Problemas na justiça afastam Trump do combate político: “O público sabe quem sou”

Ex-Presidente, que lidera as sondagens, faltou ao primeiro debate entre candidatos às primárias republicanas

Foto de BRENDAN SMIALOWSKI / Getty Images. Ilustração fotográfica de LINDSEY BAILEY / AXIOS

Se em 234 anos, tantos quantos passaram desde a criação da presidência dos Estados Unidos, nunca um titular do órgão tinha sido acusado criminalmente pela Justiça do país, Donald Trump levou essa distinção ao exagero. Só este ano, o 45º chefe de Estado já foi indiciado em quatro processos criminais, abertos noutros tantos estados. Em dois deles, o início do julgamento já tem data.

Um dos casos é especialmente mais grave do que os restantes — a acusação de interferência eleitoral na Georgia, após as presidenciais de 2020, que Trump perdeu para Joe Biden por menos de 12 mil votos. Este mês, um grande júri desse estado do sueste implicou Trump e 18 aliados na constituição de uma “empresa criminosa” visando subverter a derrota do republicano naquele estado crucial para as contas finais.

DeSantis respondeu que os Estados Unidos “estão em declínio” e que tal “não é inevitável, é uma escolha”. E acrescentou: “Precisamos de mandar Joe Biden de volta para o seu porão e reverter o declínio americano.”

A acusação tem por base a Lei das Organizações Corruptas e Influenciadas por Extorsionistas (RICO, na sigla inglesa) da Georgia, que possibilita à Justiça o agrupamento daquilo que possam parecer crimes não relacionados, cometidos por pessoas diferentes, mas percecionados como tendo objetivo comum — neste caso, manter Donald Trump na Casa Branca a partir de 20 de janeiro de 2021, à revelia da vontade do eleitorado.

Rendições até ao meio-dia

Foi graças a uma lei deste género que, na década de 1980, Rudy Giuliani, à época procurador do Distrito Sul de Nova Iorque, combateu a máfia da cidade, de que mais tarde seria presidente da Câmara. Agora, o ex-advogado de Trump é um dos acusados ao abrigo da mesma lei. Quarta-feira, entregou-se às autoridades numa prisão de Atlanta, a capital da Georgia. Saiu em liberdade após pagar uma fiança de 150 mil dólares (€138 mil).

Se for condenado no caso de interferência eleitoral na Georgia, o ex-Presidente incorre numa pena de prisão de entre 5 e 20 anos

Os 19 implicados neste processo têm até ao meio-dia de hoje (17 horas em Portugal Continental) para se renderem, incluindo Trump, que aceitou entregar-se mediante o pagamento de uma fiança fixada em 200 mil dólares (€184 mil). O acordo proíbe-o explicitamente de usar as redes sociais para atingir ou abordar réus e testemunhas do caso. Se for condenado, o ex-Presidente incorre numa pena de prisão de entre 5 e 20 anos.

Os inúmeros e graves problemas com a Justiça afastaram Trump do combate político. Quarta-feira à noite, o Fiserv Forum, em Milwaukee (Wisconsin), acolheu o primeiro debate entre candidatos às primárias republicanas com vista às presidenciais de 5 de novembro de 2024. O ex-Presidente faltou e esbanjou confiança na hora de justificar a ausência. “O público sabe quem sou e que presidência bem-sucedida tive”, afirmou, domingo passado, na sua rede social Truth Social. “Portanto, não participarei nos debates.”

Favoritismo esmagador

No mesmo dia, uma sondagem da televisão CBS creditava-o com 62% das preferências de voto. Dos inquiridos, 77% consideravam as acusações na Justiça contra Trump motivadas por razões políticas e 99% dos que escolhiam ou consideravam votar em Trump defendiam que “as coisas estavam melhores” com ele na Casa Branca.

O seu adversário mais próximo, o governador da Florida, Ron DeSantis, ficava à distância de quase 50 pontos percentuais (16%). Os restantes sete candidatos analisados não atingiam a fasquia dos 10%. Mike Pence, o antigo vice-presidente de Trump, não ia além dos 5%.

Entrevista para ofuscar

Apesar da vantagem esmagadora nas sondagens, bem ao seu estilo, Trump não deu de barato todo o tempo de antena aos oito adversários que foram a debate. Cinco minutos antes de arrancar a discussão em Milwaukee, começou a ser transmitida na rede social X (antigo Twitter) uma entrevista de Trump concedida a Tucker Carlson, polémico apresentador despedido há tempos da Fox News.

A conversa de cerca de 45 minutos, pré-gravada no clube de golfe de Trump em Bedminster, Nova Jérsia, não fez manchetes, mas roubou audiência ao debate republicano, com mais de 80 milhões de visualizações nas duas horas que se seguiram à sua divulgação. Ao mesmo tempo que desviou atenções dos antagonistas, Trump fez uma provocação à Fox News, que transmitiu o debate em direto, e com quem Trump já teve melhores dias.

E se Trump for condenado…

Em Milwaukee, o assunto Trump apenas surgiu na segunda metade da discussão (que durou duas horas), porventura para dar tempo a que quem acorreu a ouvir o ex-Presidente na rede social voltasse a sintonizar a Fox. O moderador referiu-se a Trump como “o elefante que não está na sala” e perguntou aos oito candidatos se tencionam apoiá-lo na eventualidade de ele ganhar a nomeação republicana às eleições de 2024 e for também condenado na Justiça.

Quatro foram rápidos a levantar a mão — Doug Burgum (governador do Dacota do Norte), Tim Scott (senador pela Carolina do Sul), Nikki Haley (ex-governadora da Carolina do Sul e antiga embaixadora dos EUA na ONU) e Vivek Ramaswamy (empresário). Outros dois foram lentos a fazê-lo — Ron DeSantis e Mike Pence (também ex-governador do Indiana). Um demonstrou relutância (Chris Christie, antigo governador da Nova Jérsia) e apenas um assumiu que não o apoiaria (Asa Hutchinson, ex-governador do Arkansas).

Num debate em Milwaukee, oito republicanos disputaram o título de ‘melhor candidato alternativo’ a Trump

A pergunta não foi inocente, já que um dos critérios previamente estabelecidos pelo Comité Nacional Republicano para selecionar os participantes no debate foi a assinatura do “Compromisso Vencer Biden”, com o qual os candidatos prometeram apoiar o vencedor da nomeação republicana, fosse quem fosse, no duelo contra Biden, previsível vencedor incontestado da nomeação democrata. Duas outras exigências foram a obtenção de pelo menos 1% das intenções de voto em três sondagens nacionais e já terem angariado um mínimo de 40 mil doadores únicos para a sua campanha.

Durante duas horas, e perante uma audiência ao vivo de 4 mil pessoas (que reagia a cada resposta e não se inibia de vaiar quem criticasse Trump), os oito republicanos — com idades entre os 38 anos (Vivek Ramaswamy) e os 72 (Asa Hutchinson) — disputaram o título de ‘melhor candidato alternativo’ a Trump, o mais velho de todos (77 anos). Para alcançá-lo, o alvo preferencial foi Joe Biden, que tem mais quatro anos do que Trump.

O significado da canção

Consistente no segundo lugar das preferências de voto republicanas, DeSantis apontou ao atual Presidente quando confrontado sobre o porquê de o grande êxito musical do momento no país (‘Rich Men North of Richmond’, em português homens ricos a norte de Richmond) ser um tema country interpretado por um artista desconhecido (Oliver Anthony) que discorre sobre os problemas e as frustrações da classe trabalhadora e aponta o dedo aos poderosos de Washington.

OS CASOS QUE ATRAPALHAM TRUMP

O ex-Presidente enfrenta 91 acusações em quatro processos abertos em estados diferentes. Dois julgamentos já têm data

SUBORNO COMO DESPESA LEGAL
A campanha para as presidenciais de 2016, que Donald Trump venceu, estava nas últimas semanas quando saíram das suas contas 130 mil dólares para evitar um escândalo. A verba foi usada para comprar o silêncio de Stormy Daniels, atriz de filmes pornográficos com quem Trump se terá envolvido. A transação configura possível violação da lei estadual de Nova Iorque, não pelo pagamento em si, mas por ser registada como despesa legal. Trump enfrenta 34 acusações sobre falsificação de registos comerciais, num julgamento agendado para 25 de março de 2024. Sendo o crime estadual, só o governador de Nova Iorque poderá perdoar-lhe.

POSSE DE DOCUMENTOS SECRETOS
Na Florida, onde vive no luxuoso resort de Mar-a-Lago, Trump responde por 40 acusações de posse de documentos confidenciais, alguns classificados como “ultrassecretos”, que terá levado quando deixou a Casa Branca, em janeiro de 2021. Devolveu caixas de documentação, mas subsistiram suspeitas de que mantinha na propriedade registos importantes, o que lhe valeu uma acusação de obstrução aos esforços das autoridades para reavê-los. O início do julgamento está agendado para 20 de maio de 2024. Estando em causa crimes federais, se Trump for reeleito Presidente poderá absolver-se a si próprio.

REVERTER A DERROTA DE 2020
O 45º Presidente enfrenta quatro acusações de crimes federais relativas a uma ampla campanha destinada a reverter o resultado oficial da eleição presidencial de 2020, que Trump perdeu para Joe Biden. Em causa estão disseminação de informação falsa sobre fraude eleitoral ou pressão sobre autoridades estaduais republicanas para minar resultados vitoriosos de Biden. O último esforço culminou com a invasão ao Capitólio, a 6 de janeiro de 2021, por uma multidão de apoiantes que tentou abortar a transferência de poder. O processo decorre em Washington. Se reeleito e condenado, Trump poderá perdoar-se.

INTERFERÊNCIA ELEITORAL
É o caso mais grave e pode valer ao ex-Presidente entre 5 e 20 anos de prisão. Trump enfrenta 13 acusações de tentativa de interferência eleitoral na Georgia, estado crucial para o desfecho das eleições de 2020. A 2 de janeiro de 2021, ao telefone, incitou o secretário de estado da Georgia (republicano) a “encontrar” 11.780 votos, necessários para ganhar a Biden. Várias recontagens confirmaram a vitória do democrata. Além de Trump, estão acusados 18 aliados, ao abrigo de legislação estadual usada para acusar máfias e gangues do crime. Os perdões são concedidos por um painel de cinco membros nomeado pelo governador.

Artigo publicado no “Expresso”, a 25 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Primeiro debate entre candidatos republicanos não conseguiu ignorar “o elefante que não esteve na sala”

Donald Trump falhou ao debate do Partido Republicano que foi tiro de partida para a próxima corrida à Casa Branca, quarta-feira à noite. O ex-Presidente, que lidera destacado as sondagens para a nomeação do ‘partido do elefante’ e prometeu entregar-se à justiça esta quinta-feira, não foi a Milwaukee, mas montou um palco só para si. Sensivelmente à mesma hora, foi publicada numa rede social uma entrevista sua ao polémico apresentador Tucker Carlson

No sentido dos ponteiros do relógio, a partir do canto superior esquerdo: Mike Pence, Ron DeSantis, Nikki Haley, Vivek Ramaswamy, Chris Christie, Asa Hutchinson, Tim Scott e Doug Burgum SCOTT OLSON, DREW ANGERER / GETTY IMAGES

A 441 dias das próximas presidenciais nos Estados Unidos, abriu mais uma época eleitoral no país, com o primeiro debate na televisão entre candidatos às primárias do Partido Republicano. Transmitido pela conservadora Fox News, realizou-se no Fiserv Forum, em Milwaukee, Wisconsin, um estado simbólico que os republicanos consideram ser crucial para decidir as próximas eleições.

A braços com graves problemas na justiça — 91 acusações criminais no âmbito de quatro processos abertos em quatro estados e dois julgamentos já agendados —, Donald Trump, que lidera de forma destacada todas as sondagens relativas à corrida republicana, faltou ao debate.

“O público sabe quem eu sou e que presidência bem-sucedida tive. Por essa razão, não participarei em debates”, escreveu, dias antes, na sua rede social Truth Social, deixando no ar a possibilidade de não comparecer a nenhuma discussão futura.

Trump aposta na contraprogramação

Bem ao seu estilo, Trump não deu de barato todo o tempo de antena aos adversários. Cinco minutos antes de o debate começar, foi para o ar, na rede social X (antigo Twitter), uma entrevista de Trump concedida a Tucker Carlson, apresentador despedido da Fox News, pré-gravada no seu clube de golfe em Bedminster, Nova Jérsia.

Desta forma, pelo menos durante 45 minutos, Trump desviou audiências do debate, roubando palco aos seus diretos antagonistas e provocando a Fox News, com quem já teve melhores dias.

Mas não terá sido a vontade de provocar que afastou Trump da discussão. O debate realizou-se quarta-feira à noite (madrugada de quinta-feira em Lisboa), horas antes de Trump — assim o prometeu — se entregar à justiça, para responder no caso de interferência eleitoral na Geórgia após as eleições de 2020, que perdeu para Joe Biden. “Irei a Atlanta, na Geórgia, quinta-feira, para ser PRESO”, escreveu noutra mensagem na rede social que fundou.

OS OITO PARTICIPANTES

  • Ron DeSantis, 44 anos, governador da Florida
  • Mike Pence, 64, vice-presidente de Donald Trump
  • Nikki Haley, 51, ex-governadora da Carolina do Sul e antiga embaixadora dos EUA na ONU
  • Chris Christie, 60, antigo governador da Nova Jérsia
  • Doug Burgum, 67, governador do Dacota do Norte
  • Asa Hutchinson, 72, ex-governador do Arcansas
  • Tim Scott, 57, senador pela Carolina do Sul
  • Vivek Ramaswamy, 38 anos, empresário da área da tecnologia

Pela ausência no debate e pelo que anunciou para o dia seguinte, Trump tornou-se “o elefante que não está na sala”, na formulação do moderador Bret Baier. De seguida, perguntou aos oito candidatos se tencionam apoiar Trump na eventualidade de ele vir a ser o candidato republicano às eleições de 2024 e for condenado na justiça.

Quatro foram rápidos a levantar a mão (Doug Burgum, Tim Scott, Nikki Haley e Vivek Ramaswamy), outros dois foram lentos a fazê-lo (Ron DeSantis e Mike Pence), um demonstrou relutância (Chris Christie, que afirmaria, sob grande vaia do público, que “a conduta [de Trump] está abaixo do cargo de Presidente dos Estados Unidos”) e apenas um não levantou a mão (Asa Hutchinson).

A pergunta não foi inocente. Um dos critérios previamente estabelecidos pelo Comité Nacional Republicano para selecionar os participantes no debate foi a assinatura de um “Compromisso Vencer Biden”, através do qual os candidatos prometem apoiar o vencedor da nomeação republicana, seja quem for, no duelo contra Biden, previsível vencedor incontestado da nomeação democrata.

Durante duas horas, e perante uma audiência ao vivo de 4000 pessoas (pouco tolerante a críticas a Trump), oito republicanos com idades entre os 38 anos e os 72 anos disputaram o título de ‘melhor candidato alternativo’ a Trump, que tem 77 anos. Para alcançá-lo, o alvo preferencial foi… Joe Biden.

Consistente na segunda posição das preferências de voto republicanas, o governador da Florida, Ron DeSantis, apontou ao atual Presidente quando confrontado sobre o porquê do grande êxito musical do momento no país (“Rich Men North of Richmond”) ser um tema country de um artista desconhecido (Oliver Anthony) sobre os problemas da classe trabalhadora.

DeSantis respondeu que os Estados Unidos “estão em declínio” e que “esse declínio não é inevitável, é uma escolha”. E acrescentou: “Precisamos de mandar Joe Biden de volta para o seu porão e reverter o declínio americano”.

Instados a dar respostas de um minuto (findo o qual soava uma buzina), os candidatos esgrimiram argumentos de forma mais acalorada quando o assunto foi o aborto. Horas antes do debate, o Supremo Tribunal estadual da Carolina do Sul confirmou a constitucionalidade da proibição do aborto a partir das seis semanas de gestação — quando muitas mulheres não sabem sequer que estão grávidas —, decretada em maio pelo governador republicano, Henry McMaster.

Nikki quer consenso, Pence prefere autoridade

Afirmando-se “pró-vida”, Nikki Haley, antiga governadora daquele estado e a única mulher entre os oito candidatos, defendeu que “há que parar de demonizar este assunto”, defendendo a necessidade de um “consenso” caso venha a ser adotada uma proibição do aborto a nível federal.

“Não podemos todos concordar que devemos proibir os abortos tardios? Não podemos todos concordar que devemos encorajar as adoções? Não podemos todos concordar que médicos e enfermeiros que não concordam com o aborto não deveriam ter de realizá-lo? Não podemos todos concordar que a contraceção deveria estar disponível? E não podemos todos concordar que não vamos pôr uma mulher na prisão ou aplicar-lhe a pena de morte se fizer um aborto?”

Haley teve a desafiá-la Mike Pence, que no debate se afirmou “orgulhoso” por ter sido possível, durante o seu mandato (foi vice-presidente de Trump), colocar no Supremo Tribunal três juízes conservadores. O antigo número dois afirmou que “consenso é o oposto de liderança”, defendeu “uma liderança sem remorsos, que se baseie em princípios e expresse compaixão”, e prometeu pugnar pela proibição do aborto após 15 semanas em todos os estados.

Ao longo de duas horas, as perguntas foram trazendo à discussão temas como economia, alterações climáticas, armas, segurança na fronteira, educação, Ucrânia e Rússia, e até objetos voadores não-identificados.

ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS
outsider Vivek Ramaswamy, que nunca trabalhou no Estado e, nas palavras de Chris Christie, “soava como o Chat GPT”, assumiu-se como o mais trumpista dos candidatos, em estilo e substância. Defendeu que as alterações climáticas são “um embuste” e que “há mais pessoas a morrer de más políticas para as combater do que efetivamente das alterações climáticas”.

NARCÓTICOS
O governador do Dacota do Norte, Doug Burgum, trouxe a debate outro tipo de morte no país. “Não foram só os 70 mil por causa do fentanil. Perdemos 200 mil pessoas por overdose desde que Biden tomou posse.”

SEGURANÇA FRONTEIRIÇA
Questionado sobre se os EUA deveriam enviar forças especiais para dentro do México para combater os cartéis da droga, Ron DeSantis respondeu sem dúvidas. “Sim, reservamo-nos no direito de atuar.”

UCRÂNIA
Chris Christie, que foi, além de Mike Pence, o único a visitar a Ucrânia, considerou que as atrocidades cometidas naquele país são obra de “Vladimir Putin, de quem Donald Trump disse que é “brilhante e um génio”.

A guerra na Ucrânia quase monopolizou os comentários de política externa, com Haley, antiga diplomata na ONU (2017-18), a prever que uma vitória da Rússia seja uma vitória para a China, que a seguir irá “comer Taiwan”. A leitura pode impressionar analistas, mas é pouco provável que mobilize eleitorado.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui

Os talibãs não as deixam estudar, mas elas não se dão por vencidas: 50 afegãs vão frequentar universidades portuguesas

O regresso dos talibãs ao poder encurralou as afegãs em casa. Para as estudantes universitárias, em especial, as perspetivas de futuro caíram por terra, mas para 50 delas o sonho continuará em Portugal, onde têm garantidas bolsas de estudo para frequentar instituições do ensino superior. Nas 1424 candidaturas recebidas, “todas as raparigas usaram a expressão ‘poder continuar aquilo que eu estava a fazer’”, diz ao Expresso Ana Santos Pinto, responsável da Nexus 3.0, a organização não governamental que está na origem do projeto

FOTO Escola pública feminina, na província de Bamyan, no Afeganistão FLICKR CANADA IN AFGHANISTAN

A 15 de agosto de 2021, a retirada em contrarrelógio das tropas internacionais do Afeganistão e, em simultâneo, a avançada sem resistência dos talibãs sobre Cabul constituíram um enorme embaraço para quem acreditava que 20 anos de presença estrangeira no país tinham tornado a influência dos talibãs residual.

Nimroz, no sudoeste, foi a primeira província a cair, nove dias antes de as forças do Emirado Islâmico entrarem na capital. Nove dias depois, mais 32 regiões ficaram totalmente sob controlo talibã. Apenas a província do Panjshir, no nordeste, resistiu durante uns tempos.

Com igual rapidez, a autoridade dos talibãs impôs-se a todo o território, com o sector da educação a servir de montra do novo Afeganistão. Quatro dias após controlarem os edifícios governamentais em Cabul, as escolas secundárias reabriram para um novo ano letivo, mas apenas com professores e estudantes do sexo masculino.

A generalização da interdição do ensino às mulheres seria questão de tempo. A 20 de dezembro de 2022, foi proibido o acesso às universidades. Apenas as escolas primárias continuaram a ter estudantes do sexo feminino, uma cedência controversa num país tribal e conservador como é o Afeganistão.

Em junho passado, quase 80 meninas foram hospitalizadas na sequência de casos de envenenamento em duas escolas primárias do norte do país. Em causa estão raparigas nascidas já este século sem conhecimento nem memória do que é viver sob domínio talibã e andar invisível debaixo de uma burca.

Para muitas delas, agora sem direito a educação formal, resta correr riscos e procurar conhecimento em centros de aprendizagem clandestinos — ou então sair do país.

1424 candidaturas para vir para Portugal

É o que acontecerá a 50 universitárias afegãs que prosseguirão com os estudos em Portugal, ao abrigo de um programa que lhes garante uma bolsa com duração até três anos. “Recebemos 1424 candidaturas. Cada manifestação de interesse não é um número, é uma história, uma vida que está em causa”, explica ao Expresso Ana Santos Pinto, secretária-geral da Nexus 3.0, a organização não governamental (ONG) na origem do programa.

“A vida destas raparigas não parou, está fechada dentro de casa. Algumas delas continuam a ler e a procurar conhecimento, dentro dos limites que a casa e o regime lhes impõe. Isso é uma demonstração de resiliência e de esperança de que podem ter um futuro”, explica Santos Pinto.

Um primeiro grupo de 25 afegãs chegará a tempo de frequentar o ano letivo 2023/24. As restantes virão no próximo. “Bem sei que 25 é um número limitado, mas é aquilo que sabemos que conseguimos fazer com eficácia”, garante a responsável.

Todas as raparigas frequentavam universidades quando os talibãs as encurralaram dentro de casa. Em Portugal, tirarão o curso que escolherem, dentro das vagas disponibilizadas pelas instituições de ensino superior aderentes.

Duas rondas de entrevistas

“Elas candidatam-se àquilo que querem de acordo com uma listagem”, explica a fundadora da Nexus 3.0, realçando a recetividade “muito positiva” de universidades e politécnicos.

“Consoante as vagas que cada instituição disponibilizar, serão feitas duas rondas de entrevistas: uma mais pessoal, do ponto de vista da candidata, do seu percurso, das condições que dispõe e daquilo que já fez; e depois a própria instituição terá os seus critérios, do ponto de vista de exames e de provas de conhecimento.”

Desse trabalho cruzado entre as disponibilidades da academia portuguesa e os interesses pessoais das afegãs resultará a escolha dos 50 nomes. Selecionadas as estudantes, seguir-se-á uma etapa sensível.

Neste momento, a esmagadora maioria das candidatas está no Afeganistão. Outras já foram forçadas a sair do país e estão em países vizinhos, como o Paquistão e o Irão, “muito poucas ainda com o estatuto de proteção internacional”, diz a professora universitária.

As que estão no país terão de arranjar forma segura para atravessar a fronteira. “O primado é, naturalmente, a segurança destas raparigas. Temos de o fazer de uma forma o mais discreta possível, porque não se trata só da segurança delas, mas de toda a sua família”, que fica para trás.

“Estas raparigas nasceram após 2001”, o ano do 11 de Setembro, da subsequente invasão militar do Afeganistão e da deposição do primeiro governo talibã, punido por ter dado guarida à Al-Qaeda de Osama bin Laden.

“O que elas conhecem do país é um processo de presença internacional, dentro do qual houve uma abertura à educação, ao desenvolvimento de capacidades, uma esperança de construção de um futuro. E, subitamente, todo o planeamento de vida, tudo aquilo que imaginaram deixou de ser possível. As expectativas destas raparigas deixaram de poder ser concretizadas neste contexto”, diz Ana Santos Pinto.

“Os últimos 20 anos criaram uma noção de possibilidades diferentes daquela que existia há 40. Nas candidaturas, todas elas usaram a expressão ‘poder continuar aquilo que eu estava a fazer”, prossegue. Segundo a UNESCO, se em 2001 cerca de 5000 afegãs frequentavam o ensino superior, em 2021 esse número era de 100 mil.

CRONOLOGIA DE UM DESASTRE HUMANO

  • 19.09.2021 — Escolas secundárias reabrem só com professores e alunos do sexo masculino. Escolas femininas ficam encerradas indefinidamente.
  • 20.12.2022 — Mulheres são proibidas de frequentar as universidades.
  • 06.06.2023 — Talibãs dão 40 dias às ONG internacionais para transferirem as suas operações relativas à educação para organizações locais.

Este programa da Nexus 3.0 — organização fundada em 2022, por três mulheres, focada na promoção da educação, ciência, artes e cultura em contextos de fragilidade, violência e conflito — é também uma resposta a duas posições recentes da Assembleia da República.

  1. A 10 de fevereiro último, um projeto de resolução recomendou ao Governo que avaliasse com urgência a criação de um estatuto de estudante específico para refugiadas impedidas de frequentar o ensino superior, tendo como prioridade as afegãs. Apresentado pelo Livre, foi aprovado com votos favoráveis de todas as bancadas e abstenção do partido Chega.
  2. A 10 de março seguinte, outra resolução recomenda ao Governo que “incentive as instituições de ensino superior a implementarem programas de acolhimento e apoio a estudantes, investigadores e professores, provenientes do Afeganistão, que sejam impedidos de estudar, estejam em risco ou forçados à deslocação”. De iniciativa do PAN, foi aprovada por unanimidade.

“Não se pode apregoar a igualdade de género e não se tentar fazer alguma coisa quando no Afeganistão ocorre uma discriminação absoluta, um verdadeiro apartheid de género”, diz Ana Santos Pinto.

A expressão, que condensa a impossibilidade de exercício de direitos por razão de género, é usada atualmente pelas Nações Unidas para qualificar o tratamento dos talibãs às mulheres. “Com este nível de proibição absoluta não me ocorre outro exemplo” de regime político ao qual se possa aplicar este rótulo, diz a professora de Relações Internacionais.

CRONOLOGIA DO CERCO TALIBÃ ÀS MULHERES

  • 26.12.2021 — Proibição das mulheres viajarem a mais de 72 km sem a companhia de “um familiar masculino próximo”.
  • 07.05.2022 — Obrigatoriedade de as mulheres se cobrirem totalmente em público, incluindo o rosto. Doze dias depois, a medida é aplicada também às apresentadoras de televisão.
  • 10.11.2022 — Mulheres proibidas de usar banhos comunitários, ginásios e parques públicos.
  • 24.12.2022 — Proibição das mulheres trabalhar em organizações não governamentais. Cinco dias depois, os talibãs acedem a que continuem a trabalhar em ONG do sector da saúde.
  • 04.04.2023 — Afegãs proibidas de trabalhar para as Nações Unidas. A 5 de maio, o secretário-geral António Guterres anunciou que as operações da organização continuam no país, apesar das mulheres não poderem trabalhar para a ONU e ONG.
  • 05.07.2023 — Interdita a entrada em salões de beleza femininos, a quem é dado um mês para fecharem portas.

Outra frente do programa destinada a “criar capacidade no Afeganistão” será o ensino online. “Neste momento, o que as raparigas têm no Afeganistão para contactar com o exterior — seja da sua casa, seja do país — é essencialmente um telemóvel com acesso à Internet. É irregular e instável, mas existe. Gostaríamos de providenciar cursos de ensino superior com recurso ao online. Permitir-nos-ia chegar a mais raparigas”, diz a responsável.

Para garantir o financiamento do projeto, a Nexus 3.0 — que já coordena um programa de bolsas para refugiados oriundos da Ucrânia — bateu a várias portas, garantindo verbas públicas e comunitárias, bem como apoio de instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e mecenas.

As bolsas estão garantidas, faltando ainda uma verba complementar, a ser angariada por recolha privada, para custear despesas com viagens e alojamento, a necessidade de equipamentos informáticos ou de uma consulta num dentista, por exemplo. Nesta ligação é disponibilizada informação sobre como contribuir.

“Independentemente da sua área científica, todas as raparigas que submeteram candidatura têm o desejo de transformar o contexto das mulheres no Afeganistão”, conclui Ana Santos Pinto, que participou no processo de análise das propostas. “Para elas, é aquilo que, obviamente, é mais sensível.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui

Há dois anos no poder, Governo talibã afirma-se pelo “apartheid de género”

Os radicais privaram as mulheres de trabalhar e de frequentar estabelecimentos de ensino. Determinadas em seguir com a vida que tinham, 50 universitárias afegãs virão estudar para Portugal

Mulher coberta por uma burqa, no Afeganistão DIRK HAAS / FLICKR AFGHANISTAN MATTERS

O regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão, fez na terça-feira dois anos, reativou um conceito da Ciência Política que não se aplica, de forma tão absoluta, a nenhum outro regime político — “apartheid de género”. O termo, que remete para uma situação de discriminação sistemática e institucionalizada das mulheres, é hoje usado pelas Nações Unidas para rotular o Governo dos radicais.

Primeiro, baniram as mulheres de balneários, ginásios e parques públicos. Depois, deixaram cair a guilhotina sobre os sonhos de milhares de jovens, proibindo-as de frequentar a universidade e de exercer uma profissão (exceção feita ao sector da saúde). Sucessivos decretos foram encurralando as afegãs em casa. A 5 de julho passado, os talibãs deram um mês a todos os salões de beleza femininos para fechar portas.

Com as vidas interrompidas, e remetidas ao desígnio medieval de cuidar da casa e ter filhos em exclusivo, muitas estão recetivas a seguir em frente noutro país. É neste contexto que chegarão a Portugal 50 estudantes universitárias afegãs (25 já este ano letivo), no âmbito de um programa de atribuição de bolsas da Nexus 3.0, uma organização não governamental fundada em 2022 por três mulheres portuguesas.

Recomeçar em Portugal

“Não se pode apregoar a igualdade de género e não se tentar fazer alguma coisa quando, neste momento, no Afeganistão, ocorre uma discriminação absoluta e um verdadeiro apartheid de género”, diz ao Expresso Ana Santos Pinto, secretária-geral da organização.

A esmagadora maioria das jovens que irá beneficiar das bolsas estão no Afeganistão, onde frequentavam os mais variados cursos. Em Portugal, estudarão o que escolherem, mediante as vagas disponibilizadas por universidades e politécnicos de todo o país. “A vida destas raparigas não parou, antes está fechada dentro de casa”, continua Ana Santos Pinto. “Algumas delas tentam continuar ativas, leem e procuram conhecimento, dentro dos limites que a casa e o regime impõem. É uma demonstração de resiliência e de esperança.”

Ao todo, a Nexus 3.0 recebeu 1424 candidaturas. Esta procura revela que “fugir” do país continua a ser a prioridade para muitos afegãos. Nas travessias do Mediterrâneo, onde muitos migrantes arriscam a vida para tentar chegar à Europa, os afegãos continuam a ser dos contingentes mais numerosos. Em finais de 2022, 52% do total mundial de refugiados eram sírios, ucranianos e afegãos.

O regresso ao poder retirou os talibãs das trincheiras da resistência armada, que tanto sangue derramou durante a presença militar internacional. Mas não pacificou o país. “O Afeganistão está mais seguro do que estava nos anos da presença dos EUA e da NATO. Mas os talibãs têm sido incapazes de passarem de força rebelde para força governamental”, diz ao Expresso Agostino Bono, analista no International Team for the Study of Security Verona.

Alternativa chamada Daesh

A queda em desgraça do Governo do Presidente Ashraf Ghani, que fugiu do país no dia em que os talibãs entraram em Cabul sem a mínima resistência, impulsionou grupos terroristas no Afeganistão e no Paquistão. “O grupo que mais beneficiou foi o Estado Islâmico — Província Khorasan [Daesh-K], estabelecido em 2014, que combate os talibãs e assume-se como uma alternativa ao seu Emirado Islâmico”, acrescenta Bono.

Um ataque revelador desta inimizade ocorreu a 8 de junho, durante o funeral de um político talibã, morto num ataque suicida. Uma explosão dentro da mesquita onde decorria o ritual, na província de Badakhshan (norte), provocou 19 mortos. O Daesh-K reivindicou o ataque ao funeral e a execução do político.

“O Afeganistão nunca terá segurança enquanto o Daesh-K estiver ativo na região”, prevê o investigador. “O Daesh-K, que no passado tinha como principal alvo os hazaras [minoria xiita], agora visa interesses estrangeiros. Em finais de 2022, atacou as embaixadas russa e paquistanesa e um hotel chinês. A estratégia visa desacreditar o Emirado perante a população e a comunidade internacional.”

Outra potencial fonte de instabilidade decorre das divisões entre talibãs. Em linha de choque estão a ala dura, representada pelo líder supremo, Mawlawi Hibatullah Akhundzada, instalado em Kandahar (local de nascimento do movimento talibã, no sul), e outra mais pragmática, protagonizada pela liderança do Governo em Cabul. Em teoria, os últimos, ditos moderados, estão dispostos ao diálogo com o Ocidente e a abrir as escolas às raparigas. Atualmente, os conservadores levam a melhor.

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de agosto de 2023, e no “Expresso Online”, no mesmo dia. Pode ser consultado aqui e aqui

Iranianas preparam nova revolta contra o regime dos ‘ayatollahs’: “Vejo as mulheres mais motivadas do que assustadas”

A um mês do primeiro aniversário da morte da jovem iraniana Mahsa Amini às mãos da polícia da moralidade, por usar o lenço islâmico de forma “imprópria”, há cada vez mais iranianas a sair à rua sem o hijab na cabeça. Ao Expresso, uma jovem envolvida em ações clandestinas de resistência ao regime religioso partilha as motivações das mulheres e levanta o véu sobre a jornada de contestação que se projeta para o próximo mês. “De certeza que o regime vai aumentar a repressão, mas até a repressão tem limites”, desafia

O Irão está em contagem decrescente para aquilo que se perfila como uma nova vaga de protestos contra as autoridades teocráticas. Dentro de exatamente um mês, passará um ano desde a violenta morte da iraniana Mahsa Amini, de 22 anos, num hospital de Teerão, na sequência de ferimentos infligidos por agentes da polícia da moralidade. A jovem fora detida por levar o lenço islâmico na cabeça (hijab) de forma “imprópria”.

Nas ruas do país, uma presença crescentemente indiscreta é reveladora do nervosismo do regime quanto a esse cenário. Dez meses após os grandes protestos antirregime que se seguiram à morte da jovem curda, a polícia da moralidade regressou em força, com “patrulhas de orientação” a percorrer os espaços públicos com o foco nas mulheres.

“Eles colocaram a polícia da moralidade em todas as ruas principais. Há carros grandes com agentes do sexo feminino que mandam parar as mulheres e meninas que não usam o véu e levam-nas para as esquadras. Recentemente, o município de Teerão contratou 400 agentes para controlar as estações de metro e impedir que mulheres sem véu usem esse transporte”, diz ao Expresso Niloufar (nome fictício), uma iraniana de 26 anos, residente na cidade de Shiraz, no sul do país.

No Irão, a quantidade de mulheres que recusa cobrir a cabeça quando sai de casa aumentou muitíssimo, num claro gesto de desafio ao regime dos ayatollahs. “Apesar das patrulhas, muitas mulheres não colocam o véu nas ruas”, continua a jovem. “É uma forma de protesto. As mulheres falam sobre a próxima revolta que será ainda maior e mais forte” do que a do ano passado.

Para além do boicote ao hijab, cujo uso é obrigatório pela lei da República Islâmica, as mulheres têm recorrido a “formas mais profundas de mostrar oposição”, diz Niloufar. “Apesar da repressão, há cada vez mais palavras de ordem contra o regime escritas nas paredes. Os grandes cartazes com fotos dos líderes do regime, em particular [o Líder Supremo, o ayatollah] Ali Khamenei, são destruídos e às vezes queimados. Isto é muito percetível.”

Também nas redes sociais, as mulheres desdobram-se em incentivos à mobilização no primeiro aniversário da morte de Mahsa Amini. “É hora de nos erguemos”, “não há outra forma”, “vamo-nos vingar”, lê-se nos cartazes em farsi, exibidos por iranianas que ocultam a identidade, mas não os cabelos sem véu.

“Eu vejo as mulheres mais motivadas do que assustadas. Estão unidas, querem liberdade e direitos básicos. Sabem que podem ser presas, mas estão determinadas”, diz Niloufar. “Os mullahs têm todas as razões para temer uma nova revolta no aniversário da morte de Mahsa Amini. De certeza que o regime vai aumentar a repressão, mas até a repressão tem limites. Tenho a certeza que as jovens e as mulheres não enjeitarão nenhuma possibilidade de ir para as ruas e o regime sabe disso.”

“Este é o preço pela nossa liberdade. Algo mudou para sempre no Irão desde o ano passado.”

Muitas já o fazem, arriscando serem enxovalhadas e agredidas na via pública, como aconteceu à mulher que seguia sem véu, no vídeo abaixo, registado na cidade de Amol, no norte do país.

Niloufar leva uma autêntica vida dupla na região onde vive. Sem que a família tenha conhecimento, ela põe a sua segurança em risco e colabora ativamente, na clandestinidade, com a Organização dos Mujahidin [Combatentes] do Povo do Irão [MEK, na sigla persa], um grupo opositor ao regime dos ayatollahs, formado por dissidentes no exílio.

“Todos os dias, vemos cada vez mais ações realizadas em várias cidades por células de resistência ligadas ao MEK. Muitas destas unidades são compostas por mulheres valentes, cientes dos riscos de vida que correm quando escrevem slogans nas paredes contra o regime, distribuem folhetos do MEK ou colocam fotografias da líder do grupo, Maryam Rajavi” na via pública, penduradas em pontes e viadutos. “Há alguns protocolos como, por exemplo, vigiar que não há polícia por perto. Parece uma operação de uma guerra.”

A organização é um alvo especial do regime. Durante os protestos após o caso Mahsa Amini, 3626 apoiantes e simpatizantes do MEK foram presos. No mês passado, um dos seus membros, Javad Vafaei, de 27 anos, natural de Mashhad, a segunda maior cidade do Irão, foi condenado à morte pelas suas atividades ao serviço do MEK, designadamente participação em protestos.

A execução por enforcamento de manifestantes tem sido uma das armas do regime para calar a contestação. Niloufar descreve mais brutalidade das forças governamentais. “Muitos manifestantes ficaram cegos após serem usadas espingardas contra eles. Quando prendem pessoas, pulverizam-lhes os olhos para não verem quem os está a prender ou para onde são levados. É uma espécie de tortura branca, não atacam o corpo, mas a alma.

“Impor medo e terror ao povo é a maneira dos mullahs manterem o seu poder.”

Hoje, como sempre desde a Revolução Islâmica no Irão (1979), a polícia da moralidade e a imposição do hijab são as estratégias favoritas do regime para controlar as mulheres. Mas diante de cada vez mais atos de desobediência na via pública, o Governo tem intensificado e diversificado medidas para as intimidar.

Nas últimas semanas, um projeto de lei destinado a endurecer as penalizações para as iranianas que recusem usar o hijab começou a produzir resultados ainda antes de ser aprovado pelos legisladores. O novo diploma visa introduzir formas de obrigar ao uso do hijab sem passar por confrontos entre polícia e cidadãos.

Reservado a mulheres com hijab

Isso passa por penalizar as mulheres nos empregos, universidades, espaços comerciais, aeroportos, restaurantes, no interior de carros ou nas redes sociais. E também punir quem quer que o regime entenda ser cúmplice dos atos de rebeldia femininos.

Em nome da decência da República Islâmica, um restaurante que abra as portas a uma cliente sem hijab, por exemplo, pode ser multado. Um caso recente exposto nas redes sociais tem no centro a startup iraniana Digikala que, no mês passado, viu a sua sede ser fechada pelas autoridades até que fosse feito um pedido de desculpas público pelo “comportamento não islâmico” de funcionárias que não usavam o hijab. E também que a empresa adotasse um código de vestuário.

Muita da controvérsia em torno deste projeto de lei prende-se com o facto de estar a ser discutido à margem das sessões regulares do Parlamento, mas antes numa comissão parlamentar e à porta fechada, para não suscitar debate público.

Niloufar, que à semelhança de muitas conterrâneas arrisca sair à rua sem o hijab, diz que as forças de segurança “temem” as mulheres iranianas, uma vez que elas, especialmente as jovens, “estão na linha da frente da revolta e motivam outras pessoas a protestar”, diz. “Os mullahs pensam que, visando as mulheres, podem controlar as ruas e manter a população descontente dentro de casa. Mas como é possível assustar metade da população do Irão dessa maneira?”

O véu islâmico é um poderoso símbolo político no Irão. A seguir à morte de Mahsa Amini, muitas mulheres queimaram os seus lenços em fogueiras na via pública. No atual contexto, não usá-lo de todo ou de forma relaxada, deixando à mostra fartas mechas de cabelo, é uma forma inequívoca de rejeitar o regime.

“Este regime é misógino, quer limitar as mulheres. Eles não contemplam direitos para as mulheres, pensam que são cidadãos de segunda. Os mullahs são muito antiquados e agressivos. Dizem que são muçulmanos, mas não são. Mostram o Islão como uma religião agressiva no mundo. E executam pessoas”, conclui Niloufar, que não se considera uma pessoa religiosa, mas diz observar algumas regras.

“Os fundamentalistas são contra as mulheres em qualquer lado, e os mullahs que mandam no Irão são o regime mais fundamentalista de todos. Por isso, por definição, eles são contra as mulheres. Mas a repressão sobre as mulheres é apenas uma parte da repressão sobre toda a sociedade que se virou contra eles.”

(FOTO A imagem de Mahsa Amini, numa manifestação solidária com os protestos anti-regime no Irão, na cidade australiana de Melbourne MATT HRKAC / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de agosto de 2023, e no “Expresso”, a 18 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui