Netanyahu adiou polémica reforma judicial “para dar uma oportunidade real ao diálogo” e “evitar a guerra civil”

No fim de um dia de greve geral “histórica” em Israel, em protesto contra a proposta de reforma judicial de iniciativa do governo, o primeiro-ministro de Israel adiou a discussão da nova legislação para daqui a um mês, sensivelmente. “Quando há uma opção para evitar a guerra civil por meio do diálogo, eu reservo um tempo para o diálogo”, disse Netanyahu

Manifestação contra os planos do governo de Benjamin Netanyahu padra a Justiça, a 26 de março de 2023, em Telavive OREN ROZEN / WIKIMEDIA COMMONS

No término de um dia de de greve geral “histórica”, como o qualificou o Histadrut, o grande sindicato israelita, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu dirigiu-se ao país para comunicar o adiamento das leituras finais de uma polémica reforma judicial que está em discussão no Parlamento (Knesset), “para dar uma oportunidade real ao diálogo”.

“Quando há uma opção para evitar a guerra civil por meio do diálogo, eu reservo um tempo para o diálogo.”

Num discurso transmitido pela televisão, Netanyahu disse estar “consciente das tensões” e que “está a ouvir o povo”. “Bibi”, como também é conhecido, disse não estar “disposto a aceitar uma minoria de extremistas desejosa de espartilhar o nosso país em pedaços e a guiar-nos para a guerra civil, apelando à recusa do serviço militar, o que é um crime terrível”.

O primeiro-ministro particularizou um assunto sensível para a segurança de Israel: a recusa de alguns reservistas em participar em exercícios militares, como forma de protesto. “O Estado de Israel não pode prosseguir com pessoas que se recusam a servir no exército. Recusar é o fim do nosso país”, disse.

Netanyahu, que é o israelita que mais tempo desempenhou o cargo de primeiro-ministro, disse que vai “revirar todas as pedras até encontrar uma solução”.

Saudações e reservas

A intervenção de Netanyahu gerou consequências imediatas, com o Histadrut a cancelar a greve geral que tinha convocado para esta terça-feira.

No domínio político, o Presidente Isaac Herzog saudou a interrupção da revisão judicial como “a coisa certa a fazer”. “Agora é a hora de um diálogo honesto e que baixe as chamas.”

O líder da oposição, Yair Lapid, disse estar disponível para “entrar em discussões” com a coligação governamental, mas apenas se “a legislação for realmente interrompida”. Sobram muitas reservas em Israel.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de março de 2023. Pode ser consultado aqui

Israel está a ferro e fogo. Oito perguntas e respostas para melhor entender esta crise

Milhares de israelitas estão nas ruas em cumprimento de uma greve geral que tem na origem um polémico processo de reforma judicial. Para esta segunda-feira à tarde está agendado um protesto de cariz contrário. Há receios de violência nas ruas de Israel

Protesto contra a reforma judicial, a 4 de março de 2023, junto ao centro Azrieli, em Telavive AMIR TERKEL / WIKIMEDIA COMMONS 

Que se passa em Israel?

As ruas de várias cidades estão tomadas por milhares de pessoas que cumprem, esta segunda-feira, um dia de greve geral. Decretada pelo Histadrut, o maior sindicato do país, contagiou outros sindicatos sectários e está a paralisar o país a vários níveis. O aeroporto Ben Gurion, em Telavive, foi encerrado, as universidades anunciaram uma greve por tempo indeterminado, a cadeia de supermercados Big e os restaurantes McDonald’s fecharam portas. São apenas alguns exemplos. Escreve o jornal digital “The Times of Israel” que a embaixada israelita em Nova Iorque também aderiu.

Qual é a origem desta greve?

Este protesto é o mais recente recurso a que recorreu a população de Israel para se manifestar contra um polémico processo legislativo que decorre há mais de três meses — a reforma judicial promovida por Benjamin Netanyahu. Os protestos redobraram de intensidade este fim de semana, em virtude de uma decisão política tomada pelo primeiro-ministro.

Que decisão foi essa?

Domingo à noite, Netanyahu demitiu o ministro da Defesa, Yoav Gallant, membro do seu partido (Likud, direita), horas após este ter defendido publicamente a suspensão da reforma. “A segurança do Estado de Israel sempre foi e sempre será a missão da minha vida”, reagiu Gallant nas redes sociais. Não faltam alertas de que esta polémica demissão pode abrir fendas no aparelho de segurança do país, designadamente levar militares ou outros profissionais de sectores sensíveis a recusarem-se a desempenhar as suas funções. Já esta segunda-feira, o Presidente Isaac Herzog apelou a Netanyahu para que ponha fim “de imediato” à reforma que está a dividir o país.

Como reagiram ‘as ruas’ à demissão?

Os protestos intensificaram-se e poderão resultar em violência. Para esta segunda-feira, às 18h locais (17h em Portugal Continental), em Jerusalém, está marcado um protesto de cariz contrário, de apoio ao primeiro-ministro e à reforma judicial. Segundo o diário “Haaretz”, nas redes sociais grupos de extrema-direita estão a apelar ao uso de “explosivos, armas e facas” no protesto de segunda-feira à tarde.

Por que razão a reforma judicial é polémica?

Basicamente, ameaça a separação de poderes, subordinando o poder judicial ao poder executivo. Por exemplo, o Governo passaria a nomear os juízes do Supremo Tribunal, que é, atualmente, o garante do cumprimento das Leis Básicas de Israel (o correspondente a uma Constituição, que o país não tem) e o único contrapeso ao poder executivo.

Netanyahu insiste nessa reforma por alguma razão especial?

Essencialmente por razões pessoais. O chefe do Executivo está a ser julgado por corrupção, em vários processos. Os processos na justiça não impedem que continue a exercer a função de primeiro-ministro. Está no cargo desde dezembro passado, à frente de uma coligação do Likud com a extrema-direita e os partidos de judeus ultraortodoxos.

Que margem de manobra tem o primeiro-ministro?

As últimas notícias dão conta de que deverá ceder às ruas e anunciar a suspensão do processo de reforma judicial. Mas isso poderá ter custos políticos. O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, o líder de um partido extremista, cujo resultado nas últimas eleições permitiu que Netanyahu regressasse ao poder, ameaçou demitir-se do Governo. Se Ben-Gvir arrastar com ele o apoio do seu partido a Netanyahu, o Governo pode cair.

Como está a relação de forças no Parlamento?

Netanyahu conta com o apoio de 64 deputados num total de 120. Além do Likud, partido que lidera e que é uma formação histórica desde a fundação de Israel, integram a coligação de governo partidos religiosos ultraortodoxos (Judaísmo Unido da Torá, Shas) e formações de extrema-direita (Sionismo Religioso, Força Judaica e Noam). A atual crise em Israel é também um braço de ferro entre uma população que, dizem as estatísticas, continua a ser maioritariamente laica e um Governo cada vez mais refém do fundamentalismo judaico e sionista.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de março de 2023. Pode ser consultado aqui

Acordo de conveniência entre sauditas e iranianos

A normalização da relação diplomática entre Riade e Teerão é uma derrota para os Estados Unidos e Israel

Não haverá muitas rivalidades no mundo tão amplas e antigas como a que opõe Arábia Saudita e Irão. Frente a frente estão um reino árabe que professa uma matriz sunita fundamentalista do islão e uma república islâmica, assente numa interpretação xiita radical, herdeira da civilização persa. A força destas identidades contamina países vizinhos, origina guerras por procuração e torna a estabilidade no Médio Oriente uma quimera.

Ora, dois territórios declaradamente inimigos há quase 1400 anos — quando se deu o cisma entre sunitas e xiitas — não se tornam amigos da noite para o dia. Anunciada a normalização da relação diplomática entre Riade e Teerão, dia 10, sobram interrogações acerca do que a motivou.

“Arábia Saudita e Irão estão a sair da esfera de influência ocidental e, no que toca à Arábia Saudita, da esfera dos Estados Unidos”, diz ao Expresso o investigador Tiago André Lopes, do Instituto do Oriente. “E estão a posicionar-se, por dependência energética, mais próximos da China”, mediadora deste diálogo.

Estes países tinham as relações congeladas desde 2016, na sequência da decapitação de um clérigo xiita saudita, crítico do regime de Riade. No Irão houve protestos, invasão da embaixada saudita e promessas de “vingança divina” por parte do líder supremo, ayatollah Ali Khamenei. Há algum tempo, contudo, que ambos queriam voltar a página das hostilidades, sufocados por problemas económicos e despesas extra decorrentes da guerra no Iémen — onde Teerão apoia os houthis (grupo xiita que tomou o poder pela força) e Riade lançou uma ofensiva com o intuito de os depor.

Dois anos a negociar

“As negociações começaram há dois anos, com mediação do Iraque. Enquanto isso, Omã acolheu conversações entre os houthis e uma delegação saudita. O diálogo começou porque as partes precisavam de chegar a acordo. O aumento da tensão não correspondia aos seus interesses”, diz ao Expresso Javad Heirannia, do Centro do Médio Oriente, de Teerão.

O acordo está muito longe de ser uma parceria estratégica ou tratado de amizade e cooperação. Tem um período de carência de dois meses e prevê apenas a reativação dos canais diplomáticos. “As grandes questões de fundo, as diferenças ideológicas, não vão ficar resolvidas. O que se resolve é a abertura das embaixadas”, explica Tiago André Lopes.

“Não interessa à Arábia Saudita nem ao Irão terem demasiadas frentes abertas. Interessa-lhes fechar esta frente, porque o que os separa continuará a separá-los”, continua o professor da Universidade Portucalense, para quem é claro que ambos buscam “um consenso no que toca aos teatros que estão abertos por causa desta confrontação: Iémen e Líbano”.

Irresolúvel do ponto de vista militar, a guerra no Iémen está num impasse há anos. Em abril de 2022, as partes comprometeram-se com um cessar-fogo, que expirou em outubro. Desde então, mesmo sem renovação formal, a trégua não colapsou, indiciando a vontade de pôr ponto final ao conflito.

Já o Líbano, sem viver em clima de guerra aberta, parece muitas vezes à beira desse precipício, com um sistema político retalhado por 18 grupos confessionais — entre os quais os xiitas do poderoso Hezbollah, apoiado pelo Irão —, uma economia falida e uma sociedade fragilizada pela corrupção. “As diferenças entre Irão e Arábia Saudita criaram um impasse político no Líbano, que não produziu resultados para os dois países e respetivas forças aliadas”, comenta Heirannia.

ARÁBIA SAUDITA E IRÃO BUSCAM CONSENSONOS TEATROS ABERTOS PELO CONFRONTO ENTRE AMBOS: IÉMEN E LÍBANO

O potencial estabilizador desta aproximação consagra a mediadora China. Para lá dessa demonstração de poder, duas circunstâncias precipitaram a convergência entre os dois gigantes geopolíticos do Médio Oriente: o programa nuclear iraniano e o aperto económico saudita.

Recentemente, a Agência Internacional de Energia Atómica revelou que inspetores encontraram, na central iraniana de Fordow, “partículas” de urânio enriquecido a 83,7%, muito próximo dos 90% necessários para a produção da bomba atómica. De nada serviu mais de um ano de negociações em Viena com vista à reativação do acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão (JCPOA), de 2015, ferido com gravidade pela retirada dos EUA ordenada por Donald Trump. E as sanções com que Washington tentou vergar Teerão não impediram o desenvolvimento do acordo.

Estados Unidos são descartáveis

Separada do Irão pelo Golfo Pérsico, a Arábia Saudita percebeu que a melhor garantia de segurança perante o vizinho nuclear é minimizar os riscos de conflito. Por outro lado, Riade luta com dificuldade para concretizar o plano de reformas “Visão 2030”, que visa diversificar a economia do país e dotá-la de novas fontes de receitas. “A Arábia Saudita está a braços com uma grave crise económica, continua muito dependente de recursos petrolíferos e com muita dificuldade em adaptar-se às economias sustentáveis. Tirando o turismo religioso, não tem alternativas. Não pode continuar a ter orçamentos de defesa e a apoiar uma série de movimentos” fora do país, refere Tiago André Lopes.

Acresce a dimensão de segurança e ausências do amigo americano. “Mesmo durante a era Trump, a Arábia Saudita não conseguiu convencer Washington a lançar um ataque contra o Irão a seguir ao atentado dos houthis contra duas refinarias da Aramco”, diz Heirannia. Essa investida, em setembro de 2019, reduziu para metade a produção da empresa estatal saudita e provocou uma subida global dos preços do petróleo.

Por outro lado, continua o iraniano, “a pressão de Riade sobre Washington para incluir a política regional do Irão nas negociações com vista à reativação do JCPOA deu em nada. Os sauditas concluíram que, para evitarem mais gastos, deveriam resolver as diferenças com o Irão.” Acrescenta o português: “A Arábia Saudita percebeu que, no jogo das superpotências, os Estados Unidos são, hoje, descartáveis.”

A necessidade de fechar frentes de conflito é partilhada pelo Irão, castigado há anos por sanções que penalizam a exportação de petróleo e a braços com protestos antirregime que só conseguiu conter após começar a enforcar manifestantes. Para os EUA, a atuação de Teerão foi fácil de encaixar, já que os dois países não têm relações diplomáticas desde a Revolução Islâmica de 1979. Já o ímpeto saudita surpreendeu em toda a linha. “A Administração Biden está a colher os erros da Administração Obama”, e da sua estratégia relativa à primavera árabe, diz Tiago André Lopes. “Nos últimos dois anos, assistimos [na Tunísia] ao colapso do pouco que a primavera árabe trouxe.”

Doze anos depois, está à vista que “o grande vencedor da primavera árabe é a Rússia. Conseguiu entrar de novo no Médio Oriente, foi o único Estado que fez apostas — na Síria — e, grosso modo, venceu-as”, prossegue, frisando que “quem a Rússia apoiou não caiu”. Simbolicamente, Bashar al-Assad visitou Vladimir Putin, no Kremlin, quarta-feira, 12º aniversário do início da guerra na Síria.

O derrotado na aproximação entre sauditas e iranianos, além dos EUA, é Israel, para quem o Irão é uma ameaça existencial e a Arábia Saudita era um possível futuro signatário dos Acordos de Abraão. Este compromisso, com o qual o Estado judeu vinha abrindo brechas no seu isolamento regional, em nada se diferenciava de uma coligação anti-Irão. Resta saber que réplicas se farão sentir após o abalo que foi o acordo Riade-Teerão.

(IMAGEM Mapa do Médio Oriente, publicado em 1950 BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA / PICRYL)

Artigo publicado no “Expresso”, a 17 de março de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

A doença tirou-lhe mobilidade e afastou-o das missões humanitárias, mas Gustavo Carona não se deixou vencer: vêm aí os “Óscares da Bondade”

Quando Gustavo Carona apresentou o projeto a Marcelo Rebelo de Sousa, a ideia não germinou. Agora que tem todo o tempo do mundo, privado de trabalhar pela doença, o sonho ganhou vida. Dezenas de voluntários estão já envolvidos na concretização dos “Prémios Coração e o Mundo”, destinados a reconhecer o trabalho sério e credível, muitas vezes invisível, de indivíduos e organizações em áreas de intervenção social. “Há coisas na nossa sociedade absolutamente maravilhosas a precisar de visibilidade…”, diz o médico ao Expresso

“E o Prémio Coração e o Mundo vai para…” Nos últimos meses, é muito provável que o médico Gustavo Carona tenha “ouvido” esta frase, várias vezes, durante o sono. Afinal, ela remete para o projeto que o toma a tempo inteiro desde que foi forçado a deixar de trabalhar, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, há dois anos.

Com uma doença incurável que lhe provoca dor crónica e o condena a passar grande parte do dia deitado, este intensivista de 42 anos foi ao arquivo dos sonhos para dar sentido aos dias e prosseguir com as ações humanistas que sempre o entusiasmaram.

Numa das gavetas, do cérebro e da secretária, tinha guardado um projeto a que chamou, em tempos, “Prémios Coração e o Mundo”, uma espécie de “Óscares da Bondade”, como o próprio caracteriza em conversa com o Expresso. O médico idealizou-os como forma de reconhecimento do trabalho sério e credível, mas muitas vezes invisível aos olhos do grande público, de indivíduos e organizações em áreas de intervenção social.

“Acredito muito numa cultura de mérito e acredito que nos moldamos pela premiação. Se transportarmos isto para a linguagem empresarial, é só óbvio que o que se premeia é aquilo que depois as pessoas procuram. Nesse sentido, pareceu-me que premiar a bondade, com a vontade de construir uma sociedade com valores mais humanísticos, tem sido uma estratégia pouco utilizada”, diz.

“Há pessoas tão bonitas… Há coisas na nossa sociedade absolutamente maravilhosas a precisar de visibilidade…”

A ideia foi verbalizada pela primeira vez durante as reuniões do Grupo de Reflexão para o Futuro de Portugal, promovidas por Marcelo Rebelo de Sousa, entre 2018 e 2022. Carona era um dos “40 portugueses nascidos depois do 25 de Abril de 1974, a viverem no país e no estrangeiro, preferencialmente sem participação política, com percursos de sucesso, independência e rasgo”, como a iniciativa é descrita no site da presidência.

“Apresentei a ideia ao Presidente da República. Não deu em nada, mas ficou na minha cabeça. E agora saiu cá para fora.”

“Prémios Coração e o Mundo” é o projeto que ocupa Gustavo Carona desde que deixou de poder trabalhar RUI DUARTE SILVA

O foco na bondade e na compaixão decorre muito da experiência de mais de uma dúzia de missões humanitárias realizadas, desde 2009, ao serviço dos Médicos Sem Fronteiras, dos Médicos do Mundo e da Cruz Vermelha Internacional, em zonas de carência extrema como a Síria, a República Democrática do Congo, o Afeganistão ou o Sudão do Sul.

Já tive experiências muito fortes de contacto com realidades de extrema pobreza em África, no Médio Oriente, em situações máximas de desespero, no meio da guerra, e senti uma enormíssima empatia pelo sofrimento destas pessoas. Eu compreendo que quem nunca lá esteve não tenha essa empatia. Não me sinto especial, o que sinto é que fui exposto a circunstâncias especiais.”

Com o mesmo ímpeto com que, durante anos, disponibilizou o seu tempo para correr mundo em socorro dos que mais sofrem, a 13 de novembro passado, Carona divulgou um vídeo nas redes sociais lançando a ideia dos “Prémios Coração e o Mundo” e pedindo ajuda para a concretizar.

O que se seguiu foi avassalador. O vídeo foi somando centenas de milhares de visualizações e as caixas de mensagens do médico viram-se inundadas com milhares de sugestões de nomes de organizações com trabalho digno de ser reconhecido ou simplesmente recados de amigos, conhecidos ou gente seduzida pelo apelo a disponibilizar-se para ajudar.

“A ideia pegou e eu fiquei super nervoso”, confessa. “E agora? Será que tinha conhecimento para montar uma coisa destas? Na verdade, só sei ser médico, tudo o resto é sonho. Comecei a acreditar quando vi pessoas de uma enormíssima qualidade a dizerem: ‘estou dentro, quero ajudar’.”

Foi o caso da realizadora Ana Rocha de Sousa, vencedora de um Leão do Futuro, no Festival de Cinema de Veneza, com o filme “Listen”. A cineasta ofereceu-se para fazer o guião da gala “Prémios Coração e o Mundo”, que já captou o interesse de duas televisões.

O sofá da sala e a cama no quarto tornaram-se as novas secretárias de escritório de Gustavo Carona RUI DUARTE SILVA

Carona pensou no que tinha pela frente e começou a distribuir trabalho pelas mãos solidárias que se lhe estendiam. Para rastrear os milhares de comentários nas redes e agrupar as organizações sugeridas por categorias, pediu ajuda à Beira Aproxima, uma associação humanitária formada por estudantes de Medicina da Universidade da Beira Interior, com sede na Covilhã, vocacionada para realizar missões de voluntariado em países em desenvolvimento, da qual o médico portuense é padrinho.

Este apuramento é essencial para que, posteriormente, um júri composto por “pessoas com décadas de ação humanitária”, dirigentes de organizações experientes na área social e humanitária, já consagradas a nível nacional, selecione 68 organizações — quatro por 17 categorias — que serão as protagonistas da gala “Prémios Coração e o Mundo”.

As 17 categorias que irão a votos são: habitação, arte de intervenção, terceira idade, pessoas com deficiência, pessoas em situação de sem-abrigo, direitos das mulheres, pobreza, direitos LGBT+, jornalismo, além-fronteiras – Saúde, além-fronteiras – Educação, refugiados e imigrantes, alterações climáticas, pessoa, crianças e adolescentes em risco, racismo e defesa dos animais.

“Porque é que nos estamos sempre a queixar de que a sociedade é fútil, se aquilo que premiamos é futilidade? Se premiarmos bondade e humanidade, a sociedade vai ser mais bondosa, mais humana”

Este projeto não pretende ocultar os problemas, visando “também mostrar a beleza das soluções. Claro que há coisas tristes, mas passam a ser as coisas mais bonitas do mundo se nós olharmos de coração aberto e fizermos parte da ajuda”.

Gustavo Carona e o inseparável Zaidu, um dos seus dois cães, na sua casa, em Matosinhos RUI DUARTE SILVA

No espetáculo que se projeta, o público será chamado a votar para distinguir uma organização em cada categoria. Será um reconhecimento meramente simbólico já que o objetivo é que todas as 68 associações recebam um prémio monetário de igual valor.

“O vencedor receberá uma estatueta. Mas, para tentarmos manter um princípio de equidade, para contrapormos o facto de, por um lado estarmos a pôr organizações a competir entre si, e por outro, todas fazerem um trabalho incrível, vamos premiar monetariamente todas de igual forma”, explica Carona. Cada uma à sua maneira, todas contribuem para “o verdadeiro impacto”.

Fruto de uma exposição mediática que já leva alguns anos, primeiro decorrente das missões humanitárias e, mais recentemente, de múltiplas intervenções públicas a propósito da pandemia, Carona chegou facilmente à fala com um conjunto de figuras públicas pedindo-lhes que apadrinhassem/amadrinhassem a iniciativa e tentassem contagiar outros pares, ou simplesmente divulgassem a ideia dos Prémios nas suas redes sociais.

Como que a comprovar esta dinâmica, a conversa com o Expresso é interrompida pela chegada de uma SMS com boas notícias. É enviada pelo ex-futebolista Tarantini (Rio Ave), informando ter já garantida a adesão ao exército de voluntários de dois outros futebolistas internacionais.

Um exército de voluntários

Do sonho à realidade, este exército de voluntários tem ainda muito trabalho pela frente: a construção de um site (prestes a surgir), a constituição de uma associação para efeitos de questões administrativas, campanhas de angariação de fundos e de patrocinadores, além da produção do espetáculo.

“Às vezes digo que quero que isto seja sexy. Porquê? Não podemos ter uma plateia de pessoas a bater palmas com muita pena dos pobrezinhos… Isto tem de envolver artistas bons, conhecidos, mas também que tenham ação humana na sua forma de estar. E toda a apresentação da gala que seja alegre, que seja a projeção de sorrisos pelo bem que estas pessoas fazem à nossa sociedade”, diz.

“Não acham bonito premiar as pessoas mais humanas da nossa sociedade?”

Corrida a cortina da gala, Carona gostava que “as associações se sentissem orgulhosas do seu trabalho e fossem reconhecidas por uma grande fatia dos portugueses por aquilo que fazem. Elas precisam de ser incentivadas. Essa seria a conquista”.

(FOTO PRINCIPAL Gustavo Carona passa grande parte do dia deitado, a única posição que o alivia das dores crónicas RUI DUARTE SILVA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de março de 2023. Pode ser consultado aqui

Cristiano Ronaldo, o novo avançado da ambição internacional da Arábia Saudita

A Arábia Saudita quer enterrar de vez a imagem negativa que a persegue fora de portas e conta com o prestígio de Cristiano Ronaldo para consegui-lo. Esta parceria pode atravessar-se na corrida de Portugal ao Mundial de 2030

A transferência de Cristiano Ronaldo (CR7) para o clube Al-Nassr, da Arábia Saudita, aos 38 anos, pode soar a princípio do fim da carreira de um futebolista extraordinário que recebeu por cinco vezes a Bola de Ouro, troféu que consagra o melhor jogador do mundo. Para o país que o acolheu, contudo, Ronaldo é a esperança de uma grande transformação.

Entre a visibilidade que veio dar ao campeonato saudita e a animação que gera no seio de uma população de 35 milhões, em que 70% têm menos de 35 anos, Ronaldo contribui, pela positiva, para a afirmação internacional de um país agastado por uma imagem ultraconservadora e desrespeitadora dos direitos humanos e por um estatuto que depende, em exclusivo, da abundância de petróleo.

“Julgo que a ida de Ronaldo para a Arábia Saudita é uma mistura de soft power e exercício de marketing, dois conceitos que estão ligados entre si”, comenta ao Expresso David Roberts, professor no King’s College de Londres. “Diz respeito a um reposicionamento mais vasto da Arábia Saudita e à tentativa de criar uma narrativa fundamentalmente diferente, que a afaste de questões negativas e de imagens do passado” e conduza o país “em direção a um sentimento popular inequívoco mais positivo”. Para este perito em assuntos do Médio Oriente, “Ronaldo é muito importante nesse novo pensamento”.

A arma da imagem

Nos manuais de Ciência Política, soft power (poder brando) é um conceito que remete para a capacidade de influência de um país por via do exemplo, dos valores e da aposta em áreas como a cultura e o desporto. Por contraponto, o hard power (poder duro) é o recurso a meios coercivos, sejam militares ou económicos, como as sanções.

“Acredito que a Arábia Saudita esteja a investir no desporto porque reconhece que um país não pode confiar apenas no hard power. Também precisa de soft power para manter boas relações com outros países”, diz ao Expresso Danyel Reiche, professor na Universidade de Georgetown no Qatar. “Por isso, reconhece que os poderes militar e económico não bastam e que também precisa de investir na sua imagem.”

Pelo respeito que conquistou dentro e fora dos relvados, CR7 é uma extraordinária ferramenta de soft power para um país desesperado por reabilitar a sua imagem, degradada nos últimos anos pela campanha de bombardeamentos no Iémen e, sobretudo, pelo caso de Jamal Khashoggi, jornalista saudita crítico do regime que foi assassinado e desmembrado no interior do consulado da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia.

A investigação ao crime implicou diretamente o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MbS), homem forte do reino e principal mentor de um amplo programa de reformas com que o país se quer abrir ao mundo e no qual CR7 pode ser um peão importante.

Do Newcastle à Fórmula 1

“Ronaldo reflete a mudança na política de poder, que conta não apenas com o hard power, mas passa a visar também o soft power”, diz Reiche. Na área do desporto, “os investimentos começaram antes de Ronaldo, com os jogos [de futebol] referentes às Supertaças de Espanha e de Itália a realizarem-se na Arábia Saudita” e a compra do Newcastle United F.C., clube tradicional inglês, por um fundo de investimentos pertencente à família real saudita.

O país investiu também nos desportos motorizados, passando a acolher o mítico rali Dacar em 2020 e, no ano seguinte, inscrevendo uma corrida no calendário de Fórmula 1, o Grande Prémio de Jeddah, que este ano se realiza a 19 de março. Em 2022, a Arábia Saudita criou o torneio LIV Series, uma espécie de superliga do golfe.

Desde que foi lançada em 2016, a estratégia “Visão 2030” — o tal plano de reformas — tem por objetivo primordial diversificar a economia saudita e reduzir a dependência do reino relativamente à indústria do petróleo, impulsionando, por exemplo, o sector do turismo.

Em paralelo, o programa tem implícito o objetivo de aliviar o controlo wahabita — doutrina religiosa ultraconservadora, austera e puritana, que é religião oficial do Estado — sobre a sociedade. O fim da proibição de as mulheres conduzirem, em 2018, foi uma das medidas mais simbólicas e mediáticas, bem como a autorização da entrada das cidadãs sauditas nos estádios de futebol.

Concubinato é ilegal, mas…

Neste capítulo, a presença de Ronaldo e família na Arábia Saudita é desafiante. Tanto quanto se sabe, o futebolista não é casado com a companheira e o concubinato é prática interdita no reino. Os analistas ouvidos pelo Expresso desvalorizam essa condição, realçando o percurso que a Arábia Saudita vem trilhando em matéria social.

“Se é verdade que Cristiano e a sua companheira não são casados, não vejo que isso seja problema. O atual Governo saudita indicou de várias formas que está a tentar romper com o passado e não se importa com essas abordagens conservadoras da velha guarda”, diz Roberts, autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City State”.

“O Governo muda as políticas e retira poderes e influência às crenças religiosas e afins. Nesse sentido, mesmo que a lei não seja consentânea com a realidade, não me parece que isso seja uma preocupação” para as autoridades sauditas, acrescenta o docente.

A tolerância de que Ronaldo beneficia no que respeita à sua condição matrimonial vem em linha com uma lei adotada em 2019, que passou a permitir que turistas estrangeiros solteiros partilhem um quarto de hotel, e que levou as autoridades a fecharem os olhos a algumas dinâmicas dos habitantes estrangeiros.

“O relaxamento das normas sociais não começa com o facto de Ronaldo morar com a sua companheira sem serem casados”, diz Reiche, investigador nas áreas do desporto, política e sociedade. “Há muitas mudanças sociais em curso na Arábia Saudita e o desmantelamento da polícia religiosa em 2016 foi, na minha opinião, a maior de todas.”

Abaya niqab já não são obrigatórios

Formada na década de 1940, a chamada Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício destruía instrumentos musicais, invadia salões de beleza, rapava cabeças, chicoteava pessoas e queimava livros. Difícil é imaginar como atuaria perante um casal com um estilo de vida e exposição mediática que vão além do que é aceite na Arábia Saudita, ainda que o uso da abaya (túnica comprida) e do niqab (véu quase integral) já não seja obrigatório em público para as mulheres.

Roberts não acredita no potencial de contestação social que a falta de sincronia entre o quotidiano de Ronaldo e a realidade saudita possa originar. “Não acho que o Governo saudita sinta pressão de movimentos sociais dentro do país. É muito controlado e controlador, está aos comandos da narrativa.”

A nova estrela do Al-Nassr F.C. (“A Vitória”, em árabe), um dos principais clubes de Riade, é campeão dentro e fora dos relvados. Ronaldo tem mais de 550 milhões de seguidores na rede social Instagram, mais de 160 milhões no Facebook e quase 108 milhões no Twitter.

A sua companheira, a influencer argentina Georgina Rodriguez, é seguida por cerca de 47 milhões de pessoas no Instagram. Se, em público, “Gio” procura primar pela discrição, nas redes sociais posa para as selfies com a ousadia de sempre.

Através das redes sociais, o casal funciona como vitrina para sinais de mudança no país que é o guardião dos dois principais lugares santos do Islão — as mesquitas de Meca e de Medina.

Acusações de sportswashing

A 3 de janeiro, quando foi apresentado em Riade, o próprio CR7 reclamou um papel nesse processo. “Tive muitas oportunidades… Muitos clubes tentaram contratar-me, mas dei a minha palavra a este clube para desenvolver não só o futebol, mas outras áreas deste país fantástico”, disse na conferência de imprensa.

“Quero dar uma visão diferente deste clube e deste país. É por isso que aproveitei esta oportunidade.”

A opção do futebolista português pela Arábia Saudita, Estado não muito cotado nos rankings de respeito pelos direitos humanos, motivou a Amnistia Internacional a emitir um comunicado ao estilo de apelo.

“Cristiano Ronaldo não devia permitir que a sua fama e estatuto de celebridade se tornem uma ferramenta saudita de sportswashing [uso do desporto para melhorar a reputação e mascarar ações merecedoras de condenação]. Devia usar o seu tempo no Al-Nassr para falar sobre a miríade de problemas com os direitos humanos no país.”

Circunscrevendo o impacto do português ao sector desportivo, Ronaldo pode contribuir fortemente para o desenvolvimento da modalidade no reino e noutros países árabes, à semelhança da importância de Pelé no aumento da popularidade do soccer nos Estados Unidos. O “rei” jogou no Cosmos de Nova Iorque entre 1975 e 1977 — os Estados Unidos organizam o Mundial em 1994.

A Arábia Saudita não parece disposta a esperar tanto pelo seu momento. Depois de o futebol ao mais alto nível ter chegado ao Golfo Pérsico com o Mundial no Qatar, em 2022, a Arábia Saudita parece ansiosa por também acolher esse torneio.

Notícias recentes dão conta de que o reino terá sondado o Egito e a Grécia no sentido de uma candidatura conjunta ao Mundial de 2030. Com o anúncio do(s) país(es) organizador(es) previsto para o próximo ano, uma candidatura saudita poderia robustecer-se com o apoio de Ronaldo.

Ronaldo contra Portugal?

“Não tenho a certeza de que 2030 seja hipótese realista para a Arábia Saudita, já que acaba de realizar-se um Campeonato do Mundo no Qatar”, diz Reiche. “Mas é certo que a Arábia Saudita quer ter o seu Mundial um dia, mesmo que não seja em 2030.”

A eventualidade de Ronaldo se tornar uma espécie de embaixador do projeto colocá-lo-ia em rota de colisão com as pretensões de Portugal, que já está na corrida em conjunto com Espanha e Ucrânia.

“É provável que, se a Arábia Saudita lançar uma candidatura ao Mundial de 2030, vá querer que Cristiano desempenhe um papel fundamental nisso, obviamente”, diz Roberts. Em relação à possibilidade de ir contra o seu país, “acontece o mesmo com Messi, suspeito que fosse um momento estranho para ambos”.

Lionel Messi entra em campo porque também a Argentina está na corrida pelo Mundial de 2030, num projeto conjunto com Uruguai, Chile e Paraguai. O astro argentino é ainda embaixador da campanha Visit Saudi, do Turismo da Arábia Saudita. Se esta concorrer ao Mundial de 2030, é bem possível que Ronaldo e Messi passem, por fim, a fazer parte da mesma equipa… saudita.

(FOTO A 22 de fevereiro de 2023, Cristiano Ronaldo associou-se às comemorações do Dia da Fundação do reino TWITTER DO AL-NASSR)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de março de 2023, e na Tribuna Expresso, a 12 de março de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui