Polémica reforma da justiça averbou a primeira vitória, num país “tenso” e “inflamável”

A aprovação, no Parlamento de Israel, de uma lei que retira poderes ao Supremo Tribunal foi acompanhada por protestos nas ruas e motivou que, esta terça-feira, vários jornais tenham assumido o luto e pintado as capas de negro. Ao Expresso, um advogado israelita explica o que está em causa e alerta para “uma distorção” no centro do problema: “O Supremo Tribunal tem autoridade, mas não tem responsabilidade. O Governo tem responsabilidade, mas não tem autoridade”

ILUSTRAÇÃO DAILY SABAH

Do Parlamento para os tribunais. É na justiça que, em Israel, agora se trava uma batalha para tentar reverter um polémico projeto de lei aprovado no Parlamento (Knesset). Menos de 24 horas após ser viabilizado, pelo menos três petições deram entrada no Supremo Tribunal com o intuito de bloquear a nova legislação que limita os poderes… do Supremo Tribunal.

As petições foram apresentadas por organizações da sociedade civil. Yair Lapid, o líder da oposição, já fez saber que tenciona seguir pelo mesmo caminho nos próximos dias.

A possibilidade do Supremo reverter uma decisão que o visa diretamente “é uma loucura”, comenta ao Expresso o advogado israelita Itay Mor, desde Telavive. “O Parlamento tomou uma decisão que afeta o sistema judicial. Então o sistema judicial não gosta e vai anular essa decisão. Em qualquer democracia equilibrada, há uma regra básica: o governo do povo. O povo, a maioria, é quem manda. Escolhe os seus representantes no Parlamento e o Parlamento escolhe o governo. E o sistema judicial é eleito de diferentes formas pelas duas autoridades. Se o sistema judicial anular a decisão do Parlamento, está a anular o povo.”

Após 29 semanas de grandes protestos populares nunca antes vistos em Israel, e 30 horas de debate no Knesset, a maioria que apoia o Governo liderado por Benjamin Netanyahu, o mais à direita de sempre em 75 anos de vida do país, aprovou um diploma que limita a possibilidade do Supremo recorrer à “doutrina da razoabilidade” para bloquear decisões do Governo que considere serem irracionais ou implausíveis.

O advogado não partilha da reação dramática que se observa nas ruas de muitas cidades de Israel, nem tão pouco das análises que projetam nesta legislação uma ameaça à separação de poderes ou até o princípio do fim da democracia em Israel. “O voto foi contra decisões que não são razoáveis pelo sistema judicial”, diz, acrescentando que a prerrogativa da razoabilidade não é clara.

“Não depende de métodos objetivos, mas apenas de subjetivos. Depende apenas do ponto de vista e da perspetiva do juiz. Num dia, um juiz decide que vai ajudar as minorias e noutro decide que não. É este basicamente o problema”, explica. “O Supremo tem a autoridade, mas não tem a responsabilidade. E o Governo tem a responsabilidade, mas não tem a autoridade. É uma distorção.”

Supremo Tribunal tem mais armas

Itay Mor salienta ainda que o Supremo dispõe de mais sete critérios para desqualificar uma decisão governamental: se uma determinada decisão violar a lei, se for contrária à ideia de igualdade ou se não for equilibrada. “Por exemplo, se um membro de uma minoria cometer um crime e o Governo decidir que todos os membros dessa minoria vão para a cadeia.”

O diploma foi viabilizado pelos 64 deputados da maioria (eleitos nas fileiras de partidos de direita, da extrema-direita e religiosos), tendo os membros afetos à oposição abandonado o hemiciclo na hora do voto.

A importância desta votação ficou patente no facto de o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ter participado dos trabalhos escassas horas após ter estado internado para colocação de um pacemaker. Foi no hospital que, no domingo, o Presidente do país, Isaac Herzog, se reuniu com o chefe do Governo, de 73 anos, para tentar, sem sucesso, um adiamento por 15 meses.

“Esta votação é importante não pelas suas implicações legais, mas antes sociais. A situação social em Israel é muito tensa”, diz Itay Mor. “Não conheço pessoalmente Netanyahu, mas creio que ele entende a importância social deste voto. Não temos de gostar dele, mas devemos respeitá-lo porque é um profissional e faz o que pode.”

O Supremo Tribunal de Israel é composto por 15 juízes que são escolhidos por um Comité de Seleção Judicial. Este integra três juízes do próprio Supremo (um deles o presidente), o ministro da Justiça e outro membro do Governo, dois deputados (da oposição) e dois representantes da Ordem dos Advogados. Nove membros no total, sendo que apenas quatro foram eleitos pelo povo.

“O povo de Israel não escolhe diretamente os juízes, que têm muito poder para tomar decisões cruciais. A prerrogativa da razoabilidade não é o único problema no sistema judiciário, mas é uma das ferramentas que o Supremo usa para desqualificar decisões do Governo sem obter o consentimento do Parlamento, que representa o povo”, diz o jurista. “Atualmente, em Israel, o sistema judicial tem muito mais poder do que o Parlamento e o Governo. E ninguém pode criticá-lo.”

Da elite e de esquerda

Mor diz que há uma grande discussão no país sobre a origem dos juízes e a representatividade “quase homogénea” no Supremo Tribunal de Israel. “Não há diversidade, não há juízes de diferentes áreas ou minorias da sociedade. Os juízes do Supremo representam uma percentagem muito pequena da elite da sociedade israelita. E isso é algo que a coligação governamental quer mudar para dar mais poder, no processo de eleição dos juízes, às forças políticas. Mas isso é na eleição, porque, uma vez eleitos, os juízes são totalmente independentes.”

Há também uma leitura política a fazer. “Em Israel, o Supremo Tribunal tende a ter uma abordagem mais de esquerda. Por isso, quando a esquerda não está no governo, tem o Supremo.”

O projeto de lei aprovado na segunda-feira foi apenas o primeiro de uma reforma judicial mais ampla que o Governo espera levar a cabo. “Numa jogada extraordinária, demos o primeiro passo do histórico processo de correção do sistema judicial e restituição dos poderes retirados ao Governo e ao Knesset ao longo de muitos anos”, regozijou-se Yariv Levin, o ministro da Justiça, que pertence ao partido Likud (direita).

O Knesset entra agora em férias e só após o verão haverá mais debates — previsivelmente sem acordo entre maioria e oposição —, mais votações e contestação nas ruas em torno de possíveis novas leis. O advogado é da opinião que “a reforma da justiça de que a coligação fala, no fim, pressupõe também mudanças no Comité” que seleciona os juízes.

Tudo acontece num país altamente polarizado, patente no facto de ter realizado cinco eleições legislativas entre 2019 e 2022. “Há uma enorme tensão nas ruas entre as pessoas”, conclui Itay Mor. “Se alguém de esquerda começar a falar com outra de direita, começam a discutir com muita facilidade. É uma situação muito inflamável.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de julho de 2023. Pode ser consultado aqui

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