A Constituição peruana estipula que o mandato presidencial é de cinco anos, mas nos últimos seis, o país teve outros tantos chefes de Estado. A esta demonstração de instabilidade política soma-se a constatação de que, desde 1990, todos os presidentes eleitos enfrentaram processos por corrupção. “Não é uma especificidade peruana”, alerta um politólogo. “É uma característica que o Peru partilha com os restantes países latinoamericanos”
Nos últimos 30 anos, o exercício da democracia no Peru tem tido consequências difíceis de digerir. Em funções ou a posteriori, todos os presidentes do país eleitos por sufrágio universal acabaram a contas com a justiça. Todos sem exceção.
O último caso tem no centro Pedro Castillo, de 53 anos, eleito chefe de Estado a 6 de junho de 2021 e deposto a 7 de dezembro de 2022, quando se preparava para ascender à categoria de ditador. Enquanto enfrentava, no Congresso, um processo de impugnação (impeachment), anunciou na televisão a intenção de dissolver aquele órgão legislativo e instalar um Governo de emergência, em que passaria a ter poderes reforçados.
Sem apoio da polícia e do exército, a tentativa de golpe falhou. Desde então, o país andino vive em ebulição, com protestos de rua que já provocaram 50 mortos. Esta semana, o estado de emergência foi prolongado mais um mês, em Lima (a capital) e noutras duas regiões do sul do país (Puno e Cusco).
Os manifestantes exigem um reset ao sistema político: a demissão de Dina Boluarte — vice-presidente de Castillo, que lhe sucedeu no cargo, e a quem chamam “assassina” em virtude das pessoas mortas nos protestos —, a dissolução do Congresso (“um ninho de ratos”, acusam) e a elaboração de uma nova Constituição.
Os protestos são apoiados pela CGTP Peru (a maior federação sindical nacional), pela maior associação de povos indígenas da Amazónia peruana e por organizações representativas de agricultores pobres. Os manifestantes pedem a libertação de Castillo, condenado a 18 meses de prisão preventiva por rebelião. “É um dos nossos”, “Ninguém me representa agora”, são frases ouvidas nas ruas do Peru, citadas em reportagens publicadas na imprensa.
A vítima tornada verdugo
Antigo professor, sindicalista e agricultor, sem experiência política prévia, Castillo venceu as eleições após apresentar-se ao eleitorado como vítima da elite económica peruana. Acabaria, porém, por deixar-se levar por alguns dos seus vícios.
Na América Latina, os problemas de sucessivos Presidentes com a justiça “não são especificidade peruana, antes característica que o Peru partilha com os restantes países latinoamericanos”, explica ao Expresso o politólogo argentino Ignacio Labaqui.
“No Brasil, Lula da Silva e os antigos presidentes Michel Temer e Collor de Melo foram acusados ou investigados por corrupção. Rafael Correa, ex-Presidente do Equador, também enfrenta acusações por corrupção. Na Argentina, Cristina Fernández de Kirchner foi recentemente condenada, em primeira instância, a seis anos de prisão num caso relacionado com obras públicas. O falecido ex-Presidente Carlos Menem também foi investigado. Nas Honduras, Juan Orlando Hernández foi extraditado para os Estados Unidos por acusações de narcotráfico. E Miguel Ángel Rodríguez, ex-Presidente da Costa Rica, também enfrentou acusações de corrupção. Lamentavelmente, é um fenómeno rompante na América Latina.”
A diferença em relação ao Peru — antiga colónia espanhola conhecida em todo o mundo pelas ruínas da cidadela inca de Machu Picchu — “é que a corrupção como método de exercer a política tem raízes mais profundas nesse país por razões históricas”, acrescenta ao Expresso Aníbal Nicolás Saldías, analista na Economist Intelligence Unit. “E, por, isso vemos que todos os presidentes eleitos desde 1990 estão na prisão ou enfrentam processos judiciais por corrupção.”
- Alberto Fujimori (1990-2000): Preso em 2005, no Chile, e extraditado para o Peru, cumpre sentença de 25 anos de cadeia por violações dos direitos humanos e corrupção.
- Alejandro Toledo (2001-06): Acusado de ter recebido subornos do conglomerado empresarial brasileiro Odebrecht, foi preso em 2019, nos EUA, que se recusaram a extraditá-lo.
- Alan García (2006-11): Suicidou-se em 2019, quando estava prestes a ser preso, implicado num esquema de subornos da Odebrecht.
- Ollanta Humala (2011-16): Foi preso em 2017, no âmbito da investigação ao escândalo Odebrecht. O Ministério Público pede 20 anos de prisão.
- Pedro Pablo Kuczynski (2016-18): Enquanto ministro de Alejandro Toledo, favoreceu contratos celebrados com a Odebrecht. Demitiu-se em 2018, após o segundo impeachment.
- Martin Vizcarra (2018-20): Foi declarado “moralmente incapaz” de governar após dois processos de impugnação. Enquanto governador de Moquegua, recebeu subornos de duas empresas a troco da concessão de obras públicas.
Na galeria dos presidentes dos últimos 30 anos, escaparam à razia três interinos, escolhidos pelo Congresso após o afastamento dos titulares eleitos democraticamente:
- Valentín Paniagua (2000-01), após a renúncia de Alberto Fujimori.
- Manuel Merino (2020), após o impeachment de Martín Vizcarra. Renunciou ao fim de seis dias, depois de duas pessoas terem morrido nos protestos.
- Francisco Sagasti (2020-21), que sucedeu a Merino para um mandato que duraria pouco mais de oito meses.
Segundo a Constituição peruana, o mandato do Presidente é de cinco anos, sem possibilidade de reeleição. Mas nos últimos seis anos, o Peru teve… seis Presidentes.
“É notável que no Peru a justiça tenha independência suficiente para fazer as suas investigações e tenha colocado até o ex-ditador Alberto Fujimori na prisão”, acrescenta Saldías. “Sabendo isso, é surpreendente que ainda haja tanta corrupção, como vimos com o caso de Castillo.”
Castillo candidatou-se à presidência na lista do partido Peru Livre, de esquerda. Beneficiou de amplo apoio nas zonas rurais, com promessas de reformar a Constituição, redistribuir a riqueza oriunda da exploração de cobre — o Peru é o segundo produtor mundial deste minério, a seguir ao Chile — e acabar com a marginalização dos grupos indígenas (quatro milhões de pessoas, segundo os censos de 2007).
Vitória à tangente contra Keiko Fujimori
Na primeira volta, foi o mais votado de 18 candidatos, com 19% dos sufrágios. No tira-teimas final, ganhou à tangente (50,13%) contra Keiko Fujimori (49,87%), filha do ex-Presidente Alberto Fujimori, ela própria alvo de acusações de corrupção enquanto congressista. Castillo tomou posse a 28 de julho de 2021, dia do 200º aniversário da independência do Peru.
Em funções, traiu a sua causa e não escapou a acusações de corrupção. O seu Governo foi comparado a uma porta giratória de entrada e saída de ministros — mais de 80 em 17 meses. Quando foi destituído, ia já no terceiro impeachment. Os primeiros dois, por tráfico de influência e corrupção, não obtiveram os votos necessários para o depor.
Esta sucessão de líderes corruptos — num país de 34 milhões de habitantes onde, pela Constituição, o Presidente é simultaneamente chefe de Estado e de Governo — revela, ao mesmo tempo, uma grande capacidade de resiliência da democracia peruana.
“Uma séria ameaça à democracia peruana vem das lutas entre o [poder] executivo e o [aparelho] judiciário, para evitar que o Presidente vá para a cadeia. Essa luta pode explicar um dos motivos do fracasso do golpe de Castillo, que enfrentava pelo menos seis processos judiciais por corrupção e outros delitos”, recorda Nicolás Saldías.
Inversamente, noutros países, casos como os que envolveram Lula, Correa e Kirchner, que “reclamam haver uma conspiração contra eles”, geram instabilidade política nos seus países, uma vez que estão a duvidar da independência da justiça. Por exemplo, vemos na Argentina a forma como o Executivo de Alberto Fernández está a atacar o Supremo Tribunal de Justiça para enfraquecer o seu poder e autonomia, em defesa de Cristina Kirchner.” Esta realidade foi recentemente denunciada pela organização Human Rights Watch.
O “não” das Forças Armadas ao golpe
Voltando ao Peru, a não adesão da polícia e das forças armadas ao golpe de Castillo revela resiliência constitucional, alguma solidez democrática e o desejo de estabilidade. “Uma coisa que Castillo tentou fazer como ditador foi uma reforma do sistema judicial, que obviamente visava acabar com os processos contra si”, defende Saldías.
“Desta vez, o sistema democrático rejeitou a tentativa de golpe de estado, em parte porque Castillo era um Presidente altamente impopular e com pouca experiência política. Mas da próxima vez, se houver um Presidente popular e tiver o apoio dos militares e da polícia (como Nayib Bukele em El Salvador ou Andrés Manuel López Obrador no México), a democracia peruana enfrentará uma crise abrangente.”
Neste cenário de corrupção generalizada ao mais alto nível político, Ignacio Labaqui identifica dois países sul-americanos que parecem ser exceção. “Embora seja impossível medir a corrupção, Chile e Uruguai apresentam níveis de transparência mais elevados do que o resto da região. Isso não significa que não haja atos de corrupção nesses dois países — no Uruguai, o ex-vice-presidente Raúl Sendic teve de renunciar por esse motivo. Mas não parece ser um fenómeno tão generalizado como noutros países da região.”
“A corrupção é um fenómeno que mina a legitimidade dos regimes democráticos. Quando afeta os níveis mais altos da política, geralmente gera desconfiança e deceção entre os cidadãos, sobretudo se, como no Peru, o Estado não presta serviços públicos básicos de forma eficiente. Isso leva o eleitorado a sentir-se atraído pelo discurso antipolítico e a ver os líderes populistas como uma espécie de novos messias”, conclui Labaqui.
Em muitos aspetos, o Peru é um microcosmos dos problemas que afetam muitas democracias mundo fora. Altos índices de corrupção e acentuadas desigualdades sociais geram desconfiança em relação às instituições políticas e preparam o terreno para o surgimento de teorias da conspiração, divisões sociais e a emergência de perfis com tendências autoritárias, que se aproveitam do caos.
“A crítica à ‘partidocracia corrupta’ costuma ser peça fundamental no discurso dos líderes populistas. E a eleição de um deles tende a agravar os problemas da democracia. A corrupção pode não ter levado à falência da democracia através de um golpe de estado — como aconteceu no passado —, mas contribui para uma espécie de morte lenta da democracia, uma erosão gradual que leva ao êxito, nas eleições, de líderes defensores de soluções autoritárias”.
(IMAGEM Bandeira do Peru FLICKR NICOLAS RAYMOND)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui