População vasta e jovem não garante à Índia o estatuto de potência global que hoje tem a China, o outro colosso demográfico

A Índia está num momento-chave da sua história. O rápido crescimento continuará, provavelmente, e até vai acelerar”, vaticina a prestigiada “Foreign Affairs”. “Trabalhadores da Índia, tendes a atenção do mundo”, diz a respeitada “The Economist”. “A Índia desperta”, prevê a consagrada “Time”. “Alimentada por um crescimento de alta octanagem [resistente à pressão], a maior democracia do mundo está a tornar-se uma potência global. Pelo que o mundo nunca mais será o mesmo.”
Qualquer destas análises ao momento da Índia foi feita… há quase 17 anos. Já em 2006 a projeção internacional daquele país era uma certeza anunciada. Chegados a 2023, essa promessa continua por cumprir, mas o potencial continua a alimentar o mesmo tipo de expectativa. “Será este o ‘século indiano’?”, perguntava, há dias, o influente “The New York Times”.
Sem certezas quanto ao dia exato, 2023 ficará na História como o ano em que a Índia ultrapassou a China, tornando-se o país mais populoso do mundo, com mais de 1425 milhões de habitantes. Este marco não resulta de um crescimento demográfico exponencial — na Índia, a taxa média de fecundidade é de dois filhos por mulher —, antes do declínio populacional da China, após décadas de restrições à natalidade impostas pelo Governo de Pequim. Hoje, uma chinesa tem, em média, 1,2 filhos.
“O problema com a população na Índia é que milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza [$2,15/€2 por dia, segundo o Banco Mundial]”, diz ao Expresso o investigador Amit Singh, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Estima-se que em 2019 mais de 600 milhões de indianos (cerca de 45% da população) viviam com menos de 3,65 dólares (€3,30) por dia. “O Governo atual não cuida da população marginalizada, que pode ser um ativo mas também pode tornar-se um fardo.”
Amit Singh é natural do Estado de Utar Pradexe, o mais populoso. No mundo, só quatro países — China, Estados Unidos, Indonésia e Paquistão — têm mais habitantes do que essa região do Norte da Índia.
A força da juventude
“Por si só, o crescimento demográfico não é necessariamente sinónimo de outros tipos de crescimento”, acrescenta ao Expresso Paulo Duarte, professor de Relações Internacionais nas Universidades do Minho e Lusófona. “Pode até ser paradoxal no aumento de maiores riscos, porque nem sempre o crescimento da população é acompanhado pelo aumento de empregos, e isso pode gerar tensões.”
As expectativas em torno do crescimento da Índia assentam noutro registo impressionante. O país tem uma das populações mais jovens do mundo, com uma média de idades a rondar os 29 anos. “Chegou a hora. O mundo inteiro olha para a Índia e a maior razão para isso é a juventude. Yuva Shakti [poder da juventude] é a força motriz da jornada de desenvolvimento da Índia”, empolgou-se o primeiro-ministro, Narendra Modi, em janeiro passado, num discurso perante o Corpo Nacional de Cadetes, em Nova Deli.
A Índia tem uma das populações mais jovens do mundo, com uma média de idades a rondar os 29 anos
Para que o país agarre a oportunidade proporcionada por uma população vasta e jovem e destrone a China também a nível económico, contudo, há investimentos urgentes a fazer a nível do capital humano. “Em circunstâncias normais, ter uma população e uma força de trabalho jovens pode ser um boom para qualquer nação”, diz Amit Singh. “Mas para o Governo indiano a educação não tem sido prioridade, bem como a criação de emprego para os jovens. O desemprego é o mais alto de sempre, em 2023 anda à volta dos 7,5%. É o maior desde a independência”, declarada a 15 de agosto de 1947.
A Índia é independente há 76 anos, mas só há pouco mais de 30 funciona numa lógica de mercado. Os recentes protestos de agricultores, que se prolongaram durante mais de um ano, são sintoma do descontentamento gerado pela aplicação de reformas económicas num sector que dependia de subsídios e de preços fixos estabelecidos pelo Executivo.
Dinheiro sem valor do dia para a noite
“Na Índia há uma falta de visão a curto, médio e longo prazos”, segundo Paulo Duarte. “Não há planos quinquenais, como na China, que é um país comunista mas onde o capitalismo é cada vez mais omnipresente e selvagem. Na China produz-se e projeta-se a longo prazo desde tempos milenares. No próprio Partido Comunista, que tem mais de 90 milhões de militantes, tudo é projetado no tempo e no espaço de forma holística. Esta é uma diferença importante em relação à Índia”, prossegue o académico, a comparar os dois gigantes.
Amit dá como exemplo da falta de planeamento do Governo de Modi — que está no poder há nove anos — o caótico 8 de novembro de 2016, quando, sem aviso prévio, o primeiro-ministro comunicou na televisão que à meia-noite daquele dia as notas de 500 e 1000 rupias (€5,50 e €11 ao câmbio atual), as de maior montante, deixariam de ter valor de circulação e teriam de ser depositadas no banco.
Num país onde a esmagadora maioria das transações se faz em dinheiro vivo, Modi justificou a medida com a necessidade de combater a economia paralela e a circulação de dinheiro ilícito e falsificado. “O dinheiro negro e a corrupção são os maiores obstáculos à erradicação da pobreza”, explicou. Ao não acautelar as consequências, porém, o anúncio originou uma corrida às notas de baixo valor. De um dia para o outro, milhões de indianos viram-se sem trocos para pagar a despesa na padaria.
“Isto teve impacto no sector manufatureiro e efeitos devastadores ao nível da pequena e média indústria”, diz o investigador indiano. “Claro que a Índia está a crescer, mas os benefícios desse crescimento económico vão apenas para ricos e para a elite.”
Estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) preveem que em 2023 a economia indiana seja a que mais cresce em todo o mundo, na ordem dos 5,9%. Ainda que de forma involuntária, há aqui dedo da China. “A pandemia e a guerra comercial [entre EUA e China] mostraram que não pode estar quase tudo localizado na ‘fábrica do mundo’. É impensável, caso surja outra pandemia, estar-se dependente de um único país”, defende Paulo Duarte.
Aptidão para as tecnologias
Várias multinacionais reconheceram que colocar os ovos todos no cesto da China foi má estratégia. Marcas como as desportivas Nike e Adidas ou as tecnológicas Apple e Samsung já começaram a deslocalizar estruturas de produção. Dado a aptidão dos indianos para a área das tecnologias, a Índia surge como alternativa natural.
Dhruva Jaishankar, diretor da Observer Research Foundation America, em Washington, não crê que os indianos tenham características inatas para essa área. “Uma explicação possível é a combinação da ênfase dada ao ensino STEM [modelo de aprendizagem focado em Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemáticas] nos sistemas escolar e universitário indiano, combinada com uma educação básica em inglês, que torna os indianos empregáveis no exterior”, afirma ao Expresso.
“É notável que haja um número tão grande de engenheiros e profissionais de ciência e tecnologia indianos a trabalhar em todo o mundo, muitas vezes com grande procura.” Ao mais alto nível, são exemplos disso os CEO Satya Nadella (Microsoft), Sundar Pichai (Google), Indra Nooyi (PepsiCo), Arvind Krishna (IBM) e Raj Subramaniam (FedEx), nascidos na Índia.
A 18 de abril, Tim Cook inaugurou, em pessoa, a primeira loja da Apple na Índia, em Mumbai, a capital financeira. A gigante americana já instalou unidades de produção de iPhones nos Estados de Tâmil Nadu e Carnataca, cuja capital é Bangalore, a “Silicon Valley” indiana. Num relatório enviado a clientes em outubro de 2022, analistas do banco JPMorgan previram que até 2025 um em cada quatro iPhones seja fabricado na Índia.
UMA DIMENSÃO ÚNICA
86 mil
crianças nascem na Índia, em média, todos os dias. Na China, esse número ronda os 49.400. A taxa de natalidade indiana é de dois filhos por mulher, enquanto na China caiu para 1,2
100
smart cities [cidades inteligentes] serão desenvolvidas por toda a Índia no âmbito de um programa de renovação e modernização urbana lançado pelo Governo em 2015. Utar Pradexe é o Estado com mais projetos (14)
23%
das indianas realizam um trabalho pago, diz o Banco Mundial. No vizinho Bangladeche esse número é de 37%, e na China de 63%. Na Índia, as mulheres são ainda pressionadas a não trabalhar fora de casa
ÍNDIA PRECISA DE ‘FILHOS ÚNICOS’?
Em 1979, a braços com um crescimento exponencial da sua população e receios de que o país não produzisse o suficiente para alimentar tantas bocas, a China impôs o limite de um filho por casal. Em 2016, a restrição passou a dois filhos e em 2021 foi abolida. Hoje, Pequim contabiliza os custos dessa política, que levou a esterilizações, abortos forçados, feminicídios e retirou sentido às palavras “irmã” e “irmão”. “A Índia não precisa de medidas restritivas centradas no controlo, como a política do filho único. O seu percurso demonstra que o declínio da fertilidade pode ocorrer sem coerção. O programa de planeamento familiar é voluntário e alcançou o nível de fertilidade de reposição [dois filhos por mulher] sem quaisquer medidas coercivas”, assegura ao Expresso Poonam Muttreja, diretora-executiva da Fundação da População da Índia. Esta responsável rejeita o cenário de “explosão” demográfica. Salienta que o país está no caminho da estabilização, após ter mudado de paradigma: “A ênfase era o controlo populacional”, agora está em “melhorar a qualidade de vida como meio de alcançar uma população estável”.


Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de maio de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui
RELACIONADO: Feridas sociais minam a projeção internacional
RELACIONADO: Talento dos indianos para as tecnologias tem explicação: a educação

