Há dois anos no poder, Governo talibã afirma-se pelo “apartheid de género”

Os radicais privaram as mulheres de trabalhar e de frequentar estabelecimentos de ensino. Determinadas em seguir com a vida que tinham, 50 universitárias afegãs virão estudar para Portugal

Mulher coberta por uma burqa, no Afeganistão DIRK HAAS / FLICKR AFGHANISTAN MATTERS

O regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão, fez na terça-feira dois anos, reativou um conceito da Ciência Política que não se aplica, de forma tão absoluta, a nenhum outro regime político — “apartheid de género”. O termo, que remete para uma situação de discriminação sistemática e institucionalizada das mulheres, é hoje usado pelas Nações Unidas para rotular o Governo dos radicais.

Primeiro, baniram as mulheres de balneários, ginásios e parques públicos. Depois, deixaram cair a guilhotina sobre os sonhos de milhares de jovens, proibindo-as de frequentar a universidade e de exercer uma profissão (exceção feita ao sector da saúde). Sucessivos decretos foram encurralando as afegãs em casa. A 5 de julho passado, os talibãs deram um mês a todos os salões de beleza femininos para fechar portas.

Com as vidas interrompidas, e remetidas ao desígnio medieval de cuidar da casa e ter filhos em exclusivo, muitas estão recetivas a seguir em frente noutro país. É neste contexto que chegarão a Portugal 50 estudantes universitárias afegãs (25 já este ano letivo), no âmbito de um programa de atribuição de bolsas da Nexus 3.0, uma organização não governamental fundada em 2022 por três mulheres portuguesas.

Recomeçar em Portugal

“Não se pode apregoar a igualdade de género e não se tentar fazer alguma coisa quando, neste momento, no Afeganistão, ocorre uma discriminação absoluta e um verdadeiro apartheid de género”, diz ao Expresso Ana Santos Pinto, secretária-geral da organização.

A esmagadora maioria das jovens que irá beneficiar das bolsas estão no Afeganistão, onde frequentavam os mais variados cursos. Em Portugal, estudarão o que escolherem, mediante as vagas disponibilizadas por universidades e politécnicos de todo o país. “A vida destas raparigas não parou, antes está fechada dentro de casa”, continua Ana Santos Pinto. “Algumas delas tentam continuar ativas, leem e procuram conhecimento, dentro dos limites que a casa e o regime impõem. É uma demonstração de resiliência e de esperança.”

Ao todo, a Nexus 3.0 recebeu 1424 candidaturas. Esta procura revela que “fugir” do país continua a ser a prioridade para muitos afegãos. Nas travessias do Mediterrâneo, onde muitos migrantes arriscam a vida para tentar chegar à Europa, os afegãos continuam a ser dos contingentes mais numerosos. Em finais de 2022, 52% do total mundial de refugiados eram sírios, ucranianos e afegãos.

O regresso ao poder retirou os talibãs das trincheiras da resistência armada, que tanto sangue derramou durante a presença militar internacional. Mas não pacificou o país. “O Afeganistão está mais seguro do que estava nos anos da presença dos EUA e da NATO. Mas os talibãs têm sido incapazes de passarem de força rebelde para força governamental”, diz ao Expresso Agostino Bono, analista no International Team for the Study of Security Verona.

Alternativa chamada Daesh

A queda em desgraça do Governo do Presidente Ashraf Ghani, que fugiu do país no dia em que os talibãs entraram em Cabul sem a mínima resistência, impulsionou grupos terroristas no Afeganistão e no Paquistão. “O grupo que mais beneficiou foi o Estado Islâmico — Província Khorasan [Daesh-K], estabelecido em 2014, que combate os talibãs e assume-se como uma alternativa ao seu Emirado Islâmico”, acrescenta Bono.

Um ataque revelador desta inimizade ocorreu a 8 de junho, durante o funeral de um político talibã, morto num ataque suicida. Uma explosão dentro da mesquita onde decorria o ritual, na província de Badakhshan (norte), provocou 19 mortos. O Daesh-K reivindicou o ataque ao funeral e a execução do político.

“O Afeganistão nunca terá segurança enquanto o Daesh-K estiver ativo na região”, prevê o investigador. “O Daesh-K, que no passado tinha como principal alvo os hazaras [minoria xiita], agora visa interesses estrangeiros. Em finais de 2022, atacou as embaixadas russa e paquistanesa e um hotel chinês. A estratégia visa desacreditar o Emirado perante a população e a comunidade internacional.”

Outra potencial fonte de instabilidade decorre das divisões entre talibãs. Em linha de choque estão a ala dura, representada pelo líder supremo, Mawlawi Hibatullah Akhundzada, instalado em Kandahar (local de nascimento do movimento talibã, no sul), e outra mais pragmática, protagonizada pela liderança do Governo em Cabul. Em teoria, os últimos, ditos moderados, estão dispostos ao diálogo com o Ocidente e a abrir as escolas às raparigas. Atualmente, os conservadores levam a melhor.

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de agosto de 2023, e no “Expresso Online”, no mesmo dia. Pode ser consultado aqui e aqui

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