Papa Francisco pede “esforços criativos pela paz” que abafem os “solistas da guerra”

O líder da Igreja Católica chegou, esta sexta-feira, à Hungria para realizar a sua 41ª viagem apostólica. Num país que, nos últimos anos, tem levantado obstáculos ao acolhimento de imigrantes e em que o apoio à Ucrânia é morno, o Papa Francisco não contornou nenhum dos temas. Sobre o acolhimento de migrantes, citou as palavras de fraternidade de um santo húngaro: “Aqueles que chegam com línguas e costumes diferentes ‘adornam o país’”

Papa Francisco, em Budapeste, na Hungria VATICAN NEWS

O Papa Francisco retomou as suas viagens apostólicas, após um internamento hospitalar, em março, que deixou os católicos apreensivos em relação ao seu estado de saúde e, esta sexta-feira, rumou à Hungria.

Ainda no voo que o levou de Roma a Budapeste, questionado por jornalistas sobre o seu estado de saúde, o Sumo Pontífice brincou: “Ainda estou vivo”, disse, acrescentando que “ervas daninhas teimosas nunca morrem”.

Chegado a Budapeste, o Papa, de 86 anos, evidenciou ‘boa forma física’ — abdicando, por vezes, da cadeira de rodas e percorrendo curtas distâncias apoiado apenas numa bengala — e a assertividade política de sempre. Na primeira intervenção pública, no palácio presidencial, para uma audiência de notáveis em que se encontravam membros do Governo liderado pelo nacionalista Viktor Orbán, Francisco foi incómodo.

“Cada vez mais, o entusiasmo pela construção de uma comunidade de nações pacífica e estável parece estar a esfriar, à medida que zonas de influência são delimitadas e diferenças acentuadas”, defendeu. “O nacionalismo está em ascensão e julgamentos e linguagem cada vez mais ásperos são usados no confronto com os outros.”

Com Orbán na plateia, Francisco alertou para os perigos do aumento do nacionalismo na Europa e defendeu que acolher imigrantes — em fuga à pobreza e às guerras do Médio Oriente e de África —, como o fazem vários membros da União Europeia, é um verdadeiro sinal de cristandade.

E para que não subsistissem dúvidas em relação à mensagem que queria transmitir, citou Santo Estêvão (975-1038), o primeiro rei da Hungria, canonizado pelo Papa São Gregório VII em 1083. “Santo Estêvão legou ao seu filho palavras extraordinárias de fraternidade quando lhe disse que aqueles que chegam com línguas e costumes diferentes ‘adornam o país’”, disse Francisco, citando o mandamento do santo que incita as pessoas a “acolher os estrangeiros com benevolência e a tê-los em estima’.

“Buscar a unidade, não agravar as divisões”

As palavras de Francisco têm implícita uma crítica à posição anti-imigração muitas vezes expressa pelo chefe de Governo húngaro em defesa de uma “Europa cristã”. No mesmo sentido, as autoridades de Budapeste ordenaram a construção de uma cerca em arame na fronteira com a Sérvia para impedir que a Hungria se transforme num “país de imigração”.

Defendeu o Papa: “É urgente, como Europa, trabalhar em vias seguras e legais, em mecanismos partilhados face a um desafio epocal que não se pode travar rejeitando-o, mas deve ser acolhido para preparar um futuro que, se não for de todos em conjunto, não existirá”.

Francisco apelou ainda ao regresso ao “espírito europeu” que esteve na origem da constituição da Europa moderna do pós-II Guerra Mundial, defendendo que os países têm de “olhar para além das suas fronteiras nacionais”. “É vital recuperar o espírito europeu: a emoção e a visão de seus fundadores (…) e gerar formas de diplomacia capazes de buscar a unidade, não agravar as divisões.”

O líder da Igreja Católica não esqueceu a guerra que opõe dois países de matriz cristã e que se trava não muito longe da Hungria — que partilha 137 quilómetros de fronteira com a Ucrânia. Nos corredores políticos, Budapeste tem destoado do conjunto dos 27, expressando um apoio morno à Ucrânia, apoiando a sua soberania, mas recusado o envio de armas.

“Num discurso cuidadosamente calibrado”, como o qualificou a agência Associated Press, o Papa rejeitou a “beligerância adolescente” e pediu “esforços criativos pela paz” que abafem os “solistas da guerra”.

A 41ª viagem apostólica de Francisco durará três dias. Esta sexta-feira, foi dia de encontros separados com a Presidente Novak Katalin e com o primeiro-ministro Viktor Orbán. Para o próximo domingo, está prevista uma missa ao ar livre, em frente ao Parlamento, com vista sobre o rio Danúbio.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui

Lula em Matosinhos: “O Brasil está de volta. É por isso que eu estou a tentar parar de falar em guerra e constituir a paz”

O Brasil é incomparavelmente maior e mais populoso do que Portugal, mas tem sido maior o investimento português no Brasil do que vice-versa. Passado o apagão dos anos de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, Lula da Silva e António Costa querem dar gás à relação comercial bilateral e marcaram presença num fórum empresarial luso-brasileiro, em Matosinhos. “O Brasil está de volta para ser protagonista internacional. Por isso, estou a tentar parar de falar em guerra e constituir a paz”, disse Lula. Costa acrescentou: “Agora que voltou, não vamos nunca mais deixá-lo sair”

Lula da Silva, Presidente do Brasil, no CEIIA, em Matosinhos RICARDO STUCKER

“Você deve ter uns dois anos e pouco de mandato ainda. Podemos estabelecer uma meta: o que nós queremos que aconteça entre Brasil e Portugal? A gente pode conseguir isso. Na política você tem de estabelecer a meta, ter um projeto, não pode ficar governando conforme o vento. Você determina estrategicamente aquilo que você quer que aconteça.”

Ao quarto dia de estadia em Portugal, o Presidente do Brasil deslocou-se ao norte do país para assinalar a abertura do Fórum Empresarial Portugal-Brasil, em Matosinhos, e desafiar o primeiro-ministro português, António Costa, ao estabelecimento de metas bilaterais.

“O Brasil está preparado para voltar a ser um país grande, importante e atraente. E o Brasil quer construir políticas de parcerias”, disse Luís Inácio Lula da Silva. “Não queremos relações hegemónicas com ninguém. Não é porque nós somos grandes que nós temos de ter hegemonia”, sossegou o chefe de Estado brasileiro. “Queremos construir parcerias com as empresas portuguesas e queremos que os empresários portugueses construam parcerias com as nossas empresas.”

A escutá-lo, no Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Produto (Ceiia), estavam mais de 120 empresários portugueses e brasileiros – das áreas da energia, mobilidade, tecnologia, inovação e saúde –, os protagonistas do Fórum Empresarial Portugal-Brasil.

Costa enumera os trunfos portugueses

António Costa aceitou o desafio, admitiu que o crescimento na relação comercial bilateral tem estado “muito aquém do seu enorme potencial” e acenou com trunfos que a podem potenciar.

Ao nível da transição digital, “Portugal e o Brasil são os pontos de amarração do novo cabo de fibra ótica que liga todo a América Latina ao continente europeu, parte de Fortaleza e chega a Sines”, disse o primeiro-ministro. “É a nova ponte física que existe de ligação entre os dois continentes através dos nossos países.”

Relativamente à transição energética, “Portugal tem estado, desde há 15 anos, na vanguarda”, disse Costa. “58% da eletricidade que hoje consumimos tem origem nas energias renováveis e temos a meta que, daqui a quatro anos, 80% da eletricidade que consumimos tem origem nas energias renováveis.”

Costa não poupou nos argumentos e destacou mais quatro fatores potenciadores da relação:

  • o dinamismo bilateral ao nível do empreendedorismo, recordando que este ano, pela primeira vez, a Web Summit vai realizar-se também no Rio de Janeiro;
  • “um regime bom para acolher investimento e inovação”, nomeadamente a nível fiscal e de autorização de residência;
  • a qualificação dos recursos humanos portugueses, referindo que Portugal tem a terceira taxa de recém-graduados em engenharia da UE, atrás da Áustria e Alemanha.
  • o papel de Portugal como “verdadeiro ponta de lança”, disse Costa, na defesa da conclusão do acordo de comércio entre a União Europeia e o Mercosul, uma organização intergovernamental regional fundada em 1991 com cinco países membros (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela) e outros sete associados.

Após o apagão que significou a presidência de Jair Bolsonaro relativamente à relação entre Portugal e o Brasil, a estratégia de Lula da Silva de relançamento do diálogo passa pelo impulso da economia e do comércio.

“Sempre se tratou Portugal como um país pequeno”, admitiu Lula da Silva. “Portugal era a entrada do Brasil para a Europa, para a Alemanha ou França. Nada melhor do que estabelecer uma relação com Portugal e, a partir daqui, produzirmos juntos e expor os produtos para outros países europeus. É muito mais fácil.”

Relação é hoje como há 12 anos

A deslocação de Lula da Silva a Portugal, ao fim de três meses de governo, é a quarta ao estrangeiro após a reeleição — após Argentina, Estados Unidos e China — e a primeira à Europa. “Agora que o Brasil voltou, não vamos nunca mais deixar o Brasil sair”, afirmou António Costa.

Com raízes familiares na zona de Aveiro, como fez questão de partilhar, Jorge Viana, presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (APEX), realçou que, hoje, “o fluxo comercial entre Portugal e Brasil é muito parecido com o que tínhamos há 12 anos”, à época da primeira vez de Lula no Palácio do Planalto. “Ou seja, deixamos de crescer, estagnamos”.

Para se perceber o quanto falta fazer entre os dois países, os números falam por si. Apesar do Brasil ser incomparavelmente maior e mais populoso do que Portugal, tem sido maior o investimento dos portugueses no Brasil do que de empresários brasileiros em Portugal. Jorge Viana afirmou que “em 2022, o fluxo comercial atingiu os 5300 milhões de dólares. Houve um crescimento, muito vinculado à exportação de petróleo, não de produtos manufaturados que geram emprego de parte a parte”.

O fluxo de investimentos de Portugal no Brasil é ainda maior: em 2021, “somaram 11.900 milhões de dólares acumulados, mas já alcançaram a marca de 13 mil milhões na época do Governo do Presidente Lula”, disse Jorge Viana. “Há a expectativa de que voltemos a ter um crescimento exponencial do fluxo de investimentos.”

Em Matosinhos, as partes deram um primeiro passo através da assinatura da renovação do protocolo de entendimento entre a APEX e a congénere portuguesa, Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP).

KC-390, uma face visível da cooperação

O Brasil é um dos 10 maiores investidores em Portugal, o segundo maior fora da União Europeia, “muito aquém do enorme potencial de investimento que tem”, registou Costa. Para Portugal, “o Brasil figura no terceiro lugar do investimento direto no exterior, mas somos somente o 18º investidor no Brasil. Ninguém tem dúvidas do potencial do Brasil e da dimensão de Portugal, mas, francamente, 18º não é a nossa posição. Temos de subir”, desafiou o governante português.

O regresso de Lula da Silva a Lisboa decorreu também sob o signo da cooperação Portugal-Brasil. O chefe de Estado brasileiro viajou a bordo de uma aeronave KC-390, o maior projeto de engenharia desenvolvido entre os dois países.

Esta aeronave resulta de 12 anos de trabalho conjunto entre o Ceiia – nasceu no período em que Lula era Presidente –, as OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal, a Força Aérea Portuguesa e a Embraer. Produzido por esta empresa brasileira, o Ceiia contribuiu com o desenvolvimento de dois terços da estrutura da aeronave.

A despedida de Matosinhos não se fez sem que antes Lula da Silva aflorasse, ainda que indiretamente, o tema que o tem perseguido na sua visita a Portugal. “O Brasil está de volta, e está de volta para ser protagonista internacional. É por isso que eu me estou dedicando em tentar parar de falar em guerra e constituir a paz.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui

O veto não é democrático, mas sem ele os cinco grandes sairiam da ONU

A guerra na Ucrânia tornou a reforma do Conselho de Segurança praticamente impossível

Há 20 anos, o mundo estava tomado por uma guerra. Com o argumento de que havia que neutralizar as armas de destruição maciça do ditador Saddam Hussein, os Estados Unidos invadiram o Iraque, à frente de uma coligação de países, mas sem o respaldo de uma resolução da Organização das Nações Unidas (ONU). A maioria dos 15 membros do Conselho de Segurança (CS) — o órgão de decisão, por excelência, da organização — pedia tempo para que os inspetores encontrassem as armas. Mas o interesse dos Estados Unidos foi noutro sentido.

Na atualidade, o mundo contorce-se com outro conflito com impacto global — a invasão russa da Ucrânia, desencadeada com base numa narrativa propagandeada pelo Kremlin, segundo a qual russos e ucranianos são “uma nação”. Também aqui o agressor é um membro permanente do CS.

Conjunturas políticas como estas colocam as Nações Unidas sob fogo, incapazes de tomar decisões consentâneas com os valores que defendem, desde logo punindo um Estado-membro, por mais poderoso que seja, pela agressão a outro.

Três vetos a Portugal

Politicamente, esta organização intergovernamental assenta na Assembleia-Geral — onde todos os membros têm igual peso nas votações — e no Conselho de Segurança, o verdadeiro órgão decisor, com 15 membros, cinco dos quais permanentes (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) e com poder de bloqueio de decisões. Na década de 1940, por três vezes a União Soviética (precursora da Federação Russa) vetou a adesão de Portugal às Nações Unidas.

Este privilégio do veto é contestado há décadas, mas contextos como o atual — com a Rússia (que este mês preside ao CS) a vetar resoluções condenatórias da sua própria atuação na Ucrânia — tornam a reforma do órgão mais urgente. “O veto foi dado às potências vencedoras da II Guerra Mundial na esperança que fossem a garantia da paz internacional. Não são nem nunca foram. A questão do veto tem de ser ultrapassada”, afirma ao Expresso António Monteiro, embaixador de Portugal nas Nações Unidas entre 1997 e 2001.

Juiz em causa própria

Um senão: “Só quem pode reformar o CS é o próprio CS. E já percebemos que não há muito interesse nisso. Mais ainda na conjuntura atual, que se está a complicar e bastante. Estamos numa situação cada vez mais imprevisível”, diz ao Expresso Victor Ângelo, que foi secretário-geral adjunto de Kofi Annan (1997-2006) e de Ban Ki-moon (2007-16). “Neste momento, tendo em conta a grande divisão que existe no CS, em particular a oposição entre Estados Unidos e Rússia, entre Estados Unidos e China, a aliança entre Rússia e China e a ideia de que o mundo vai para uma situação de bipolaridade, a reforma do CS é praticamente impossível.”

“O veto foi dado às potências vencedoras da II Guerra Mundial na esperança que fossem a garantia da paz. Não são, nem nunca foram”, defende o ex-MNE António Monteiro

O funcionamento da ONU e a atribuição do veto a cinco países são regidos pela sua Carta fundadora, assinada a 26 de junho de 1945 em São Francisco. O documento não sustenta a possibilidade de um membro permanente ficar sem veto, mas prevê a suspensão da participação de outros membros na Assembleia-Geral.

“A guerra na Ucrânia veio mostrar a inadequação deste modelo, que vem do final da II Guerra Mundial, ao que é hoje o equilíbrio de poderes do mundo”, diz Monteiro, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros (2004-05). Se, em 1945, a Carta foi assinada por 50 países, hoje a ONU tem 193 membros. “O modelo de CS não só não contribui para resolver os conflitos como pode até agravá-los ou dar azo a que se perpetuem.”

Longe vão os anos em que, terminada a Guerra Fria, parecia haver harmonia suficiente na comunidade internacional para se reformar a ONU. Para se perceber quão distantes estão esses tempos, recorde-se que, a 27 de maio de 1997, foi assinado o Ato Fundador sobre Relações Mútuas, Cooperação e Segurança, entre a Rússia e… a NATO. “Nos anos 90, tinha terminado a rivalidade com a União Soviética e acreditou-se que seria possível fazer a reforma do CS”, diz Victor Ângelo. “Já não correspondia ao mundo que existia, e hoje ainda menos.”

Da vontade de refazer o CS, com base sobretudo em critérios geográficos e económicos, começaram a brotar dificuldades. África queria representatividade, mas três candidatos acotovelavam-se: África do Sul, Nigéria e Egito. Na América Latina, o Brasil surgia como hipótese óbvia, mas tinha a concorrência da outra grande economia da região, o México, com influência sobre Washington.

Na Ásia, a Índia — hoje prestes a substituir a China como país mais populoso do mundo — era consensual, mas também seriam opções o Paquistão (potência nuclear), a Indonésia (poder islâmico) e o Japão (poder económico), este com garantida oposição da China. Mesmo entre os europeus, havia que partir pedra. A Alemanha, motor económico do continente, seria presença evidente num CS reformado. Mas em vez de alemães, franceses e britânicos individualmente, não deveria estar a União Europeia?

Um órgão antidemocrático

À parte o alargamento, Monteiro insiste que o foco deve ser colocado “no funcionamento do CS e, sobretudo, no poder de veto de cinco países, que transforma o CS num órgão antidemocrático. Basta um membro permanente estar em causa para não só vetar as decisões como usar a ameaça do veto como meio de pressão para que as negociações sigam em determinado sentido”.

Que caminho seguir, então? Conferir o veto a mais países ou acabar com ele? Victor Ângelo vaticina: “Um CS sem direito de veto significaria que os cinco países sairiam da ONU. O veto é fundamental para os manter dentro do sistema. Dá-lhes uma espécie de escudo protetor. Esses países têm grandes interesses geoestratégicos, o veto é maneira de terem um mínimo de garantias de que esses interesses serão defendidos. Sejamos realistas: têm esse direito e não vão abdicar dele.”

Tendo trabalhado 32 anos na ONU, considera que uma organização universalista não dispensa um órgão mais restrito. “Quando foi concebido, o CS tinha dois grandes objetivos: evitar novo conflito entre as grandes potências, por isso os cinco mais importantes ficaram com poder de veto; e funcionar como órgão de decisão que permitisse resolver os conflitos no resto do mundo.” A guerra na Ucrânia prova que estão por cumprir.

QUEM VETOU O QUÊ

URSS/RÚSSIA: 122 vetos É quem mais recorre ao veto. Desde 1946, já o fez 90 vezes enquanto União Soviética e 32 como Federação Russa (pós-1991). Nos últimos anos, os russos têm sido amigos dos regimes da Síria, Coreia do Norte, Venezuela e Mianmar. A União Soviética vetou em três ocasiões a adesão de Portugal: 1946, 1947 e 1949.

ESTADOS UNIDOS: 82 vetos Mais de um terço dos seus vetos foram relativos à “questão palestiniana” ou aos “territórios árabes ocupados”, sempre em defesa de Israel. Há ainda 12 relativos à “situação no Médio Oriente”. Foi na década de 80 que Washington mais vetou (42). Adiou a adesão à ONU do Vietname e de Angola.

REINO UNIDO: 29 vetos Só cinco vezes aplicou o veto individualmente: foi nos anos 60 e 70 e sempre por causa da Rodésia do Sul (colónia britânica, futuro Zimbabué). Em 13 vezes fê-lo em conjunto com Estados Unidos e França, nove só com os americanos e em duas ocasiões com os franceses.

CHINA: 17 vetos Vetou 14 resoluções com a Rússia. Bloqueou decisões a solo três vezes: sobre a Antiga República Jugoslava da Macedónia, a paz na América Central, e chumbou a adesão do Bangladesh.

FRANÇA: 16 vetos Vetou 13 vezes com Londres e Washington, duas só com os britânicos. Em 1976 bloqueou sozinha uma resolução relativa às ilhas Comores.

(IMAGEM Bandeira da Organização das Nações Unidas WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Israel bombardeou Gaza e o Líbano. Está iminente uma nova guerra? Seis perguntas e respostas para compreender

O Estado judaico está em polvorosa, com protestos antigovernamentais nas ruas, tensão religiosa em Jerusalém, violência no território palestiniano ocupado da Cisjordânia e o regresso do terrorismo a Telavive. Como que se não bastasse, uma chuva de rockets disparados do Líbano fez Israel recuar aos dias da guerra com o Hezbollah

1 Que indícios fazem recear um conflito?

Há exatamente uma semana, o chefe de Estado-Maior da Força Aérea de Israel, general Herzi Halevi — que reside num colonato judaico no território palestiniano da Cisjordânia e está no cargo há três meses —, ordenou uma mobilização de reservistas. Não foi divulgado o número de operacionais abrangidos, mas, segundo a imprensa local, a convocatória afeta, entre outros, pilotos de caças e operadores de drones. A decisão foi anunciada um dia depois de Israel ter bombardeado o sul do Líbano e o território palestiniano da Faixa de Gaza.

2 Que alvos bombardeou Israel?

Posições do Hamas, grupo islamita que controla Gaza e cujo líder político, Ismail Haniyeh, estava de visita ao Líbano. Para Israel, os bombardeamentos foram uma retaliação pelo disparo de 34 foguetes a partir do Líbano contra território israelita, o maior ataque lançado dali desde os 34 dias de guerra entre Israel e o Hezbollah, no verão de 2006. No Líbano, o líder do Hamas reuniu-se precisamente com Hassan Nasrallah, chefe do Hezbollah — partido e milícia xiita, aliado do Irão —, para avaliar a “prontidão do eixo de resistência” face à escalada.

3 Qual o motivo do aumento da tensão?

Desta vez e (quase) sempre, Jerusalém. Em época de Ramadão, a polícia israelita invadiu várias vezes a mesquita de Al-Aqsa, o terceiro lugar santo do Islão, na Cidade Velha, para controlar “desordeiros”. O comandante da polícia reconheceria o uso de “força excessiva” para dispersar os fiéis barricados no templo. No passado, visitas de judeus radicais às imediações de Al-Aqsa inflamaram os ânimos e motivaram o disparo de rockets de Gaza. Esta semana, o primeiro-ministro Netanyahu vedou o acesso do local a judeus até ao fim do Ramadão (dia 21).

4 A tensão toma apenas Jerusalém?

Não. Há violência na Cisjordânia, envolvendo palestinianos, colonos judeus e forças israelitas; na Faixa de Gaza (sob bloqueio), com lançamento de foguetes contra Israel; e no coração de Israel. Horas após o ataque a Gaza e ao Líbano, um turista italiano foi morto e cinco italianos e britânicos ficaram feridos, depois de um carro investir contra transeuntes que passeavam pela marginal de Telavive. O condutor era um árabe israelita, natural de Kafr Qasem, uma das cidades que, nos últimos anos, têm sido palco de violência entre judeus e árabes.

5 Que resposta dá o Governo?

Apoiado em partidos religiosos e extremistas, o Executivo de Netanyahu enfrenta múltiplos fogos. Com o Parlamento em férias da Páscoa, há uma pausa nos protestos populares contra a polémica reforma do sistema judicial, que subalterniza a justiça ao Governo. Mas o assunto continua efervescente. Esta semana, numa demonstração inédita de fraqueza política, Netanyahu recuou na decisão de demitir o ministro da Defesa — Yoav Gallant, militante do seu partido Likud (direita) —, que exonerara por ter defendido a suspensão da reforma. Afinal, Gallant fica.

6 Quão coesos estão os militares israelitas?

A discussão em torno da reforma judicial, que será retomada em maio, expôs objeções no sector. O ministro Gallant, militar de carreira, foi o principal rosto dessas reticências, mas os alarmes soaram com intensidade quando reservistas aderiram aos protestos, mostrando-se indisponíveis para servir. O desconforto contagiou também os serviços secretos, os quais, segundo documentos do Pentágono despejados na internet (texto ao lado), instigou aos protestos antigoverno.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui

Possíveis efeitos de um derrame no “Safer”

Além do dano ambiental, a fuga de crude destruiria o sector da pesca no Iémen e bloquearia o comércio pelo Mar Vermelho

Imagem de satélite do petroleiro “Safer” FOTO MAXAR TECHNOLOGIES

HUMANITÁRIAS

GUERRA Antes de estalar a guerra civil, o Iémen já era um dos países mais pobres do mundo. Hoje, 90% dos mais de 30 milhões de habitantes sobrevivem graças à ajuda humanitária internacional. Um derrame da dimensão da carga do “Safer” obrigaria a encerrar o porto de Hudaydah, o segundo maior do país, importante porta de entrada de assistência humanitária e de tudo o que o Iémen importa. Estima-se também que mais de 8 mil poços fossem contaminados, tornando o acesso à água ainda mais difícil e potenciando surtos de doenças.

AMBIENTAIS

BIODIVERSIDADE A fuga de 156 mil toneladas de crude para o mar exporia milhões de pessoas, no Iémen e na vizinhança, a altos níveis de poluição. Provocaria também uma grande destruição de fauna e flora, numa área que é um verdadeiro santuário de biodiversidade. Segundo a organização ambiental iemenita Holm Akhdar (sonho verde, em árabe), haveria também impacto direto no ecossistema do Mar Vermelho, onde há 416 espécies de peixes, 485 de algas, 625 de moluscos, 53 de crustáceos e 16 tipos de tubarões. Seria também uma sentença de morte para as mais de 300 espécies de recifes de coral.

ECONÓMICAS

PESCA Com cerca de 2500 quilómetros de costa, 186 ilhas e abundantes recursos marinhos, a indústria da pesca é, naturalmente, um esteio da economia iemenita. Um derrame atingiria não só o Mar Vermelho como o Golfo de Aden, acabando com o ganha-pão de 126 mil pescadores, num país onde as ofertas de trabalho não abundam. Entre os outros países potencialmente mais afetados por um desastre em torno do “Safer”, o Jibuti tem sido das vozes mais ansiosas. Nos últimos anos, o “Safer” merece menção constante nos discursos dos governantes do Jibuti na Assembleia-Geral da ONU.

COMERCIAIS

ROTA Se não fosse suficientemente grave o amplo impacto de um incidente no “Safer” para o Iémen e países vizinhos, uma tal catástrofe teria inevitavelmente consequências na Europa, já que provocaria a disrupção do trânsito pelo Mar Vermelho. Estima-se que 10% do comércio global sejam transportados por essa rota, em todo o tipo de embarcações.

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Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui