O Parlamento de Israel aprovou uma lei que retira poder ao Supremo Tribunal. Trata-se do primeiro diploma de uma ampla reforma judicial que o Governo de Benjamin Netanyahu quer levar avante. Este fim de semana, pela 30.ª semana consecutiva, sai à rua mais uma manifestação de protesto

Por estes dias, há uma piada em Israel que traduz o estado de espírito de muitos cidadãos. Dois israelitas encontram-se e um deles pergunta: “Numa palavra, como te sentes?” O outro responde: “Bem!” O primeiro insiste: “E como te sentes em duas palavras?” “Nada bem!” Este diálogo é uma caricatura da confusão que assaltou muitas pessoas. Nos últimos anos, a sociedade polarizou-se a um nível sem precedentes — confirmado pela realização de cinco eleições legislativas em quatro anos — e, mais recentemente, um projeto de reforma judicial pôs os nervos à flor da pele de muita gente no país.
“Há uma enorme tensão entre as pessoas”, diz ao Expresso o advogado israelita Itay Mor, desde Telavive. “Se uma pessoa de esquerda conversa com outra de direita, começam a discutir com muita facilidade. É uma situação muito inflamável.”
Esta semana, o Governo de Benjamin Netanyahu averbou uma importante vitória na sua intenção de alterar o funcionamento da justiça ao ver o Parlamento (Knesset) aprovar um projeto de lei que limita a possibilidade do Supremo Tribunal recorrer à “doutrina da razoabilidade” para bloquear decisões governamentais que considere serem implausíveis.
Democracia sobrevive
“Na prática, a nova legislação reduz significativamente a capacidade do Supremo Tribunal de fiscalizar as decisões tomadas pelo Governo. Mas o Supremo tem outros recursos para desqualificar decisões governamentais”, diz ao Expresso Tamar Hermann, investigadora no Instituto de Democracia de Israel. “Embora o ambiente esteja muito dramático, não significa que o Supremo não tenha forma de controlar o Governo. Esta decisão é importante, mas não é crítica para o modelo de democracia israelita.”
A prerrogativa da razoabilidade não é um instrumento ao qual o Supremo recorra com frequência. Tornou-se um assunto sensível no início do ano, após o tribunal invalidar a nomeação de Aryeh Deri, líder do partido ultraortodoxo Shas e aliado antigo de Netanyahu, para ministro do Interior e da Saúde, invocando precisamente o critério da razoabilidade. Deri tinha sido condenado na justiça por crimes fiscais e estava em liberdade condicional ao abrigo de um acordo judicial.
Itay Mor diz que a prerrogativa da razoabilidade “não depende de critérios objetivos, mas apenas de subjetivos. Depende apenas do ponto de vista do juiz que, num dia, diz que vai ajudar as minorias e noutro decide que não”, afirma. “O Supremo tem autoridade, mas não tem responsabilidade. E o Governo tem responsabilidade, mas não tem autoridade. É uma distorção.”
Após a votação no Knesset — viabilizada pelos 64 deputados da maioria e boicotada pela oposição —, várias petições deram entrada no Supremo pedindo o bloqueio da lei. O órgão agendou o debate para setembro, mas rejeitou bloqueá-la até lá.
Outra possibilidade de estancar o processo seria o Presidente Isaac Herzog, que pugnou até à última por adiar a votação, não assinar o diploma. Não é expectável que o faça. O seu antecessor, Reuven Rivlin, passou por uma situação semelhante: opôs-se a outro diploma controverso, a Lei do Estado-Nação (2018), mas acabou por assiná-lo, aproveitando o momento para fazer um gesto de protesto. Decretando essa lei que Israel — onde cerca de 20% da população são árabes — “é o Estado-nação do povo judeu” e que “o hebraico é a língua do Estado”, secundarizando a língua árabe, Rivlin assinou a lei escrita… em árabe.
Esta semana, na véspera da votação, o ex-Presidente discursou num protesto antigovernamental em Jerusalém: “Temos 24 horas para salvar o nosso maravilhoso país.”
Mais debates após as férias
Para o Governo, o processo é como fatiar um salame: o primeiro pedaço foi cortado esta semana, outros seguir-se-ão. O Knesset vai agora de férias e só após o verão haverá mais debates — previsivelmente sem acordo entre maioria e oposição — e novas votações.
Nas ruas e nas fileiras da oposição, a reforma judicial é um ataque à democracia num país que tem uma estrutura constitucional única. Israel é uma democracia parlamentar, onde o Presidente não pode vetar leis e o Parlamento é unicameral. Não existe uma estrutura federal nem um sistema eleitoral regional. O país não tem uma Constituição rígida, mas antes Leis Básicas, algumas das quais podem ser alteradas por maioria simples no Knesset. O Supremo Tribunal é o único contrapeso ao poder executivo.
Para os defensores da reforma, há também um problema de representatividade. Dizem que o órgão está nas mãos de uma elite homogénea e que os 15 juízes não representam os diferentes sectores da sociedade. Filho de imigrantes marroquinos, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Eli Cohen, defendeu que alguém com antecedentes semelhantes ao seus seria excluído do Supremo “porque somente pertencendo a uma certa panelinha é possível ser-se nomeado”.
Tamar Hermann admite a necessidade de mudanças, “mas feitas com base num consenso e não de uma forma que afaste grande parte do povo. Estar nas mãos de uma elite não significa ser um esquema. Isto foi um desenvolvimento histórico. E durante muitos anos, o Supremo não aceitou críticas. Não nego que alguns aspetos devam ser revistos, mas não da forma brutal como este Governo está a fazer”.
Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de julho de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui




