O sistema de castas é ilegal, mas o preconceito existe. Várias questões culturais fragilizam ‘a maior democracia do mundo’

O país mais populoso do mundo, simultaneamente o sétimo em área, é um complexo xadrez com várias etnias e religiões, regiões com pretensões separatistas, poder político central nacionalista e perseguições a minorias. E ainda um sistema de castas que condiciona a distribuição do trabalho pela população e engrena o elevador social.
SOCIEDADE POR CASTAS
A discriminação que Gandhi não resolveu
Há séculos que a sociedade indiana está estratificada em castas. Este sistema emana do Código de Manu, parte de um conjunto de livros bramânicos que são a base do hinduísmo. A linhagem sanguínea, e não a posse de bens, determina a pertença a uma casta. Há milhares, agrupadas em quatro grandes grupos: os brâmanes, mais sábios (sacerdotes, professores, filósofos), criados, segundo a mitologia hindu, a partir da cabeça de Brama, o deus que criou o Universo; os xátrias, guerreiros (soldados, polícias, governadores) que nasceram dos braços de Brama; os vaixás surgiram das pernas (comerciantes) e os sudras dos pés do deus (camponeses, artesãos, operários). Na base da pirâmide estão os dalits, os mais miseráveis, aos quais Madre Teresa de Calcutá dedicou a vida. Criados do pó que Brama pisou, recolhem lixo e limpam lavabos.
Após a independência, o sistema de castas foi ilegalizado, mas sobreviveu na forma de tradição e preconceito. Para combatê-lo, um mecanismo de discriminação positiva reserva empregos públicos aos grupos inferiores. “O problema é a integração das castas inferiores nas mais altas. Não são consideradas iguais. É um grande problema para a mobilidade social”, diz Amit Singh, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Mas factos provam que o sistema não é estanque. A atual Presidente da Índia, Draupadi Murmu, escolhida por eleição indireta, é uma mulher dalit. E há os dalit millionaires, que aproveitaram a abertura económica para fazer milhões. Em 2018, ao “El País”, Tushar Gandhi, bisneto de Mahatma, diz que livrar os dalits do estigma de intocáveis foi um fracasso que o ícone da resistência pacífica carregou até ao fim da vida: “O sistema de castas estava tão arraigado nesta cultura que o assédio continua, 70 anos depois.”
VIOLÊNCIA ÉTNICA
O preço da marginalização
Na Índia, cerca de 104 milhões de pessoas (8,6% da população) pertencem a tribos. Por estes dias, o Estado de Manipur (Nordeste) — que, como Caxemira, era um “Estado principesco” à época da colonização britânica — é prova de que a convivência sonhada por Gandhi (assassinado por um radical hindu) é uma ilusão. Pelo menos 60 pessoas morreram em confrontos entre grupos étnicos. Prédios, veículos e dezenas de igrejas foram incendiados. Cerca de 35 mil pessoas ficaram desalojadas. A origem da violência remonta a 3 de maio, quando milhares de membros das tribos kuki e naga, que vivem nas montanhas de Manipur e são “tribos reconhecidas” pela Constituição, saíram à rua em protesto contra a possibilidade de o mesmo estatuto ser atribuído ao grupo maioritário no Estado: os meiteis (não tribal), que vivem no vale fértil.
Tal significaria que as quotas de empregos públicos para kukis e nagas (sobretudo cristãos) teriam de ser partilhadas com essa comunidade hindu. Militares e polícias foram mandados em peso para as ruas e o acesso à internet foi cortado. “A separação é a única resposta”, defendeu um kuki, falando com o jornal “The Guardian”. “Isto é uma limpeza étnica do povo da montanha. Só podemos sentir-nos seguros como minoria se tivermos o nosso próprio Estado.”
INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
Agenda nacionalista hindu ao ataque
Desde que estreou, a 5 de maio, “The Kerala Story” tornou-se um êxito de bilheteira na Índia. Este filme hindu conta a história de um grupo de mulheres de Querala que se converteu ao islão e aderiu ao grupo terrorista que proclamava o Estado Islâmico. A associação entre religião e terrorismo, vista na Índia como provocação hindu à minoria muçulmana de 200 milhões, levou à proibição do filme em alguns Estados indianos e nos cinemas do Reino Unido. A Comunidade Hindu de Portugal chegou a anunciar três sessões em Lisboa, cancelando-as depois de o anúncio gerar reações nas redes sociais. “A mensagem geral deste filme não coincide com a sua missão religiosa e cultural”, justificou depois a Comunidade. Tecnicamente, a Índia é um país laico, mas a agenda supremacista hindu do Partido do Povo Indiano (Bharatiya Janata), do primeiro-ministro, Narendra Modi, tem potenciado inimizades entre hindus e muçulmanos. A tensão máxima localiza-se em Caxemira, único Estado de maioria muçulmana.
EROSÃO DA DEMOCRACIA
Tiques autocráticos contra os críticos
Os alertas renovam-se a cada novo relatório sobre o estado da democracia no mundo: a Índia já só é uma democracia parcial. Opositores, académicos, jornalistas que critiquem ou indisponham as autoridades de alguma forma têm sido criminalizados ao abrigo de legislação contra o terrorismo e a sedição, esta última uma herança colonial britânica. Por enquanto, no Ocidente a passadeira continua a estender-se, sem reservas, para receber o líder da “maior democracia do mundo”. A 22 de junho, Modi será recebido por Joe Biden na Casa Branca e a 14 de julho será o “convidado de honra” de Emmanuel Macron no dia da Tomada da Bastilha.
Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de maio de 2023. Pode ser consultado aqui ou aqui
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