Como nos anos da segunda Intifada, a cidade de Jenin, e o seu campo de refugiados em particular, continua a ser um dos principais bastiões de resistência à ocupação israelita da Palestina. Após um influente ministro israelita ter pedido, há dez dias, uma campanha militar para “explodir prédios, assassinar terroristas, não um, ou dois, mas dezenas, centenas ou, se necessário, milhares”, esta localidade da Cisjordânia tornou-se um alvo óbvio
O mais recente episódio de violência entre israelitas e palestinianos tem como epicentro o campo de refugiados de Jenin, no território palestiniano ocupado da Cisjordânia. Há 20 anos, ali travou-se uma das mais sangrentas batalhas da segunda Intifada (revolta palestiniana). Hoje, uma ampla operação militar israelita, incitada por governantes israelitas extremistas, traz à memória reminiscências desses dias e vaticina um futuro sombrio.
“Tudo faz parte de uma estratégia que começou com o estabelecimento do Estado de Israel, em 1948, e continua até hoje”, comenta ao Expresso Giulia Daniele, investigadora no Centro de Estudos Internacionais, do Instituto Universitário de Lisboa.
“Isso irá piorar ainda mais com uma liderança governamental e uma sociedade abertamente viradas para a extrema-direita. Parece mais do que claro que sem um posicionamento forte da comunidade internacional não será possível superar o impasse atual.”
O que está a acontecer na Palestina?
Israel tem em curso uma operação militar em larga escala na cidade palestiniana de Jenin (norte da Cisjordânia). A ofensiva começou cerca da uma hora da manhã desta segunda-feira (menos duas horas em Portugal Continental), quando um edifício no interior do campo de refugiados foi atingido por drones. Segundo as Forças de Defesa de Israel (IDF), o alvo era um centro de comando usado para planear ataques contra Israel.
Seguiu-se uma incursão terrestre de meios de infantaria, envolvendo mais de 1000 soldados. Se as incursões terrestres israelitas não são uma novidade na Cisjordânia, o facto de esta em particular ter sido precedida por bombardeamentos confere-lhe um caráter excecional.
A troca de fogo entre as tropas israelitas e militantes armados palestinianos provocou até ao momento, pelo menos, oito mortos e 50 feridos, entre os palestinianos. Há notícia de dezenas de detenções.
“As imagens que chegam de Jenin lembram muito o que aconteceu em abril de 2002”, no contexto da segunda Intifada (2000-2005). “Durante a operação ‘Escudo Defensivo’, as forças militares israelitas invadiram o campo de refugiados e ali estiveram mais de dez dias, não permitindo a presença de jornalistas e organizações internacionais”, recorda a investigadora.
“Foi um massacre com centenas de mortos e milhares de feridos, embora de difícil reconhecimento internacional. Foram publicados apenas alguns relatórios bastante genéricos por organizações internacionais para os direitos humanos, como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional”, diz.
“Mas houve testemunhos claros do que aconteceu em documentários, como “Jenin, Jenin”, do realizador palestiniano Mohammed Bakri.”
Também esta segunda-feira parece ter havido um esforço para isolar o campo de olhares condenatórios, ainda que, na era da Internet e das redes sociais, seja impossível tudo controlar. Num vídeo divulgado pela televisão árabe Al-Jazeera, um bulldozer israelita enche de entulho uma rua do campo de refugiados, obstaculizando a circulação de ambulâncias.
Por que razão o alvo é o campo de refugiados de Jenin?
Segundo o Exército israelita, o objetivo da operação é prender “terroristas” e recolher armas do campo. Incursões deste género são frequentes em especial em Jenin e também em Nablus, um pouco mais para sul, onde também se movimentam grupos armados palestinianos.
A 11 de maio de 2002, enquanto cobria uma operação deste género, precisamente no campo de refugiados de Jenin, foi morta a jornalista do canal árabe da Al-Jazeera Shireen Abu Akleh, atingida por fogo israelita. A repórter palestiniana, que tinha também nacionalidade norte-americana, vestia um colete e usava um capacete que a identificavam como membro da “imprensa”.
Nas cartas militares israelitas, há anos que o campo de refugiados de Jenin, estabelecido em 1953, está referenciado como um reduto terrorista. Mais ainda desde 2021, quando surgiram as Brigadas de Jenin, compostas por militantes afetos a vários grupos armados palestinianos, incluindo o Hamas (o grupo que controla a Faixa de Gaza) e a Jihad Islâmica.
“Desde 2002 que o campo de Jenin se tornou um local de resistência”, diz ao Expresso Ahmed, um palestiniano de 28 anos, que vive na Faixa de Gaza. “As pessoas na Cisjordânia sofrem muito. Israel quer as nossas terras para construir colonatos. Deixem-nos, a terra é nossa, é terra palestiniana! Há operações todos os dias. A resistência está a crescer. Está a ficar como Gaza.”
Ahmed diz que a situação em Gaza tem estado calma. Não têm sido disparados rockets na direção de Israel, mas teme que “se a situação ficar mais dura” na Cisjordânia, talvez possa haver retaliação israelita sobre Gaza. “O Hamas [que controla Gaza] tem soldados na Cisjordânia e funciona em Jenin por baixo da mesa”, diz.
Havia indícios de que esta escalada podia acontecer?
A tensão na Cisjordânia vinha em crescendo, com episódios recentes de violência em várias regiões do território, em especial atribuídos a colonos judeus sobre populações árabes.
Nos últimos dias, a agência noticiosa palestiniana WAFA deu conta de colheitas incendiadas, na aldeia de At-Tawani (sul de Hebron), onde próximo existe o colonato de Ma’on, e também do ataque de colonos a uma nascente de água, em Qaryut, na mesma região.
Sem agricultura e sem água, a vida torna-se impossível e é nisso que apostam os colonos — que se movimentam com proteção militar —, para que os palestinianos partam e libertem mais terras para Israel ocupar. Para os palestinianos que ficam, não restam muitas mais opções do que resistir com o que têm à mão.
Paralelamente, desde os corredores do poder em Israel, têm soado discursos verdadeiramente incendiários. O mais recente Governo liderado por Benjamin Netanyahu, composto maioritariamente por forças extremistas e religiosas, não esconde que a ocupação da Palestina é o caminho a seguir.
“Faz parte claramente do programa do Governo israelita que conta agora com muitos membros que querem uma anexação definitiva dos territórios palestinianos”, refere Giulia Daniele.
“Nas últimas semanas, os partidos da extrema-direita ultra-religiosa no atual Governo israelita incitaram a uma operação militar mais abrangente no norte da Cisjordânia com uma possível reocupação de Jenin por ser uma fortaleza de milícias armadas palestinianas que atuam contra soldados e colonos israelitas”, acrescenta.
“Sem alternativas e nada a perder, mais e mais palestinianos (em particular os jovens) apoiam a luta armada, considerando-a o principal meio que o povo palestiniano ainda tem para acabar com a ocupação militar israelita.”
Há dez dias, durante uma visita a um posto avançado ilegal na colina de Evyatar — uma estrutura que pretende ser o início de um colonato —, Itamar Ben-Gvir, o polémico e extremista ministro da Segurança Nacional de Israel, defendeu: “É preciso que haja um colonato total aqui. Não apenas aqui, mas em todas as colinas ao nosso redor”, disse, citado pelo jornal israelita “The Times of Israel”.
“Temos de colonizar a terra de Israel e, ao mesmo tempo, lançar uma campanha militar, explodir prédios, assassinar terroristas. Não um, ou dois, mas dezenas, centenas ou, se necessário, milhares.”
Ben-Gvir é, ele próprio, um ‘soldado’ ao serviço da ocupação, já que vive no colonato de Kiryat Arba, na área de Hebron. Ao abrigo do direito internacional, os colonatos são ilegais.
Que espaço há para uma solução política para a questão israelo-palestiniana?
O processo de paz é inexistente e não há perspetiva de que se reative tão cedo. Do lado palestiniano, uma liderança envelhecida, corrupta e acomodada não dá garantias de credibilidade para lidar com um problema que afeta várias gerações de palestinianos.
“Existem muitas rivalidades dentro da Autoridade Nacional Palestiniana e o debate acerca da sucessão de Mahmoud Abbas”, que tem 87 anos e está no cargo há 18, “contribui para tornar a situação ainda mais instável”, acrescenta Giulia Daniele.
Esta segunda-feira, Nabil Abu Rudeineh, porta-voz do Presidente Abbas, reagiu aos acontecimento em Jenin repetindo o discurso cansado de sempre e qualificando a operação de “um novo crime de guerra contra o povo indefeso”.
Do lado de Israel, para o Governo de Netanyahu, o diálogo não é uma opção realista. E no terreno, a ocupação não pára de se acentuar, tornando o sonho de uma Palestina independente cada vez menos exequível.
Na Cisjordânia, a expansão dos colonatos e a consequente intensificação de um sistema de apartheid entre judeus e árabes alimenta um ciclo vicioso de violência diária que visa uns e outros à vez. Já na Faixa de Gaza, a ocupação faz-se ‘por controlo remoto’, já que, desde 2007, vigora um bloqueio aplicado por Israel e Egito que controla tudo o que entra e sai do território por terra, mar e ar.
Nos dois territórios palestinianos, “a situação é a mesma, mas com instrumentos diferentes”, conclui Ahmed. “Mas Gaza pode ferir Israel com os rockets.” Na ausência de um processo de paz digno desse nome, a luta transfere-se cada vez mais para as ruas, com pedras ou com armas.
(FOTO “Para não esquecer”, lê-se neste mural, no campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia ocupada MUJJADARA / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de julho de 2023. Pode ser consultado aqui, aqui e aqui
