nas últimas eleições, a 1 de novembro de 2022, o Shas obteve 8,24% dos votos e elegeu 11 deputados (num total de 120), uma bancada essencial à maioria de 64 parlamentares que sustenta o Executivo mais à direita da história de Israel.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui
A Constituição peruana estipula que o mandato presidencial é de cinco anos, mas nos últimos seis, o país teve outros tantos chefes de Estado. A esta demonstração de instabilidade política soma-se a constatação de que, desde 1990, todos os presidentes eleitos enfrentaram processos por corrupção. “Não é uma especificidade peruana”, alerta um politólogo. “É uma característica que o Peru partilha com os restantes países latinoamericanos”
Nos últimos 30 anos, o exercício da democracia no Peru tem tido consequências difíceis de digerir. Em funções ou a posteriori, todos os presidentes do país eleitos por sufrágio universal acabaram a contas com a justiça. Todos sem exceção.
O último caso tem no centro Pedro Castillo, de 53 anos, eleito chefe de Estado a 6 de junho de 2021 e deposto a 7 de dezembro de 2022, quando se preparava para ascender à categoria de ditador. Enquanto enfrentava, no Congresso, um processo de impugnação (impeachment), anunciou na televisão a intenção de dissolver aquele órgão legislativo e instalar um Governo de emergência, em que passaria a ter poderes reforçados.
Os manifestantes exigem um reset ao sistema político: a demissão de Dina Boluarte — vice-presidente de Castillo, que lhe sucedeu no cargo, e a quem chamam “assassina” em virtude das pessoas mortas nos protestos —, a dissolução do Congresso (“um ninho de ratos”, acusam) e a elaboração de uma nova Constituição.
La CGTP convoca a la clase trabajadora y el pueblo peruano a participar activamente en el Gran Paro Nacional, Cívico y Popular del 19 de enero de 2023, exigiendo la renuncia de Dina Boluarte y la Mesa Directiva del Congreso. #DinaRenuncia#ParoNacional#Perupic.twitter.com/SPHn2vUmen
Os protestos são apoiados pela CGTP Peru (a maior federação sindical nacional), pela maior associação de povos indígenas da Amazónia peruana e por organizações representativas de agricultores pobres. Os manifestantes pedem a libertação de Castillo, condenado a 18 meses de prisão preventiva por rebelião. “É um dos nossos”, “Ninguém me representa agora”, são frases ouvidas nas ruas do Peru, citadas em reportagens publicadas na imprensa.
A vítima tornada verdugo
Antigo professor, sindicalista e agricultor, sem experiência política prévia, Castillo venceu as eleições após apresentar-se ao eleitorado como vítima da elite económica peruana. Acabaria, porém, por deixar-se levar por alguns dos seus vícios.
Na América Latina, os problemas de sucessivos Presidentes com a justiça “não são especificidade peruana, antes característica que o Peru partilha com os restantes países latinoamericanos”, explica ao Expresso o politólogo argentino Ignacio Labaqui.
“No Brasil, Lula da Silva e os antigos presidentes Michel Temer e Collor de Melo foram acusados ou investigados por corrupção. Rafael Correa, ex-Presidente do Equador, também enfrenta acusações por corrupção. Na Argentina, Cristina Fernández de Kirchner foi recentemente condenada, em primeira instância, a seis anos de prisão num caso relacionado com obras públicas. O falecido ex-Presidente Carlos Menem também foi investigado. Nas Honduras, Juan Orlando Hernández foi extraditado para os Estados Unidos por acusações de narcotráfico. E Miguel Ángel Rodríguez, ex-Presidente da Costa Rica, também enfrentou acusações de corrupção. Lamentavelmente, é um fenómeno rompante na América Latina.”
A diferença em relação ao Peru — antiga colónia espanhola conhecida em todo o mundo pelas ruínas da cidadela inca de Machu Picchu — “é que a corrupção como método de exercer a política tem raízes mais profundas nesse país por razões históricas”, acrescenta ao Expresso Aníbal Nicolás Saldías, analista na Economist Intelligence Unit. “E, por, isso vemos que todos os presidentes eleitos desde 1990 estão na prisão ou enfrentam processos judiciais por corrupção.”
Alberto Fujimori (1990-2000): Preso em 2005, no Chile, e extraditado para o Peru, cumpre sentença de 25 anos de cadeia por violações dos direitos humanos e corrupção.
Alejandro Toledo (2001-06): Acusado de ter recebido subornos do conglomerado empresarial brasileiro Odebrecht, foi preso em 2019, nos EUA, que se recusaram a extraditá-lo.
Alan García (2006-11): Suicidou-se em 2019, quando estava prestes a ser preso, implicado num esquema de subornos da Odebrecht.
Ollanta Humala (2011-16): Foi preso em 2017, no âmbito da investigação ao escândalo Odebrecht. O Ministério Público pede 20 anos de prisão.
Pedro Pablo Kuczynski (2016-18): Enquanto ministro de Alejandro Toledo, favoreceu contratos celebrados com a Odebrecht. Demitiu-se em 2018, após o segundo impeachment.
Martin Vizcarra (2018-20): Foi declarado “moralmente incapaz” de governar após dois processos de impugnação. Enquanto governador de Moquegua, recebeu subornos de duas empresas a troco da concessão de obras públicas.
Na galeria dos presidentes dos últimos 30 anos, escaparam à razia três interinos, escolhidos pelo Congresso após o afastamento dos titulares eleitos democraticamente:
Valentín Paniagua (2000-01), após a renúncia de Alberto Fujimori.
Manuel Merino (2020), após o impeachment de Martín Vizcarra. Renunciou ao fim de seis dias, depois de duas pessoas terem morrido nos protestos.
Francisco Sagasti (2020-21), que sucedeu a Merino para um mandato que duraria pouco mais de oito meses.
Segundo a Constituição peruana, o mandato do Presidente é de cinco anos, sem possibilidade de reeleição. Mas nos últimos seis anos, o Peru teve… seis Presidentes.
“É notável que no Peru a justiça tenha independência suficiente para fazer as suas investigações e tenha colocado até o ex-ditador Alberto Fujimori na prisão”, acrescenta Saldías. “Sabendo isso, é surpreendente que ainda haja tanta corrupção, como vimos com o caso de Castillo.”
Castillo candidatou-se à presidência na lista do partido Peru Livre, de esquerda. Beneficiou de amplo apoio nas zonas rurais, com promessas de reformar a Constituição, redistribuir a riqueza oriunda da exploração de cobre — o Peru é o segundo produtor mundial deste minério, a seguir ao Chile — e acabar com a marginalização dos grupos indígenas (quatro milhões de pessoas, segundo os censos de 2007).
Vitória à tangente contra Keiko Fujimori
Na primeira volta, foi o mais votado de 18 candidatos, com 19% dos sufrágios. No tira-teimas final, ganhou à tangente (50,13%) contra Keiko Fujimori (49,87%), filha do ex-Presidente Alberto Fujimori, ela própria alvo de acusações de corrupção enquanto congressista. Castillo tomou posse a 28 de julho de 2021, dia do 200º aniversário da independência do Peru.
Em funções, traiu a sua causa e não escapou a acusações de corrupção. O seu Governo foi comparado a uma porta giratória de entrada e saída de ministros — mais de 80 em 17 meses. Quando foi destituído, ia já no terceiro impeachment. Os primeiros dois, por tráfico de influência e corrupção, não obtiveram os votos necessários para o depor.
Esta sucessão de líderes corruptos — num país de 34 milhões de habitantes onde, pela Constituição, o Presidente é simultaneamente chefe de Estado e de Governo — revela, ao mesmo tempo, uma grande capacidade de resiliência da democracia peruana.
“Uma séria ameaça à democracia peruana vem das lutas entre o [poder] executivo e o [aparelho] judiciário, para evitar que o Presidente vá para a cadeia. Essa luta pode explicar um dos motivos do fracasso do golpe de Castillo, que enfrentava pelo menos seis processos judiciais por corrupção e outros delitos”, recorda Nicolás Saldías.
Inversamente, noutros países, casos como os que envolveram Lula, Correa e Kirchner, que “reclamam haver uma conspiração contra eles”, geram instabilidade política nos seus países, uma vez que estão a duvidar da independência da justiça. Por exemplo, vemos na Argentina a forma como o Executivo de Alberto Fernández está a atacar o Supremo Tribunal de Justiça para enfraquecer o seu poder e autonomia, em defesa de Cristina Kirchner.” Esta realidade foi recentemente denunciada pela organização Human Rights Watch.
O “não” das Forças Armadas ao golpe
Voltando ao Peru, a não adesão da polícia e das forças armadas ao golpe de Castillo revela resiliência constitucional, alguma solidez democrática e o desejo de estabilidade. “Uma coisa que Castillo tentou fazer como ditador foi uma reforma do sistema judicial, que obviamente visava acabar com os processos contra si”, defende Saldías.
“Desta vez, o sistema democrático rejeitou a tentativa de golpe de estado, em parte porque Castillo era um Presidente altamente impopular e com pouca experiência política. Mas da próxima vez, se houver um Presidente popular e tiver o apoio dos militares e da polícia (como Nayib Bukele em El Salvador ou Andrés Manuel López Obrador no México), a democracia peruana enfrentará uma crise abrangente.”
Neste cenário de corrupção generalizada ao mais alto nível político, Ignacio Labaqui identifica dois países sul-americanos que parecem ser exceção. “Embora seja impossível medir a corrupção, Chile e Uruguai apresentam níveis de transparência mais elevados do que o resto da região. Isso não significa que não haja atos de corrupção nesses dois países — no Uruguai, o ex-vice-presidente Raúl Sendic teve de renunciar por esse motivo. Mas não parece ser um fenómeno tão generalizado como noutros países da região.”
“A corrupção é um fenómeno que mina a legitimidade dos regimes democráticos. Quando afeta os níveis mais altos da política, geralmente gera desconfiança e deceção entre os cidadãos, sobretudo se, como no Peru, o Estado não presta serviços públicos básicos de forma eficiente. Isso leva o eleitorado a sentir-se atraído pelo discurso antipolítico e a ver os líderes populistas como uma espécie de novos messias”, conclui Labaqui.
Em muitos aspetos, o Peru é um microcosmos dos problemas que afetam muitas democracias mundo fora. Altos índices de corrupção e acentuadas desigualdades sociais geram desconfiança em relação às instituições políticas e preparam o terreno para o surgimento de teorias da conspiração, divisões sociais e a emergência de perfis com tendências autoritárias, que se aproveitam do caos.
“A crítica à ‘partidocracia corrupta’ costuma ser peça fundamental no discurso dos líderes populistas. E a eleição de um deles tende a agravar os problemas da democracia. A corrupção pode não ter levado à falência da democracia através de um golpe de estado — como aconteceu no passado —, mas contribui para uma espécie de morte lenta da democracia, uma erosão gradual que leva ao êxito, nas eleições, de líderes defensores de soluções autoritárias”.
O enforcamento de quatro manifestantes espalhou o medo. Há pelo menos mais 20 no corredor da morte
Milhares de pessoas dirigem-se ao cemitério onde está enterrada Mahsa Amini, em Saqez, no Curdistão, em outubro de 2022UGC / AFP / GETTY IMAGES
1 Continua a haver manifestações?
Não, pelo menos com a dimensão de há semanas. As razões para protestar não esmoreceram e o ressentimento pode até ter aumentado perante a repressão do regime à maior vaga de contestação desde a Revolução Islâmica. Mas o enforcamento de manifestantes e a exibição dos cadáveres em guindastes na praça pública incutiram medo. Para a teocracia, é prova de que a violência é uma arma eficaz para silenciar a dissidência.
2 Quantas pessoas já foram executadas?
Há notícia de quatro enforcamentos, um dos quais de um karateca com títulos de campeão nacional. Há mais 20 no corredor da morte e pelo menos 42 enfrentam acusações puníveis com a pena capital.
3 Que outros meios usa o regime para reprimir?
Penas de prisão pesadas, por exemplo. Segundo a Agência Noticiosa de Ativistas de Direitos Humanos (HRANA), durante os protestos foram detidas quase 20 mil pessoas, entre as quais 164 menores. Entre os detidos há figuras públicas, como o futebolista Amir Nasr-Azadani, que esta semana viu a sua condenação à morte ser substituída por 26 anos de prisão. Taraneh Alidoosti, atriz, foi libertada sob fiança.
4 A repressão visa estrangeiros?
Sim. Um trabalhador humanitário belga foi condenado a 40 anos de prisão e 74 chicotadas e um ex-vice-ministro da Defesa iraniano-britânico à morte, acusados de espionagem. Outros casos, porém, são um embaraço para os ayatollahs: uma sobrinha do Líder Supremo foi presa após apelar à comunidade internacional que expulse os representantes do Irão e uma filha do ex-Presidente Akbar Hashemi Rafsanjani foi condenada a cinco anos de prisão por incitar aos protestos.
Artigo publicado no “Expresso”, a 13 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui
Desde que regressou à sua Birmânia natal, Aung San Suu Kyi já viveu sensivelmente tanto tempo em liberdade como presa. Detida pela última vez na sequência do golpe militar de 1 de fevereiro de 2021, enfrenta uma maratona de julgamentos que pode levar a que nunca mais saia em liberdade. “Foi tudo planeado para desacreditar Suu Kyi e garantir que não haja retorno político”, comenta um analista. “Todo o processo visa acabar com as aspirações dela à liderança nacional.”
Quando, aos 43 anos de vida, Aung San Suu Kyi decidiu voltar ao país onde nascera, e de onde saíra com 15, encontrou uma Birmânia (hoje Myanmar) em ebulição. Corria o ano de 1988 e, nas ruas, gigantescas manifestações populares desafiavam a autoridade da junta militar, no poder.
Suu Kyi regressara por razões do coração, motivada pela vontade de acompanhar os últimos tempos de vida da mãe, que sofrera um grave acidente vascular cerebral. Mas o seu ADN político não a deixou indiferente em relação à agitação interna.
Filha do general Aung San, o herói da independência da Birmânia e considerado o pai das forças armadas do país (Tatmadaw), assassinado quando ela tinha apenas dois anos, Suu Kyi tornou-se um ativo do movimento pró-democracia. Ajudou a fundar a Liga Nacional pela Democracia (LND) e proferiu um discurso memorável em frente ao pagode Shwedagon, em Rangum, para meio milhão de pessoas. Com isto tornou-se alvo dos generais.
A 20 de julho de 1989, cerca de um ano após voltar à Birmânia, Suu Kyi foi colocada em prisão domiciliária pela primeira vez. Hoje, cumpre o quarto período de detenção.
Nobel da Paz em clausura
Dos cerca de 35 anos que Suu Kyi viveu em Myanmar, mais de 17 foram passados em clausura: 1989-1995, 2000-2002, 2003-2010 e desde 2021. Foi durante um destes períodos, em 1991, que recebeu o prémio Nobel da Paz “pela sua luta não violenta pela democracia e os direitos humanos”. Na cerimónia em Oslo, representaram-na o marido e os dois filhos.
Aung San Suu Kyi proferiu o seu discurso de aceitação do Nobel da Paz, em Oslo, 21 anos após ter sido galardoada DANIEL SANNUM-LAUTEN / AFP / GETTY IMAGES
Aung San Suu Kyi foi detida pela última vez a 1 de fevereiro de 2021, na sequência de um golpe militar que depôs o Governo que liderava. Desde então, a sua vida transformou-se numa maratona de julgamentos que já lhe valeram um cúmulo jurídico de 33 anos de prisão. Pela frente, enfrenta outras acusações que podem valer-lhe novas sentenças.
A última pena foi-lhe atribuída a 30 de dezembro passado: sete anos de prisão por delitos relacionados com o uso de um helicóptero quando era líder de facto do país.
“Esta sentença final de condenação pela compra de um helicóptero sinaliza o culminar de um julgamento brutalmente ridículo desde o golpe de 2021. Foi tudo planeado para desacreditar Suu Kyi e garantir que não haja retorno político”, diz ao Expresso David Scott Mathieson, analista independente em Chiang Mai (Tailândia), que viveu oito anos em Rangum.
Nos últimos dois anos, sucessivas penas de prisão foram aplicadas a Suu Kyi por incitamento, violação das restrições justificadas com a covid-19, posse ilegal de equipamentos de rádio, violação de uma lei de segredos de Estado da época colonial, corrupção e tentativa de influência de funcionários eleitorais.
Aung San Suu Kyi, no n.º 54 da University Avenue, uma casa de estilo colonial ribeirinha ao lago Inya, onde ela viveu anos em prisão domiciliária CHRISTOPHE LOVINY / GETTY IMAGES
Aung San Suu Kyi é o principal alvo de uma campanha de repressão política levada a cabo pelo regime dos generais contra líderes políticos, ativistas e todos quantos questionem o golpe que terminou com a experiência democrática birmanesa ensaiada a partir de 8 de novembro de 2015, quando o partido de Suu Kyi venceu as eleições legislativas por expressivos 58% dos votos.
Hoje, aos 77 anos, a perspetiva de Suu Kyi passar mais 33 na prisão equivale, na prática, a uma sentença de prisão perpétua. “Quer [os generais] a mantenham encarcerada ou a troquem por concessões e forneçam uma amnistia, todo o processo visa acabar com as aspirações dela à liderança nacional”, diz Mathieson.
Acordo é pouco provável
“Há pouca probabilidade de qualquer tipo de governação compartilhada. Se os militares tentarem usar Suu Kyi como moeda de troca para debelar a violência por todo o país, a realidade vai além disso”, acrescenta o antigo investigador da Human Rights Watch.
A 13 de fevereiro de 2015, envolta numa multidão de apoiantes, na cidade de Natmauk, após uma cerimónia do 100º aniversário do nascimento do seu pai YE AUNG THU / AFP / GETTY IMAGES
“Duvido que muitos dos novos grupos a escutassem se ela tentasse fazer um acordo com o Conselho de Administração do Estado [nome formal da junta militar]. Mesmo que o regime quisesse um acordo, eles não são fiáveis, e muitos dos grupos armados que nunca viram Suu Kyi como sua líder não vão receber ordens dela.”
Vários desses grupos étnicos estão envolvidos numa luta armada com o poder central, que deixa Myanmar, com frequência, à beira de um precipício de violência. No último dia de 2022, a junta prorrogou o acordo de cessar-fogo com os grupos armados até ao fim de 2023. Desde 21 de dezembro de 2018, essa trégua já foi prolongada 21 vezes.
“Os militares calcularam mal o seu golpe e agitaram todo o país contra eles”, diz Mathieson. “Provocaram uma geração mais jovem a lutar contra o regime repressivo. Muitos desses jovens não ouviriam Suu Kyi se ela tentasse liderá-los quando fosse libertada. O país mudou drasticamente.”
Dirigente democrática foi criticada
Aung San Suu Kyi não é uma personalidade imune a críticas. Se a atribuição do Nobel da Paz foi um reconhecimento unânime, o seu silêncio em relação à repressão aos rohingya colocou-a sob fogo. Em 2019, diante do Tribunal Penal Internacional, em Haia, defendeu os militares birmaneses das acusações de genocídio contra os rohingya (palavra que ela nunca usou).
A imagem de Aung San Suu Kyi e a data do golpe militar tatuadas nos braços de birmaneses a viver na Tailândia. A saudação de três dedos é um gesto pró-democracia PEERAPON BOONYAKIAT / GETTY IMAGES
Várias vozes defenderem que o Nobel lhe fosse retirado e algumas organizações recuaram no reconhecimento público que lhe tinham prestado. Em 2018, a Amnistia Internacional revogou o Prémio Embaixador de Consciência que lhe fora atribuído em 2009. E em 2020, Suu Kyi foi excluída da comunidade de laureados com o Prémio Sakharov dos Direitos Humanos por causa “da gravidade e escala da violação dos direitos humanos” que os rohingya enfrentam na Birmânia.
“Apesar das suas muitas falhas, Suu Kyi é inocente de todas essas acusações ridículas [pelas quais está a ser julgada] e é uma refém política”, conclui Mathieson. “O mundo deve exigir a sua libertação imediata e incondicional, juntamente com a dos outros 13 mil presos políticos.”
(FOTO Aung San Suu Kyi, na sede da Liga Nacional pela Democracia, a 8 de dezembro de 2010, dias após ser libertada do seu terceiro período de detenção GETTY IMAGES)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui
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Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.