De crise em crise na direção do abismo

Em 76 anos, nunca um primeiro-ministro concluiu um mandato. Mas o problema do país não é só político

Imran Khan (ao centro) é o politico mais popular do Paquistão GLOBELY NEWS

Há um ditado entre os estudiosos das relações internacionais segundo o qual o Paquistão não é bem um país, mas antes “um exército com um país dentro”. A hipérbole reflete o peso das Forças Armadas naquele Estado de 76 anos que já viveu longos períodos em ditadura militar. Mesmo quando não estão formalmente no poder, os generais são omnipresentes. “São atores de veto”, diz ao Expresso Daniel Pinéu, que viveu três anos e meio no Paquistão e lecionou na Universidade Quaid-i-Azam, em Islamabade.

“Os militares têm um império económico brutal. A quantidade de generais que são gestores de empresas públicas e municipais, reitores de universidades, donos de grandes negócios ou estão presentes nos órgãos diretivos de bancos é muito grande”, continua. “Os militares controlam e retiram daí grandes vantagens económicas. Os únicos sistemas de pensões ou de saúde que funcionam razoavelmente bem no país são os militares. Eles têm uma série de privilégios de que não vão abrir mão.”

Esta preponderância justifica muita da ingovernabilidade que já se tornou uma sina paquistanesa. Desde a independência (1947), o Paquistão já teve 31 primeiros-ministros e nenhum conseguiu levar um mandato de cinco anos até ao fim. “Torna-se praticamente impossível haver uma estratégia de médio ou longo prazo no país, seja do que for”, realça o analista.

A crise política atual opõe os militares a Imran Khan, um herói nacional (ver Perfil) que subiu ao poder em 2018 com a ajuda dos generais, que viram nele a esperança de um líder civil permeável às suas vontades. Não foi assim. “Khan quis autonomizar-se dos militares, ter uma agenda própria e opõe-se-lhes em questões específicas”, diz Pinéu. “Talvez achasse que tinha apoio popular suficiente e não precisasse deles.”

Khan foi afastado a 10 de abril de 2022, após perder uma moção de confiança no Parlamento. Há cerca de um mês, foi detido à chegada a um tribunal de Islamabade onde ia responder num caso de corrupção. Foi levado por dezenas de homens em traje antimotim, membros de um grupo paramilitar, os Punjab Rangers, que invadiram o tribunal para o deter.

Dias depois, o Supremo Tribunal declarou a sua detenção ilegal e libertou-o. Enfrenta ainda mais de 120 processos na justiça. “Todos os partidos políticos e o establishment querem que eu seja afastado em ano eleitoral”, disse recentemente. O Paquistão tem eleições gerais a 14 de outubro próximo. Até lá, este país de 230 milhões, com um arsenal nuclear, tem várias outras crises para esgrimir.

Crise económica: novo mercado para a Rússia

Esta semana, atracou no porto de Karachi um barco com o primeiro carregamento de petróleo de sempre comprado pelo Paquistão à Rússia, tradicional aliada da sua arquirrival Índia. Para Moscovo, é um novo mercado que se abre ao arrepio das sanções internacionais decretadas após a invasão da Ucrânia; já para Islamabade é a oportunidade de comprar petróleo com desconto, em época de grave crise económica.

Esta semana, atracou no porto de Karachi um barco com o primeiro carregamento de petróleo comprado à Rússia

Com uma inflação de 37,97% em maio e um crescimento anémico de 0,29% projetado para 2023, o Paquistão negoceia há meses com o Fundo Monetário Internacional (FMI) o descongelamento de $1100 milhões (€1000 milhões) de um total de $6500 milhões (€6000 milhões) acordado em 2019.

Desde a década de 1950 que o Paquistão já celebrou 23 acordos de resgate com o FMI. “Nunca cumpriu nenhum”, diz Daniel Pinéu. “O país tem uma carga fiscal extraordinariamente baixa. Há poucas pessoas a pagar impostos e as que pagam, pagam poucos. O encaixe fiscal do Estado é extraordinariamente baixo.”

Crise ambiental: um terço do país submerso

Vulnerável a fortes sismos, o Paquistão tornou-se, no ano passado, uma tragédia a céu aberto após chuvas diluvianas originarem grandes inundações que submergiram cerca de um terço do país.

Esta catástrofe ambiental foi ruinosa para o sector agrícola, nomeadamente para a produção de trigo, um cereal que o Paquistão exportava e passou a importar. Esta escassez fez disparar alertas sobre a iminência de uma crise alimentar no país.

Esta semana, os alarmes soaram a propósito da passagem do ciclone “Biparjoy”, que obrigou à deslocação de milhares de pessoas nos territórios do Paquistão e da Índia.

Crise securitária: talibã bom e talibã mau

Após perder três guerras com a Índia (1947, 1965 e 1999), “os militares paquistaneses têm uma noção muito clara de que não conseguem ter uma vitória convencional contra a Índia”, diz o docente no Colégio Universitário de Amesterdão (Países Baixos). “Há duas coisas ao seu alcance: a política nuclear e a utilização de grupos terroristas que o serviço de informações militares do Estado (ISI) apoia, treina ou financia.”

O Estado paquistanês convenceu-se de que se apoiasse os talibãs teria um aliado extraordinariamente importante

Esta estratégia beneficia da prevalência da etnia pashtun (a dos talibãs) no Paquistão e no vizinho Afeganistão. “É talvez o maior grupo tribal do mundo, separado por uma fronteira muito ténue”, diz Pinéu. “O Estado paquistanês convenceu-se de que se apoiasse os talibãs teria um aliado extraordinariamente importante atrás de si. Se a Índia tomasse o Paquistão ou ganhasse uma guerra, conseguiria deslocar para dentro do Afeganistão uma parte importante das suas forças e atacar a partir daí.”

Mas a ambiguidade de Islamabade — entre potenciar ‘talibãs bons’, que colaboram com os objetivos do Estado, e reprimir ‘talibãs maus’, que agem por conta própria em função dos seus objetivos — acarreta riscos. O ex-primeiro-ministro Pervez Musharraf, um militar, sofreu dois atentados às mãos de grupos islamitas. “É uma política muito esquizofrénica, até para a política interna.”

Crise geopolítica: EUA cada vez mais distantes

A seguir ao 11 de Setembro, o Paquistão foi dos países que mais ajuda receberam dos Estados Unidos, no âmbito da luta contra o terror, na sua esmagadora maioria canalizada para o sector militar.

Neste momento, consumada a retirada norte-americana do Afeganistão, “o Paquistão é para os EUA essencialmente um país-problema”, conclui Daniel Pinéu. “Não tem nenhum interesse estratégico, exceto conter o poderio da China.”

PERFIL

IMRAN KHAN

Já era popular antes de ser político. Famoso jogador de críquete, capitaneou a equipa que deu ao Paquistão o seu primeiro título mundial, em 1992. Nascido em 1952, em Lahore, fundou o Movimento Paquistanês pela Justiça, em 1996. Foi primeiro-ministro entre 2018 e 2022. Conquistou eleitores fartos dos políticos tradicionais. Mas, como outros populistas, ofereceu poucas soluções para os problemas dos cidadãos.

VULNERABILIDADES

3
golpes militares já levaram o Paquistão a viver períodos em regime militar: 1958–1971, 1977–1988, 1999–2008

13
partidos formam a Aliança Democrática do Paquistão (criada em 2020), que sucedeu a Imran Khan no poder

37,97
por cento é a taxa de inflação registada no mês de maio, um novo máximo no país

23
programas de resgate foram celebrados, desde 1958, entre o Paquistão e o Fundo Monetário Internacional

121
casos na justiça visam Imran Khan, incluem corrupção, traição, blasfémia, sedição, terrorismo e incitamento

Artigo publicado no “Expresso”, a 16 de junho de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

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