Usados como peças de xadrez no tabuleiro geopolítico regional, cinco Estados podem ser os primeiros a beneficiar com a reaproximação saudita-iraniana
Arábia Saudita e Irão têm uma rivalidade antiga que moldou o Médio Oriente. Mais do que um acordo, o recente entendimento é, acima de tudo, uma medida de criação de confiança entre ambos. Apesar de não contemplar um roteiro para a resolução dos diferendos que os opõem, há potencial para acreditar que possa gerar estabilidade. Também há, contudo, especificidades que transcendem a vontade dos dois gigantes.
IÉMEN
Acordo é bom, mas falta ouvir os locais
Em guerra há quase dez anos, o Iémen tem sido uma peça no xadrez das rivalidades regionais, pelo que é o país onde o impacto do acordo pode ser maior. O Irão é aliado dos rebeldes huthis (xiitas) e a Arábia Saudita lidera uma operação militar regional de bombardeamentos ao país, visando o fim da era huthi e o regresso do Governo deposto, refugiado na cidade de Aden. Mas é ingénuo pensar que basta a vontade dos dois países para ditar a paz naquele território tribal, cuja governação o antigo ditador Ali Abdullah Saleh comparou a “uma dança sobre cabeças de serpentes”.
“Há um consenso de que o acordo diplomático entre a Arábia Saudita e o Irão é bom para o Iémen. Ao mesmo tempo, existe um entendimento de que a dimensão regional é só uma parte do conflito, que também tem uma dimensão local”, explica ao Expresso Veena Ali-Khan, investigadora do International Crisis Group para o Iémen. “Um acordo regional é um passo em frente, mas não é tudo; ainda é preciso um diálogo entre iemenitas.”
No terreno o país vive um cessar-fogo que sobreviveu ao seu término oficial, em outubro passado. Apesar de não ter sido renovado, as principais linhas da frente mantêm-se congeladas, havendo registo de ataques e combates aleatórios. Oficialmente, a trégua continua em vigor e os principais grupos em contenda têm-se privado de lançar ofensivas, o que indicia uma vontade de voltar a página do conflito e seguir em frente.
“Há um ambiente de reconciliação. Os huthis estão a falar com os sauditas, mas há sempre a possibilidade de o conflito se reacender. Os huthis saudaram o pacto, mas deixaram muito claro que um acordo entre Irão e Arábia Saudita não complementa um acordo entre huthis e sauditas.”
Recentemente, num posto de fronteira entre os dois países, as partes devolveram cadáveres de combatentes, num gesto interpretado como sinal de progresso entre ambos. Os sauditas receberam seis corpos e os huthis 58, naquele que foi o terceiro acordo do género.
Enquanto algumas feridas não saram e a política continua a marcar passo, acentua-se a grande catástrofe humanitária em que se transformou o Iémen. Terça-feira, o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas anunciou a suspensão do seu programa de prevenção da desnutrição. Tudo acontece num dos países mais pobres do mundo, altamente dependente da ajuda internacional e onde, segundo a UNICEF, uma criança morre a cada dez minutos.
Síria
Guerra não acabou, mas Assad manda
A guerra na Síria foi outro braço de ferro entre os dois rivais. O Irão foi um esteio para Bashar al-Assad, fazendo deslocar, desde o vizinho Líbano, combatentes do aliado xiita Hezbollah para defender o ditador. A Arábia Saudita, por seu lado, apoiou grupos da oposição. No entanto, 12 anos após o início do conflito, e ainda que não tenha formalmente terminado, Riade e Teerão deixaram de olhar para a Síria como uma guerra por procuração.
Com a ajuda dos bombardeamentos da Rússia, as forças de Assad recuperaram muito território. Hoje, mesmo países que, de início, estiveram do lado da oposição aceitam que reconhecer que Assad voltou a mandar no país é um atalho para limitar mais instabilidade na região. Três países árabes resistem nessa aproximação: Marrocos, Catar e Kuwait.
Em maio passado, esse consenso crescente de que o diálogo com a Síria é necessário foi coroado com a reintegração da Síria na Liga Árabe, de onde tinha sido suspensa no primeiro ano da guerra. Essa reabilitação regional de Assad aconteceu numa cimeira realizada na cidade saudita de Jeddah.
“O Irão não faz parte da Liga Árabe [é um país persa], mas esse regresso da Síria à organização faz parte da normalização entre os dois países”, diz ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “Há uma aceitação de que Bashar al-Assad venceu a guerra, e essa normalização do líder é consequência direta da normalização das relações entre Riade e Teerão.”
Na cimeira árabe de Jeddah, Assad comentou o regresso da Síria ao concerto árabe: “Espero que marque o início de uma nova fase de ação árabe pela solidariedade entre nós, pela paz na nossa região, por desenvolvimento e prosperidade em vez de guerra e destruição”. Para trás ficaram mais de 300 mil civis mortos, quase 340 ataques com armas químicas, 82 mil bombas de barril lançadas sobre zonas residenciais e dezenas de cercos a localidades ao estilo medieval. Mais de 13 milhões de pessoas tornaram-se deslocados ou refugiados.
Líbano
Polarização e crise não são prioridades
O anúncio do acordo entre sauditas e iranianos criou uma ilusão no Líbano. Com o país fortemente polarizado, a nível político, entre o movimento xiita Hezbollah e seus aliados (que representam a influência do Irão no país) e, no campo oposto, algumas fações apoiadas pela Arábia Saudita, “quando o acordo foi inicialmente tornado público, ambos os lados tiveram a expectativa de que ajudasse a resolver o impasse político no país… a seu favor”, explica ao Expresso David Wood, analista do International Crisis Group para o Líbano.
Organizado mediante um sistema confessional, que determina que o Presidente do país seja sempre cristão maronita, o primeiro-ministro muçulmano sunita e o presidente do Parlamento muçulmano xiita, o Líbano está há dez meses sem conseguir eleger o chefe de Estado. A escolha cabe ao Parlamento, que já falhou 12 tentativas.
Este impasse político, num país que reconhece, oficialmente, 18 grupos religiosos, expõe uma classe política que age em função de agendas sectárias e não de um interesse nacional. Para agravar, o país atravessa uma grave crise económica — em abril, a taxa de inflação estava nos 269% — e vive na iminência de colapso financeiro, alimentado por altos índices de corrupção, incompetência e desvios de dinheiro público.
A recuperação económica está dependente de um empréstimo de 785 milhões de euros concedido pelo Fundo Monetário Internacional, que não avança devido às múltiplas crises que o país enfrenta. À semelhança do que se passa em relação ao Presidente, os políticos também não se entendem sobre o governador do Banco Central.
“O Líbano ainda não sentiu qualquer impacto tangível da reaproximação iraniano-saudita”, assegura Wood. “Na realidade, o país é uma prioridade muito menor para Riade e Teerão, em comparação com vários outros vizinhos. Por isso, é improvável que a reaproximação faça grande diferença no Líbano até que a Arábia Saudita e o Irão resolvam outros conflitos que consideram mais urgentes, a começar pela situação no Iémen.”
Esta falta de urgência em estabilizar o Líbano prende-se também com o peso desigual que o país tem para Riade e Teerão. Para esta, é uma das pontas do chamado arco xiita, com o qual a República Islâmica projeta influência no Médio Oriente.
Iraque
Arena de diálogo para amaciar
Antes da assinatura do acordo entre Riade e Teerão, em Pequim, foi em Bagdade que, durante dois anos, as partes partiram pedra para desbravar um caminho comum. Pela sua complexidade étnica e religiosa, o Iraque tem fações naturalmente próximas de ambos os países. Essa circunstância contribuiu para transformar este país num campo de batalhas por procuração após a queda do ditador Saddam Hussein e, mais recentemente, numa arena de diálogo. Entre 2020 e 2022, realizaram-se cinco rondas de conversações que serviram para clarificar pontos de vista e criar uma prática regular de comunicação.
Com o Irão, o Iraque partilha 1600 quilómetros de fronteira e uma população de maioria xiita, que foi reprimida nos tempos do sunita Saddam e chegou ao poder nos anos da guerra iniciada em 2003. Mais ainda, é um país atravessado pelo arco xiita de influência iraniana na região. Muitos grupos armados recebem apoio direto da Guarda Revolucionária Iraniana, algo que ficou exposto quando, a 3 de janeiro de 2020, o general Qasem Soleimani — herói nacional no Irão, tido como cérebro da estratégia militar do país para o Médio Oriente — foi assassinado no aeroporto de Bagdade por drones dos Estados Unidos. Em retaliação, Teerão bombardeou uma base americana no Iraque.
Já a Arábia Saudita, que nunca teve um grau de envolvimento militar no Iraque semelhante ao do Irão, partilha uma fronteira de 800 quilómetros, onde chega a sentir vulnerabilidade. Riade tem maior afinidade com a comunidade sunita, profundamente tribal, e representa um potencial de grandes investimentos que Teerão não consegue acompanhar. Para os sauditas, o acordo com o Irão funciona também como salvaguarda, na eventualidade de escalada na sempre tensa relação entre Teerão e Washington.
Bahrain
A curta distância dos dois gigantes
Este arquipélago do Golfo Pérsico é o único reino da Península Arábica que tem uma monarquia reinante sunita e uma população de maioria xiita, por vezes apontada como potencial quinta-coluna do Irão. Esta circunstância tornou o país vulnerável a interferências do gigante xiita, como sucedeu durante a Primavera Árabe (2011) — Riade interveio em defesa da dinastia Al-Khalifa e Teerão dos manifestantes —, e condena-o a ser um permanente palco de competição ideológica e geopolítica entre os dois gigantes.
Em 2016, o Bahrain foi lesto a solidarizar-se com a Arábia Saudita e a cortar relações com o Irão no dia seguinte a Riade tê-lo feito. Desde então, acentuou as suas divergências em relação a Teerão e reconheceu o Estado de Israel, tornando-se um dos protagonistas dos Acordos de Abraão, promovidos pelo então Presidente americano Donald Trump.
Ao estilo de um efeito dominó, Bahrain, Jordânia e Egito são apontados como os países árabes que estão na calha para normalizar relações diplomáticas com o Irão. “As autoridades egípcias já afirmaram que a melhoria do relacionamento entre o Cairo e Teerão depende de como progredir a relação entre o Irão e a Arábia Saudita”, explica o académico iraniano Javad Heiran-Nia. Da relação Riade-Teerão parece depender o degelo do Médio Oriente.
Quem fica a perder?
ISRAEL
O Irão é o elemento central da política externa de Israel, que o vê como ameaça existencial (devido ao programa nuclear) e circunstancial (pelo apoio a grupos palestinianos). Os Acordos de Abraão, com que o Estado hebraico iniciou uma aproximação ao mundo árabe, visaram também isolar o Irão. Com quatro países a bordo, a Arábia Saudita era candidata. “A pressão está sobre Riade”, diz Tiago Lopes. “Terá de escolher se dá prioridade ao Irão, para reconstruir o grande espaço islâmico, se a Israel, numa lógica de estabilização da região.”
TURQUIA
“A Turquia perde espaço político no Médio Oriente com a aproximação entre Irão e Arábia Saudita”, comenta o docente da Universidade Portucalense. “No mundo sunita, sempre foi vista como poder mediador e moderado. Com a normalização, deixa de poder fazer a ponte, porque não há nada para moderar.” Tiago Lopes recorda a recente cimeira da NATO, em Vílnius, onde após colocar entraves à adesão da Suécia, Ancara acabou por ceder. “A Turquia decidiu voltar à sua política de ambiguidade, que é ter relações com o Ocidente, mas também não estragar o relacionamento que tem com a Rússia.”
Muito do pensamento político do Papa revela-se durante as suas deslocações ao estrangeiro. Desde a primeira, ao Brasil, até à última, à Hungria, o jesuíta nascido num bairro pobre de Buenos Aires tem privilegiado o contacto com os mais pobres e marginalizados, o diálogo entre religiões e jornadas ecuménicas com os “irmãos” cristãos. Apologista da “cultura do encontro”, a realidade obrigou-o a teorizar a “cultura do descarte”. Uma viagem pelas 41 deslocações de Francisco ao estrangeiro
A deslocação do Papa Francisco a Portugal será a sua 42.ª viagem apostólica ALBERTO PIZZOLI / AFP / GETTY IMAGES
Jorge Mario Bergoglio foi o primeiro jesuíta a sentar-se na cadeira de São Pedro. Na hora de escolher um nome que cunhasse o seu magistério, entendeu homenagear São Francisco de Assis e a sua dedicação aos pobres. Afinal, também ele, nascido e criado no Bairro de Flores, hoje um dos mais violentos da capital da Argentina, conviveu desde tenra idade — e posteriormente enquanto arcebispo de Buenos Aires — com a dura realidade dos mais desfavorecidos.
Esta forma de estar franciscana tem-se refletido nos destinos que o Papa escolhe visitar, nos alertas que faz e nas mensagens que vai deixando por onde passa.
“Ele sempre deixou claro que as periferias são a sua prioridade, lugares pobres ou marginalizados, ou onde os cristãos estão em minoria. Mesmo quando visitou países maiores, tentou prestar atenção às periferias tanto quanto às principais cidades”, diz ao Expresso Austen Ivereigh, autor do livro “Francisco, o Grande Reformador — Os Caminhos de um Papa Radical”.
“Ele está convencido, a partir do Evangelho e do exemplo de Jesus, de que novas possibilidades surgem com a abertura do centro às margens, que clamam por serem reconhecidas e integradas. Ao visitá-las, ajuda a revelar ao mundo lugares de pobreza e sofrimento. Isto vai contra a lógica do mundo, segundo a qual se provocam mudanças indo até aos que têm influência e poder. Francisco acredita que o oposto também é verdadeiro.”
VIAGENS APOSTÓLICAS DO PAPA FRANCISCO
Ao longo das 41 viagens apostólicas que Francisco já fez pelo mundo desde o início do seu pontificado, a 13 de março de 2013, o Papa tem dado passos que o caracterizam enquanto pastor, mas também enquanto político e diplomata.
Enfrentar a vergonha
Quatro meses após assumir a liderança da Igreja de Roma, Francisco realizou a sua primeira deslocação ao estrangeiro, ao BRASIL, a pretexto da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) no Rio de Janeiro. Apesar da euforia em torno da visita, o país católico mais populoso do mundo testemunhava uma debandada de fiéis para igrejas evangélicas, denominações protestantes ou simplesmente para o secularismo.
Se, nos anos 80, quando João Paulo II percorreu a América Latina, o Vaticano se debatia com o desafio colocado pela Teologia da Libertação — temendo que os marxistas instrumentalizassem a preferência destes clérigos pelos pobres e os Evangelhos fossem usados como apelos à luta armada —, Francisco desenvolveu grande proximidade aos movimentos sociais da América Latina. Com isso, ganhou epítetos de “socialista” ou “esquerdista”.
Hidratar com a ajuda de uma cabaça usada para beber chá-mate, muito apreciado na América do SulMassimo Valicchia / Getty Images
Essa postura criou empatia mesmo entre os não-crentes, mas não o imunizou da turbulência provocada por um grande escândalo de abusos sexuais no seio da Igreja Católica, que o perseguiu, em especial, nas viagens pelo seu continente nativo. A deslocação ao CHILE (2018) foi, a esse nível, marcante.
À partida, a visita estava sinalizada como difícil. Três igrejas tinham sido incendiadas e, numa delas, a Igreja de Santa Isabel de Hungria, em Santiago do Chile, tinham sido deixados folhetos, ao estilo de manifesto, exigindo, entre outras coisas, “liberdade para todos os presos políticos do mundo, autonomia para a região indígena de Wallmapu”. Havia ainda uma ameaça: “Papa Francisco, as próximas bombas serão na tua batina”.
Reputação ferida
O Chile estava em polvorosa e, no centro da hostilidade ao Papa, estava um caso particular: a confiança cega que depositava no bispo de Osorno, Juan Barros, acusado de dar cobertura a um padre pedófilo, e que acompanhou o Papa em todos os eventos públicos. Quando questionado por jornalistas sobre essa circunstância, Francisco respondeu: “Quando me trouxerem uma prova contra o bispo Barros, eu falo. Não vi um único pedaço de prova contra ele. Tudo isso é uma calúnia. Está claro?”
Ainda que no seu primeiro discurso em terras chilenas o Papa tenha dito sentir “dor e vergonha” e pedido perdão às vítimas de abusos sexuais às mãos de padres, a perceção de que Francisco não fez uma avaliação justa no caso do bispo de Osorno feriu-lhe a reputação.
O vento na batina, numa cerimónia em Knock, um sinal da turbulência por que passava a católica IrlandaCharles McQuillan / Getty Images
Nesse annus horribilis de 2018, o Papa levou outro banho de realidade na cada vez menos católica IRLANDA, traumatizada por revelações de padres pedófilos, abusos sexuais em orfanatos geridos por católicos e exploração e maus tratos em instituições religiosas para mães solteiras.
“Pedimos perdão pelos casos de abuso na Irlanda, abuso de poder, abuso de consciência e abuso sexual por parte de representantes da Igreja”, disse Francisco, num “ato penitencial” durante a missa realizada em Phoenix Park, Dublin. “Pedimos perdão por alguns membros da hierarquia que não se responsabilizaram por essas situações dolorosas e ficaram em silêncio.”
Na Irlanda, como noutros países, as palavras do Sumo Pontífice não comoveram as vítimas, que exigiam justiça efetiva, como o afastamento de bispos, e não apenas um mea culpa, ainda que sentido.
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milhões de pessoas assistiram à missa presidida pelo Papa Francisco, no Parque Rizal, em Manila, a 18 de janeiro de 2015. Está registado como o maior evento papal da história.
Acertar contas com a História
Nas deslocações ao continente americano, além do problema dos abusos sexuais, o Papa teve outros fantasmas a ensombrar as jornadas apostólicas. Durante a “Peregrinação da Penitência”, como designou a viagem ao CANADÁ (2022), deslocou-se à localidade remota de Iqaluit, junto ao Ártico, para pedir desculpa pelo “mal” que membros da Igreja ali causaram.
Entre 1883 e 1997, mais de 150 mil crianças foram colocadas em escolas residenciais para povos nativos, financiadas pelo Governo e geridas pela Igreja Católica, onde foram sujeitas a medidas de aculturação. “Não usei a palavra genocídio porque não me ocorreu, mas descrevi [uma situação de] genocídio”, disse Francisco, a bordo do avião que o levou de volta a Roma.
Um presente dos líderes indígenas da comunidade de Maskwacis, no estado canadiano de AlbertaCole Burston / Getty Images
As pesadas heranças da história acompanharam-no também na BOLÍVIA (2015), numa das suas primeiras viagens. Em Santa Cruz, no âmbito do Encontro Mundial de Movimentos Populares, o Papa lamentou a cumplicidade da Igreja Católica com o colonialismo espanhol na América Latina. Fez a ponte para os tempos modernos e criticou um “novo colonialismo” global, enraizado no materialismo, na “exclusão e desigualdade” e na mentalidade do “lucro a qualquer preço”.
Em paralelo, Francisco teve gestos públicos que caíram bem junto de quem o acolhia. Sabendo que a folha de coca, por ser a matéria-prima da cocaína, era substância declarada ilegal pelas Nações Unidas em 1961 (e apenas descriminalizada em 2013 por forte pressão precisamente da Bolívia), o Papa mostrou-se em El Alto com a tradicional chuspas ao pescoço.
Este pequeno saco de lã de uso quotidiano é usado para guardar folha de coca, que qualquer boliviano masca como estimulante, para iludir a fome, o cansaço ou os efeitos da altura. Mais de 3600 metros acima do nível do mar, La Paz, a capital boliviana, é a mais alta do mundo. Além dos fins terapêuticos, a folha de coca tem caráter sagrado na região dos Andes, onde é consumida e utilizada em rituais há milhares de anos.
Com a ‘chuspas’ ao pescoço, como um normal boliviano, em El Paso, a 4000 metros de altitudeVINCENZO PINTO / AFP / GETTY IMAGES
Outra visita aproveitada por Francisco para homenagear a identidade indígena foi ao MÉXICO (2016). Ao quarto dia de programa, visitou a campa de Samuel Ruiz, conhecido como “o bispo dos pobres”, na catedral de San Cristóbal de las Casas, em Chiapas. Pioneiro da Teologia da Libertação, com obra missionária desenvolvida junto dos índios daquele que é o estado mais pobre do México, Ruiz fez jus ao lema de Francisco de “uma Igreja pobre para os pobres”.
Persona non grata junto das autoridades mexicanas e, a espaços, do próprio Vaticano, Ruiz defendeu os direitos dos índios, adotou costumes pré-hispânicos maias nas liturgias e ordenou diáconos casados para celebrar junto dos índios, que tinham mais estima por leigos casados do que pelos padres celibatários. O Vaticano chegou a proibir as ordenações, mas em 2014 Francisco reverteu a decisão.
Dialogar com outros cristãos
Francisco aproveitou pretextos oferecidos pelo calendário para estender o ramo de oliveira a igrejas cristãs que, venerando o mesmo profeta, seguiram por outros caminhos teológicos. Por ocasião do 500.º aniversário da Reforma Protestante, iniciada por Martinho Lutero em 1517, com a publicação de 95 teses com que este professor alemão de Teologia queria debater o valor das indulgências, Francisco deslocou-se à SUÉCIA (2016), onde a maioria da população se identifica com o luteranismo.
À luz da Igreja, Lutero nasceu católico e morreu herege, mas Francisco levou a terras suecas uma mensagem de agradecimento. “Com gratidão, reconhecemos que a Reforma ajudou a dar maior centralidade à sagrada escritura na vida da Igreja”, disse, durante uma oração ecuménica em Lund, onde foi fundada a Federação Luterana Mundial.
Num encontro com comunidades indígenas da bacia do Amazonas, na cidade peruana de Puerto MaldonadoVINCENZO PINTO / AFP / GETTY IMAGES
Indiferente ao incómodo que as suas iniciativas ecuménicas possam gerar nos católicos mais conservadores, o Papa tem sido um entusiasta da aproximação às Igrejas cristãs orientais. A 12 de fevereiro de 2016, a caminho do México, fez escala na ilha de Cuba, para um encontro inédito e, por isso, histórico. No aeroporto José Martí, em Havana, reuniu-se com Cirilo I, líder do Patriarcado de Moscovo, a mais influente das igrejas ortodoxas cristãs, que estava de visita a Cuba.
Conversaram durante duas horas e assinaram uma declaração de 30 pontos. Num deles, apelaram ao fim da perseguição às minorias cristãs do Médio Oriente, ameaçadas pelos terroristas do “Estado Islâmico”, sobretudo na Síria e no Iraque. Noutro, exaltaram o restabelecimento da unidade cristã. Com este encontro, Francisco e Cirilo começaram a sarar uma ferida aberta há quase 1000 anos.
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Neste ano, Leão IX (Papa de Roma) e Miguel I (Patriarca de Constantinopla) excomungaram-se mutuamente e protagonizaram o Grande Cisma, com base em diferenças de ordem teológica e ao nível da autoridade papal. A cristandade dividiu-se entre a Igreja Católica Romana e a Ortodoxia Oriental.
Recentemente, o Papa propôs a repetição da fórmula para desbravar o caminho da paz na Ucrânia. Pensando na viagem que fará a 31 de agosto próximo até à Mongólia, desafiou Cirilo I para um encontro a dois no aeroporto da capital russa. O patriarca de Moscovo mantém relação próxima com Vladimir Putin e, em sermões, tem exortado os russos a voluntariarem-se para combater.
Encontro ecuménico entre o Papa Francisco e Cirilo I, Patriarca de Moscovo, em HavanaGREGORIO BORGIA / AFP / Getty Images
Abraçar irmãos de outros credos
O compromisso de Francisco com o diálogo inter-religioso bafejou também o Islão, a religião que mais cresce em todo o mundo. Em 2017, aterrou no EGITO em contexto de estado de emergência no país e segurança reforçada nas igrejas cristãs, depois de dois ataques à bomba terem visado templos coptas (cristãos), matando 45 pessoas.
No Cairo, Francisco reuniu-se com Teodoro II, Papa da Igreja Ortodoxa Copta de Alexandria e líder de uma minoria religiosa de 10 milhões de pessoas, e discursou na Universidade de Al-Azhar, uma das instituições mais prestigiadas no mundo islâmico e um dos grandes centros do pensamento sunita.
“Somente a paz […] é sagrada e nenhum ato de violência pode ser cometido em nome de Deus, pois isso profanaria o seu nome”, disse o Papa, numa conferência que iniciou com a tradicional saudação usada pelos muçulmanos As-salamu alaykum (A paz convosco, em árabe).
Herança de Bento XVI
A relação entre o Vaticano e o mundo muçulmano sofrera um abalo em 2006 quando o Bento XVI, num discurso na Universidade de Ratisbona, na Alemanha, citou um diálogo do século XIV entre o imperador bizantino Manuel II Paleólogo e um interlocutor muçulmano: “Mostra-me também o que trouxe de novo Maomé, e encontrarás apenas coisas más e desumanas, tais como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava”.
A visita de Francisco à TURQUIA (2014), gigante sunita onde os cristãos não chegam a 1% da população de 75 milhões, teve também a intenção de reaproximação entre as suas religiões, naquele país que faz a ponte entre ocidente e oriente.
Visita à Mesquita Azul, em Istambul, ao som de versículos do AlcorãoMetin Pala / Anadolu Agency / Getty Images
Os esforços ecuménicos de Francisco foram centrais na sua viagem à TERRA SANTA, na agitada região do Médio Oriente, berço das três religiões monoteístas e hoje fértil em divisões políticas e confessionais. Na comitiva, o Papa levou consigo o imã Omar Abboud e o rabino Abraham Skorka, seus amigos de longa data na Argentina.
Entre visitas a locais emblemáticos da vida de Jesus Cristo, ao Muro das Lamentações (sagrado para os judeus) e ao Muro da Palestina (na zona de Belém), até encontros com políticos israelitas e palestinianos, Francisco deu provas de tolerância e visitou o Grande Mufti de Jerusalém, os dois Grão-Rabinos de Israel e rezou com o patriarca Bartolomeu I de Constantinopla, na Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, para assinalar o 50.º aniversário do encontro entre Paulo VI e Atenágoras de Constantinopla, em que levantaram as excomunhões mútuas.
Em 2019, na TAILÂNDIA, na presença do Supremo Patriarca budista, Ariyavongsagatanana IX, num tempo de Banguecoque, Francisco confirmou o vínculo da sua igreja com o diálogo inter-religioso, realçando que esses encontros são “pequenos passos que ajudam a testemunhar que a cultura do encontro é possível, não só dentro das nossas comunidades, mas também no nosso mundo, tão propenso a criar e a difundir conflitos e exclusões”.
Acarinhar as minorias católicas
No universo de cerca de 2600 milhões de cristãos em todo o mundo, mais de 1350 milhões professam o catolicismo, maioritariamente concentrados na Europa e na América. Mesmo no menos católico dos continentes, a Ásia, há minorias que Francisco quis visitar.
A sua viagem mais determinada, neste capítulo, talvez tenha sido ao IRAQUE (2021). O mundo ainda vivia em pandemia, mas nem a insegurança sanitária nem as ameaças armadas decorrentes de anos de guerra no país, que levaram muitos cristãos ao êxodo, travaram o Papa na vontade de visitar algumas das comunidades cristãs mais antigas do mundo. As que sobreviveram recuperavam da barbárie às mãos do autodenominado “Estado Islâmico”.
Um momento alto da visita aconteceu na cidade santa de Najaf, onde Francisco fez uma visita de cortesia ao Grande Ayatollah Ali al-Sistani, de 90 anos, líder espiritual da maioria muçulmana xiita do Iraque e que muito raramente acede a audiências. De máscara no rosto, conversaram durante 50 minutos e colocaram mais um marco no diálogo inter-religioso mundial.
Em contraponto ao Iraque, na COREIA DO SUL, o número de católicos está em crescendo, ultrapassando já a fasquia dos 10% da população. Em 2014, na sua terceira viagem apostólica, o Papa entendeu corresponder à adesão dos sul-coreanos à fé cristã e deslocou-se àquele país, onde a maioria da população não professa qualquer religião e, entre os crentes, o protestantismo e o budismo são maioritários.
Euforia, à passagem do papamóvel pelas ruas de Seul, a capital da Coreia do SulGetty Images
Numa das suas primeiras viagens, o Papa rumou à ALBÂNIA (2014), maioritariamente muçulmana, onde os católicos eram 15%. Levou mensagens de coexistência a um Estado que viveu grande parte do século XX sob uma ditadura comunista que torturou e executou padres e crentes e arrasou centenas de igrejas.
Falar de paz onde alastra a guerra
À chegada ao QUÉNIA (2015), a etapa inicial do seu primeiro périplo por África que o levou ao Uganda e à República Centro-Africana, Francisco foi questionado se não estava preocupado com a segurança daquela deslocação. “Para lhe dizer a verdade, a única coisa que me preocupa são os mosquitos. Trouxe o seu repelente?”, respondeu.
Este périplo africano levou, pela primeira vez, um Papa a uma zona de guerra ativa, a REPÚBLICA CENTRO-AFRICANA, país de maioria cristã (protestante) tomado por violência entre grupos armados cristãos e muçulmanos. Francisco visitou a mesquita central de Bangui e apelou à reconciliação.
“Cristãos e muçulmanos são irmãos e irmãs. (...) Juntos, temos de dizer não ao ódio, à vingança e à violência, particularmente aquela perpetrada em nome de uma religião ou do próprio Deus.”
Encontro com jovens congoleses, no Estádio dos Mártires, em KinshasaGetty Images
Em 2019, em MOÇAMBIQUE, num estádio de Maputo a rebentar pelas costuras, com 60 mil pessoas, o Papa repetiu o repúdio pelos impulsos de “vingança”, num país com memórias de guerra civil frescas e ataques jiadistas no norte. “Nenhuma família, nenhum grupo de vizinhos, nenhuma etnia, muito menos uma nação, tem futuro se a força que os une e resolve as suas diferenças for a vingança e o ódio.”
Na católica COLÔMBIA, já não se ouviam as rajadas das armas quando Francisco a visitou, em 2017. Um acordo de paz pusera fim a 52 anos de guerra civil, mas fora rejeitado, em referendo, pela maioria da população. Muitos colombianos não aceitavam que a sorte dos guerrilheiros fosse sair da selva, entregar as armas e iniciar vida civil em total impunidade.
“Jesus convida-nos a fazer-nos ao largo, encoraja-nos a correr riscos partilhados, a não temer arriscarmos juntos, a deixar para trás o nosso egoísmo e a segui-lo; renunciar aos nossos medos que não vêm de Deus, que nos paralisam e impedem-nos de nos tornarmos artífices da paz, promotores da vida”, disse na homilia da missa realizada no Parque Simón Bolívar, em Bogotá.
Sarajevo, a Jerusalém do Ocidente
Entre as deslocações a países martirizados por conflitos armados, a passagem por Sarajevo, que o Papa designou de “Jerusalém do Ocidente”, foi especial. Na BÓSNIA-HERZEGOVINA (2015), assinalavam-se 20 anos do fim de uma guerra civil sangrenta (1992-95), alimentada por diferentes sensibilidades étnicas e religiosas, durante a qual a cidade se manteve cercada.
No avião a caminho de Sarajevo, disse: “É uma cidade com culturas religiosas e étnicas muito diferentes. É também uma cidade que sofreu muito ao longo da história. Está agora a fazer um caminho de paz e é para falar disso que eu estou a fazer esta viagem, como sinal de paz e como oração pela paz”.
Momento de oração junto à fronteira entre os EUA e o México, pontuada por cruzes em memória de quem não a conseguiu atravessarGABRIEL BOUYS / AFP / GETTY IMAGES
No MÉXICO (2016), Francisco abordou outro tipo de guerra — o crime organizado com origem no narcotráfico e a violência extrema sobre populações. A viagem levou-o a alguns dos lugares mais miseráveis e violentos das Américas. A missa final foi celebrada num estádio de El Paso, na região de Ciudad Juarez, que já chegou a ser rotulada de capital mundial dos assassínios.
Fazer política, de forma mais ou menos explícita
Enquanto chefe de Estado da Santa Sé — que tem o estatuto de observador permanente das Nações Unidas —, o Papa é, por natureza, um líder político. Em 2015, agendou na mesma viagem apostólica visitas a CUBA e aos Estados Unidos. Sabe-se hoje que mediou negociações secretas entre Havana e Washington que haveriam de conduzir ao reestabelecimento da relação diplomática, a 20 de julho de 2015 (após 54 anos de costas voltadas), e à histórica visita de Barack Obama à ilha, no ano seguinte.
Cuba é um interesse antigo de Francisco. Quando era arcebispo de Buenos Aires, escreveu o livro “Diálogos entre João Paulo II e Fidel Castro”, onde defendeu a necessidade de se dialogar com o regime cubano para acabar com o isolamento da ilha.
Talvez a deslocação politicamente mais intencional tenha sido a que levou Francisco, em 2017, a MYANMAR e ao BANGLADESH, países de maioria budista e muçulmana, respetivamente. Os dois partilham fronteira, têm comunidades católicas residuais e são os dois lados de um grande problema político, social e humanitário chamado rohingya, a minoria muçulmana de Myanmar.
Perseguidos pelas autoridades de Myanmar, onde não são reconhecidos como grupo étnico nem têm direito à cidadania, os rohingya foram alvo de uma campanha de assassínio, violações e casas queimadas, levada a cabo pelo exército birmanês, que os obrigou a fugir para o vizinho Bangladesh, onde mais de um milhão vivem em campos de refugiados. Ao visitar os dois países de uma assentada, Francisco teria de abordar o assunto.
“O futuro de Myanmar tem de ser a paz, uma paz baseada no respeito pela dignidade e direitos de cada membro da sociedade, respeito por cada grupo étnico e pela sua identidade”, disse o Papa, que tinha ao lado a Nobel da Paz birmanesa Aung San Suu Kyi, que, fora de portas, viu a sua reputação ir do céu ao inferno por reagir à perseguição aos rohingya com… silêncio.
Quando o Papa Francisco visitou Myanmar, a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi era a líder do paísVINCENZO PINTO / AFP / Getty Images
Mas também o Papa, ao não proferir a palavra “rohingya”, foi duramente criticado. “Não mencionou os rohingya ‘em público’ enquanto estava em Myanmar, porque procurava um relacionamento com o Presidente e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, pessoas que tinham o destino dos rohingyas nas mãos. Aliás, falou muito pouco em público nessa viagem, porque não queria fechar portas”, explica Austen Ivereigh.
“As críticas que as ONG lhe fizeram foram injustas. A Igreja não é uma ONG e o Papa não é um político. Frequentemente, é criticado por não dizer o que as pessoas acham que deveria dizer, mas essas pessoas geralmente têm uma agenda que não é a dele. Por exemplo, foi criticado por não aderir à retórica ocidental anti-Putin na sua resposta à invasão da Ucrânia, porque isso não ajudará o povo ucraniano a garantir o seu futuro, que é sua prioridade.”
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países foram pela primeira vez visitados por um Papa: Myanmar, Macedónia do Norte, Iraque, Sudão do Sul, Bahrain e Emirados Árabes Unidos.
Se em Myanmar o Papa foi omisso, no Bangladesh correspondeu às expectativas. Em Daca, no jardim da residência do arcebispo, encontrou-se com 16 sobreviventes da perseguição birmanesa, ouviu as suas histórias, segurou-lhes as mãos e proferiu uma frase que correu mundo: “Não vamos fechar os nossos corações ou desviar o olhar. A presença de Deus hoje também se chama rohingya”, disse. “Tanto no silêncio como no que expressou, tinha a mesma prioridade: ajudar os rohingyas”, conclui Ivereigh.
À boleia de um riquexó, numa rua de Daca, a capital do BangladeshVINCENZO PINTO / AFP / GETTY IMAGES
Outra latitude que mobilizou o Papa foi o Cáucaso. Em 2016, em apenas quatro meses, visitou os três países encravados entre o Mar Negro e o Mar Cáspio: Arménia, Geórgia e Azerbaijão. Nessa região, onde os católicos são em número reduzido — no muçulmano Azerbaijão não chegarão aos 500 —, há situações com potencial explosivo em torno das repúblicas separatistas da Geórgia (Abecásia e Ossétia do Sul) e da disputa entre Arménia e Azerbaijão pelo enclave de Nagorno-Karabakh.
Na ARMÉNIA, o Papa afirmou sem rodeios que azeris e arménios “não fazerem as pazes por causa de um pequeno pedaço de terra — porque é disso que se trata — é algo sombrio”. E arriscou um conflito diplomático com a Turquia.
A primeira de várias catástrofes
No seu discurso no Palácio Presidencial de Yerevan, denunciou que o Metz Yeghérn, ou o “Grande Mal”, como os arménios designam o massacre de mais de um milhão de arménios às mãos dos turcos otomanos, durante a Grande Guerra, foi “genocídio”, “a primeira da deplorável série de catástrofes do século passado, possibilitadas por tortuosos objetivos raciais, ideológicos ou religiosos”.
No ano seguinte, o Papa abordaria outro genocídio, o do Ruanda, em 1994, para fazer um mea culpa pelo papel da Igreja na chacina de 800 mil pessoas em 100 dias. Os “pecados e falhas da Igreja e dos seus membros desfiguraram a face” do catolicismo, defendeu durante uma audiência ao Presidente ruandês, Paul Kagame, no Vaticano, admitindo que alguns padres e freiras “sucumbiram ao ódio e à violência”.
Confortar os “descartáveis”
No centro dos esforços de Francisco em prol da dignidade humana está a atenção dada, em especial, aos migrantes e refugiados. No verão de 2013, ainda antes de realizar a sua primeira viagem ao estrangeiro, deslocou-se à ilha de Lampedusa, o farol de muitos que se lançavam ao mar na Líbia e que depois ficavam condenados a deambular por ali, num processo de desumanização.
“A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: são bonitas, mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença”, disse Francisco na homilia de uma missa pelas vítimas dos naufrágios.
“Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”
Apologista da “cultura do encontro”, o Papa viu-se obrigado a teorizar a “cultura do descarte”, que “impregnou a nossa maneira de nos relacionarmos” e tornou-se o “grande desafio social”.
No campo de Moria, na ilha grega de Lesbos, o Papa confortou migrantes e refugiadosFILIPPO MONTEFORTE / AFP / Getty Images
Um dos episódios que melhor revelaram o inconformismo de Francisco para com a sina dos migrantes aconteceu em 2016. A 18 de março, a União Europeia assinara com a Turquia um acordo de repatriamento de migrantes entrados de forma clandestina no espaço europeu. Para Francisco, que é descendente de imigrantes italianos, a predisposição da Europa para tratar os migrantes como mercadoria, despachando-os de um lado para o outro, contrariava a sua “obrigação moral”.
Num gesto pleno de intenção, no mês seguinte à assinatura desse acordo, deslocou-se à ilha de Lesbos, na GRÉCIA, centro da crise migratória na Europa, e visitou o campo de Moria, onde, após sobreviverem à travessia do Mediterrâneo, milhares de migrantes tentavam resistir a condições de vida desumanas. De regresso a Roma, Francisco levou 12 refugiados muçulmanos da Síria, a bordo do avião papal.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.