Os profissionais indianos são particularmente procurados por empregadores da área das tecnologias, desde logo grandes multinacionais estrangeiras. Essa aptidão resulta de décadas de investimento no sector educativo, em especial no ensino de Matemática e Ciências. Em Mumbai, onde vive, Eugénio Viassa Monteiro detalha razões para o protagonismo indiano ao nível das tecnologias. Leia também, na edição impressa de 19 de maio, um extenso trabalho sobre as promessas sempre adiadas de um país que vai tornar-se o mais populoso do mundo, ultrapassando a China

Algumas das multinacionais mais reconhecidas em todo o mundo têm à frente gestores nascidos na Índia. São disso exemplos Google, Microsoft, IBM, FedEx, Adobe Inc. ou PepsiCo. Este denominador comum não é obra do acaso.
Os indianos não têm propriamente características genéticas que os capacitem de forma mais especial para as tecnologias, mas usufruem, desde tenra idade, de um sistema educativo que investe na Matemática e nas Ciências.
Em entrevista ao Expresso a partir de Mumbai, onde vive, Eugénio Viassa Monteiro destaca a criação dos Institutos Indianos de Tecnologia, “extremamente seletivos e onde se formaram cabeças brilhantes” como um segredo do sucesso da Índia em matéria de tecnologia. Nascido em Goa, em 1944, este cofundador da AESE Business School, de Lisboa, é autor do livro “O Despertar da Índia” (Alêtheia Editores, 2009).
Por que razão os indianos são grandes talentos na área das tecnologias?
Dentro da pobreza de vida na Índia, explorada até ao tutano pelos ingleses e, mais tarde, após a independência, a funcionar num modelo decalcado do soviético, de economia planificada, controlada e propensa a grande corrupção, e com enorme pobreza e miséria, os pais de família, pensando na melhoria de vida dos seus filhos, davam grande importância ao estudo da Matemática e das Ciências, em detrimento dos desportos e de outros saberes mais literários. Lembro-me de, em Goa, por exemplo, nos anos 1960, haver pouquíssimas escolas primárias públicas. Mas a grande maioria das crianças estudava em escolas de aspeto miserável, na língua marati [falada sobretudo no vizinho estado de Maarastra], pagando uma propina irrisória, e onde aprendiam aritmética, tabuada, cálculo mental, etc.
Com que objetivo?
A ideia do primeiro-ministro Jawaharlal Nehru [1947-1964] era apoiar o crescimento rápido da Índia nas áreas da Ciência e Tecnologia. Daí ter criado os célebres Institutos Indianos de Tecnologia (IIT), extremamente seletivos, onde se formaram mentes brilhantes que hoje dominam grandes multinacionais estrangeiras e indianas.
Hoje, há na Índia 23 IIT e milhares de instituições de formação em Engenharia, promovidas por cada um dos estados, por entidades privadas, etc. E há os Institutos Indianos de Tecnologia da Informação (IIIT). Na Índia, o sector das Tecnologias de Informação (TI) ocupa mais de cinco milhões de especialistas, sendo o país uma potência neste campo. Na mesma linha, foram criados os Institutos Indianos de Administração (IIM, na sigla inglesa), muito afamados também, para impulsionar todo o desenvolvimento empresarial e económico. Há 20 IIM na Índia e milhares de Escolas de Administração.
Entre os Institutos mais relevantes, saliento as Escolas Médicas, sendo o Instituto de Ciências Médicas de Toda a Índia (AIIMC) o modelo das Faculdades de Medicina. Hoje há 22 AIIMC na Índia. Entre AIIMC e Escolas Médicas, a Índia tem hoje 654 Faculdades de Medicina, que recebem todos os anos aproximadamente 100 mil estudantes e quase 65 mil para pós-graduação.
Tudo isto possibilita uma boa capacidade de resposta à procura que os profissionais indianos têm no estrangeiro…
A grande solicitação de engenheiros, dirigentes empresariais e, em especial, de médicos tem crescido pela qualidade da sua preparação e sobretudo pela competência e disciplina de trabalho. Os Estados Unidos souberam valorizar o mérito dos engenheiros, médicos e gestores indianos. Poucos países europeus o souberam reconhecer. Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia têm os olhos postos na Índia para atrair os seus licenciados com formação superior. A Índia quer ter os médicos altamente especializados de que necessita e, ao mesmo tempo, deixar que partam os que assim o queiram.
A Índia tem muita pobreza, mas, ao mesmo tempo, projeta a construção de 100 cidades inteligentes (smart cities). É possível o país tornar-se referência ao nível das sociedades digitalizadas sem resolver o problema da pobreza?
O objetivo das smart cities é criar cidades que forneçam as infraestruturas básicas para dar uma qualidade de vida decente aos seus cidadãos. Para tal, há um orçamento de mais de $24 mil milhões de dólares [€22 mil milhões] para realizar 7804 projetos. Destes, 5246 estavam já concluídos em finais de janeiro último. A população urbana está a crescer e, em 2030, cerca de 40% da população da Índia viverá nas cidades. É bom preparar as condições de vida nas futuras cidades. Há também numerosos programas para dotar de habitação os mais pobres, criar trabalho nas zonas rurais e, sobretudo, para lhes canalizar apoios, algo como o “rendimento mínimo”.
Há algum projeto particularmente emblemático?
Um projeto extraordinário, iniciado por Manmohan Singh [primeiro-ministro entre 2004 e 2014], é o Aadhaar Card, uma espécie de cartão de cidadão, em que cada pessoa tem o seu cadastro pessoal, um número individual [de 12 dígitos] e todos os dados pessoais e biométricos. Desta forma, a canalização de apoios faz-se diretamente para a conta bancária do titular, sem desvios. E 99% das casas de família têm conta bancária. Melhor ainda: 77% da população (com mais de 14 anos) tem a sua conta bancária.
Que representa o sector das tecnologias para o Governo indiano? É uma aposta prioritária?
Todo o sector das TI nasceu da iniciativa privada. Daí ter crescido com muita força e, sobretudo, com grande velocidade. Diz-se que por pouco saberem sobre como controlar e submeter projetos ao regime das Licenças Raj [termo pejorativo usado para designar o controlo apertado do Governo à economia, entre as décadas de 1950 e 1990], burocratas e ministros deixaram andar. Foi como nasceu e cresceu o sector que hoje emprega cerca de cinco milhões de especialistas.
Que empresas de TI destacaria?
Há quatro maiores: a Tata Consultancy Services (TCS), criada em 1968 e hoje com 556 mil trabalhadores; a Infosys, fundada em 1981 e com mais de 335 mil funcionários; a HCL Technologies, formada em 1991 e com mais de 225 mil colaboradores; e a WIPRO Technologies, com 232 mil especialistas [e escritório em Portugal].
Como é que isso se reflete internamente? Como são as comunicações na Índia, por exemplo?
As comunicações telefónicas na Índia passaram de ser uma absoluta nulidade para serem das mais eficazes e baratas de todo o mundo. Em 1995, haveria na Índia 5,3 milhões de telefones de rede fixa, o telefone era considerado um luxo. Com a liberalização do sector, que deixou entrar todos os operadores que quisessem, a competição eliminou aqueles que viviam à sombra do poder. Triunfaram os empreendedores muito bons.
Hoje há três grandes operadoras: Airtel, Reliance e Vodafone-Idea. No total há mais de 1180 milhões de assinantes de rede móvel e cerca de 22 milhões de rede fixa. Os custos das comunicações, que são um instrumento de trabalho, são irrisórios. O G5 está praticamente acessível em todo o país e há projetos ao nível do G6 para que a Índia tenha voz ativa na área da tecnologia e nos padrões de qualidade.
A produção anual de TI e serviços associados é de $250 mil milhões (€230 mil milhões), dos quais $190 mil milhões (€175 mil milhões) são exportados. O restante destina-se ao consumo doméstico.
No âmbito da digitalização, para tirar partido da Inteligência Artificial (IA) ou Machine Learning, Internet das Coisas e Robótica, a disponibilidade de talentos é decisiva para garantir o progresso e tornar os processos mais eficazes e fiáveis.
Esse é um factor muito atrativo para quem investe nessas áreas…
Muitos grandes empregadores (empresas de TI, por exemplo) sentiram forte impacto com o estabelecimento na Índia de muitos Centros de Capacitação Global (CCG), os centros de tecnologia e serviços das multinacionais que as ajudam a transformarem-se digitalmente e ao nível da inovação. Os CCG estão a crescer rapidamente à medida que as empresas globais procuram talentos na Índia. Espera-se que, até 2026, mais de 500 CCG sejam adicionados aos 1500 já existentes, que empregam 1,3 milhões de pessoas.
As multinacionais procuram os melhores especialistas, não se importando de pagar muito bem. Daí, a saída de talentos das empresas locais para os GCC. As saídas de trabalhadores de alto valor é, em geral, algo muito bom e importante para o país e para os próprios. Os melhores saem, porque valem; outros, com boas capacidades, vão especializar-se, e esperar por novos convites.
(FOTO Na cidade indiana de Lucknow, a capital do estado de Uttar Pradesh, estudantes celebram os bons resultados em clima de festa DEEPAK GUPTA / GETTY IMAGES)
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Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de maio de 2023. Pode ser consultado aqui