Sem Putin nem Xi Jinping, Modi quer afirmar-se como o porta-voz do ‘sul global’

O grupo das 20 maiores economias do mundo reúne-se este fim de semana, na cidade indiana de Nova Deli, com duas ausências de peso: Vladimir Putin e Xi Jinping. Seis perguntas e respostas para perceber o motivo dessas faltas, a importância que esta cimeira tem para a Índia — ou chamar-se-á o país Bharat? — e ainda porque nasceu e qual é o objetivo de um grupo como o G20

A Índia acolhe este fim de semana, pela primeira vez, uma cimeira do poderoso grupo das 20 economias mais desenvolvidas do mundo (G20). Nas ruas de Nova Deli, a cidade anfitriã, há por estes dias segurança acrescida providenciada por 130 mil polícias e agentes paramilitares e também por um sistema antidrones.

Alguns ‘bairros de lata’ desta megacidade com mais de 30 milhões de habitantes foram destruídos, centenas de cães retirados das ruas e recortes em tamanho real de langures — um primata corpulento com cara negra — foram espalhados por várias zonas da capital indiana para afugentar os macacos.

Com os holofotes voltados sobre si, a Índia não quer que nada ofusque esta oportunidade de ouro para afirmar poder, no mesmo ano em que ultrapassou a China e se coroou como a maior potência demográfica do mundo.

Há dúvidas sobre o país que acolhe a cimeira do G20?

Não há qualquer incerteza que o evento decorrerá na Índia, mas há expectativa quanto à designação que o Estado anfitrião irá assumir na documentação oficial. Numa comunicação enviada aos países participantes, o Governo indiano convidou os líderes que estarão em Nova Deli para um jantar com o “Presidente de Bharat”.

A cimeira esclarecerá relativamente à real intenção do executivo liderado por um nacionalista hindu em promover uma mudança de nome do país. Várias explicações têm sido adiantadas para a eventualidade de isso acontecer.

Por um lado, a vontade de Modi e do seu Partido do Povo Indiano (Bharatiya Janata Party, BJP) se livrarem de uma designação imposta pelo colonizador britânico, mais de 75 anos após a independência.

Há, porém, outra razão política de natureza interna. No próximo ano, a Índia realiza eleições gerais e, a 1 de setembro passado, 28 partidos políticos anunciaram que irão a votos coligados, com um objetivo comum: impedir a terceira vitória consecutiva do BJP e da corrente nacionalista hindu.

O novo bloco político de oposição a Modi designa-se INDIA (sigla de Indian National Developmental Inclusive Alliance/Aliança Nacional Indiana para o Desenvolvimento Inclusivo). Afastar a palavra “Índia” dos holofotes poderá ser também uma forma de não dar visibilidade à oposição.

Que importância tem esta cimeira para a Índia?

O encontro acontece num momento delicado das relações internacionais, com a guerra na Ucrânia a dividir ainda mais o mundo. Por toda a cidade de Nova Deli, a Índia procura contrariar esse ceticismo assumindo-se como exemplo a seguir.

Murais, mupis e outro tipo de instalações alusivas à cimeira do G20 procuram associar o evento a símbolos indianos, como o carismático líder anticolonialista Mahatma Gandhi, apologista da resistência não violenta, ou a conquistas históricas, como a recente chegada à Lua.

Esta cimeira — que tem um slogan a três tempos: “Uma Terra. Uma Família. Um Futuro — será uma oportunidade para a Índia subir ao palco do Centro Internacional de Convenções ‘Bharat Mandapam’ e reclamar um estatuto de potência global, na presença dos principais líderes do mundo, ou pelo menos daqueles que marcarem presença.

Vladimir Putin vai estar presente?

A Federação Russa pertence efetivamente ao clube do G20, mas o seu Presidente não estará presente. Vladimir Putin enfrenta um mandado de detenção emitido pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra, relativo à transferência de crianças ucranianas para território russo, e não arrisca pôr o pé fora do seu país.

Acontecerá em Nova Deli o que sucedeu recentemente na cidade sul-africana de Joanesburgo, que acolheu a 15ª cimeira dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), onde Putin também este ausente e a Rússia fez-se representar pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov.

Há mais líderes que não vão à cimeira de Nova Deli?

Há outra ausência de vulto, a de Xi Jinping, Presidente da China, que faltará a uma cimeira do G20 pela primeira vez desde que subiu ao poder, em 2012. A delegação de Pequim será liderada pelo primeiro-ministro Li Qiang.

Uma das explicações possíveis para a ausência de Xi Jinping passa pela intenção de retirar peso político a um fórum multilateral com forte presença ocidental em detrimento de outros onde a China tem um papel mais preponderante, como o grupo dos BRICS.

Este, por exemplo, quer assumir-se como um contrapeso à influência ocidental e a grupos como o G7 e o G20. Nesse sentido, na última cimeira, os cinco BRICS anunciaram a entrada na organização de mais seis países — Argentina, Egito, Etiópia, Irão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos — num esforço de remodelação da ordem internacional.

Outra razão para o “boicote” de Xi poderá decorrer da deterioração da relação com a vizinha Índia, com quem a China tem uma disputa territorial ao longo da fronteira dos Himalaias. Na semana passada, Pequim divulgou um novo mapa que colocava zonas disputadas à cor do território chinês. Nova Deli protestou e a China aconselhou a Índia a “ficar calma”. A confirmar-se este cenário, a falta de Xi seria uma atitude de desprezo.

Em Nova Deli, perde-se assim a oportunidade de um encontro a dois entre Xi Jinping e Joe Biden, como aconteceu na última cimeira do G20, em Bali, e de China e Estados Unidos deitarem água na fervura na tensão multifacetada entre ambos.

Que impacto terão as ausências de Putin e Xi nos trabalhos da cimeira?

Desde logo, estarão em falta os dois líderes do G20 que mais têm dificultado a adoção de uma declaração conjunta sobre a guerra na Ucrânia. Nenhum deles subscreve uma posição condenatória das ações de Moscovo e, em contrapartida, os países ocidentais não abdicam de uma forte condenação da Rússia.

Antes de partir para Nova Deli, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, afirmou-se desapontado pelo facto de o Presidente ucraniano não ter sido convidado para a cimeira. “Falaremos fortemente por si e continuaremos a garantir que o mundo esteja ao lado da Ucrânia”, disse Trudeau a Volodymyr Zelensky, num telefonema recente.

As posições de China e Rússia terão mensageiros em Nova Deli pelo que não é expetável um consenso que abra caminho a uma Declaração de Líderes em conclusão da cimeira, mais ainda numa altura em que a Rússia faz depender o desbloqueio do acordo do Mar Negro relativo aos cereais ucranianos do levantamento de sanções ocidentais.

Esta sexta-feira, já na capital indiana, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, afirmou: “É difícil prever se será possível haver um acordo sobre uma declaração [final]. Ainda estamos a negociar. Não tenciono dizer nada que possa dificultar os esforços” da presidência indiana do G20.

Como nasceu o G20 e com que objetivo?

Este fórum intergovernamental reuniu-se pela primeira vez em Berlim, em 1999, dois anos após a crise financeira na Ásia. Então, juntou à mesa do diálogo 19 ministros das Finanças de outros tantos países e a União Europeia, cientes de que uma qualquer outra crise com aquela dimensão nunca poderia ser resolvida dentro das fronteiras de cada país e que requeria cooperação internacional.

Desde 2008, as cimeiras anuais passaram a ser protagonizadas pelos chefes de Estado ou de Governo. As “Cimeiras de Líderes do G20”, até então fóruns de discussão sobre os problemas da economia global, ganharam um caráter mais geopolítico e mediático.

No total, os países que compõem o G20 correspondem a 80% do Produto Interno Bruto (PIB) global e 75% do comércio internacional.

Em Nova Deli, para além dos 20 membros, estarão também nove países convidados: dois europeus (Espanha e Países Baixos), um da África Subsariana (Nigéria), três países árabes (Egito, Emirados Árabes Unidos e Omã), dois asiáticos (Bangladesh e Singapura) e um insular (Maurícias).

A 1 de dezembro próximo, a Índia passa o testemunho para o Brasil que assegurará a presidência do G20 durante um ano.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de setembro de 2023. Pode ser consultado aqui

Um hospital com visão para reduzir a cegueira na Palestina

Fundação Champalimaud premeia centro oftalmológico mais antigo do Médio Oriente. Mais de metade do orçamento da instituição vem de donativos

Na sempre agitada região do Médio Oriente, o Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém é, há décadas, um exemplo de resiliência. Com mais de 140 anos — vividos entre guerras, sublevações, disputas locais e o domínio de poderes externos —, esta unidade médica de Jerusalém Oriental apenas não funcionou entre 1914 e 1919. A Palestina era então uma região do Império Otomano, o qual, após entrar na Grande Guerra, transformou o hospital num depósito de munições.

A resistência às adversidades e como, em paralelo, se consolidou como um centro de referência ao nível do combate à cegueira numa região marcada pelo conflito valeu ao St. John of Jerusalem Eye Hospital (na designação internacional) a atribuição, esta semana, do Prémio António Champalimaud de Visão, no valor de um milhão de euros.

“Este generoso prémio chega no momento perfeito”, diz ao Expresso o CEO do hospital, Ahmad Ma’ali. “Somos a única instituição de beneficência prestadora de cuidados oftalmológicos a quem vive
na Terra Santa e dependemos de contribuições voluntárias, que re
presentam 55% a 60% do nosso orçamento operacional”, que supera
os 15 milhões de euros. “Dentro de seis a oito meses esperamos ter um hospital a funcionar no Norte da Cisjordânia”, ocupada por Israel.

Casamentos entre primos

Um estudo do St. John apurou que a taxa de cegueira e de deficiência visual entre os palestinianos é 10 vezes superior à verificada no Ocidente. “Há muitas razões. Decorre da falta de acesso a cuidados”, resultante de barreiras físicas e restrições à mobilidade. “Tem a ver também com pobreza e falta de conhecimento”, continua. “Outra causa são os casamentos entre primos em primeiro grau, que ocorrem em 38%-40% da população. Os filhos nascem geralmente com cataratas, glaucoma e outras doenças hereditárias.”

O hospital procurou dar resposta ao problema da consanguinidade e
dotou-se de um “laboratório de genética”, onde, a partir de uma análise ao sangue do paciente, determina a probabilidade de os filhos terem a doença. “Se informarmos as pessoas sobre a probabilidade de os seus filhos terem cegueira ou outras doenças, elas decidem com base na informação.”

Fundado em 1882, o St. John foi o primeiro hospital oftalmológico no Médio Oriente. “Devido à instabilidade política que dura há muitos anos, decidimos que, se as pessoas não conseguem vir até nós, temos de conseguir chegar a elas. Nesse sentido, estabelecemo-nos como um grupo de hospitais”, explica.

Além do hospital-mãe, em Jerusalém, o St. John tem antenas na
Faixa de Gaza (território palestiniano sob bloqueio) e em Hebron
(no Sul da Cisjordânia). Para precaver previsíveis longas esperas dos
pacientes nos postos de controlo (checkpoints), o hospital dispõe de
três unidades móveis que se deslocam para aldeias remotas e áreas
controladas por Israel.

Todos os centros têm desafios específicos. Situado na parte árabe
da cidade (ocupada por Israel em 1967, posteriormente anexada e reivindicada pelos palestinianos para capital do seu Estado), o hospital de Jerusalém está no olho do furacão, integrado no bairro de Sheikh Jarrah, palco com frequência de violência entre árabes e judeus.

Já na Faixa de Gaza, controlada pelo grupo islamita Hamas, o trabalho é mais complexo. Tudo o que entra no território é inspecionado por Israel, por receio de que possa ter dupla utilização e cair em mãos erradas. “Quando ali construímos o hospital, em 2016, tivemos de trabalhar em grande proximidade com as autoridades militares israelitas, porque tudo podia ter duplo uso. O cimento, por exemplo, podia servir para construir túneis”, usados de forma clandestina para infltrar no território produtos que não passariam na fronteira. “As inspeções originam atrasos. Mandar algo para Gaza pode demorar um mês a chegar. Temos muito cuidado em garantir que há stock suficiente em Gaza.”

Entre os cerca de 260 profissionais do St. John, há muçulmanos,
judeus e cristãos. Os pacientes judeus são ínfimos, “uma vez que eles
têm um serviço avançado e gratuito do lado israelita. Mas estamos abertos a toda a gente”. Ma’ali realça a “excelente colaboração com hospitais de Israel”, nomeadamente o prestigiado Hadassah, em Jerusalém Oriental. “Somos um local de formação para ortoptistas judeus enviados pelo Hadassah.”

Quem não paga nada perde

Mandado erguer pela rainha Vitória de Inglaterra, o St. John pertence à Ordem de São João e é “profundamente enraizado nos ensinamentos cristãos”, diz Ma’ali. “A missão é tratar toda a gente, independentemente de raça, religião, classe social ou posses para pagar.”

“Só 40%-45% dos palestinianos têm seguro de saúde. Quando nos são encaminhados, têm cobertura do Ministério da Saúde da AP. Após voltarem a casa, o hospital espera quatro ou cinco anos para ser reem bolsado”, segundo Ma’ali. “Neste momento, a AP deve-nos 3,5 milhões de dólares [3,2 milhões de euros].” Anualmente, a União Europeia desembolsa 13 milhões de euros para abater à dívida da AP aos hospitais de Jerusalém.

No St. John desde 1990, onde entrou como estudante de enfermagem, e CEO desde 2019, Ma’ali diz-se apreensivo com a degradação da segurança na Cisjordânia, onde vive. Para chegar ao trabalho tem
de passar um checkpoint. “Como qualquer CEO, tenho de pensar
de onde virá o próximo dólar, mas a minha grande preocupação é o
acesso de funcionários e doentes ao hospital de Jerusalém.”

DIMENSÃO DO PROBLEMA

10
vezes mais casos de cegueira e deficiência visual são registados
nos territórios palestinianos, por comparação aos países ocidentais

142
mil pessoas foram tratadas no Hospital Oftalmológico São João
de Jerusalém em 2022. Foram também realizadas 6900 cirurgias

80
por cento dos problemas oftalmológicos diagnosticados na
população palestiniana são curáveis, garante o hospital

(FOTO Ahmad Ma’ali, CEO do Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém, fotografado na Fundação Champalimaud NUNO BOTELHO)

RELACIONADO: Prémio Champalimaud recompensa hospital empenhado no “combate à cegueira na Palestina”

Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de setembro de 2023

Prémio Champalimaud recompensa hospital empenhado no “combate à cegueira na Palestina”

Com mais de 140 anos de vida e trabalho de qualidade na área da oftalmologia, o Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém recebe, esta quarta-feira, o prémio anual atribuído pela Fundação Champalimaud. Em entrevista ao Expresso, um responsável do hospital explica por que razão este prémio, no valor de um milhão de euros, chega no momento certo. E também porque nos territórios palestinianos há dez vezes mais casos de cegueira e de deficiência visual do que em qualquer país europeu

O Prémio António Champalimaud de Visão, que anualmente reconhece trabalho desenvolvido na área da prevenção da cegueira, distinguiu, este ano, um projeto de excelência e de grande resiliência atendendo ao nível de conflitualidade na região em que se insere.

O galardoado é o Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém (St. John of Jerusalem Eye Hospital, na designação internacional), localizado no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental. Esta é a parte árabe da cidade histórica anexada por Israel e onde, com frequência, irrompem atos de violência entre árabes e judeus.

A Fundação Champalimaud justificou o reconhecimento — e a atribuição de um prémio no valor de um milhão de euros — “pelo empenho na prestação de cuidados oftalmológicos essenciais numa região marcada pelo conflito”, e em especial “pelo combate à cegueira na Palestina”.

“Este generoso prémio chega num excelente momento. Fortalecerá a nossa determinação em estendermos os nossos braços amigos a mais pessoas marginalizadas que necessitam de cuidados oftalmológicos nesta parte tão problemática do mundo”, reagiu Ahmad Ma’ali, CEO do St. John, em entrevista ao Expresso.

“O nosso hospital é a única instituição de beneficência prestadora de cuidados oftalmológicos para as pessoas que vivem na Terra Santa, e dependemos muito de receitas voluntárias que representam 55% a 60% do nosso orçamento operacional”, que supera os 15 milhões de euros, diz o responsável. E anuncia: “Estamos prestes a lançar outro projeto, na parte norte da Cisjordânia [território palestiniano ocupado por Israel]. Nos próximos seis a oito meses, esperamos ter um hospital em funcionamento nessa região que forneça cuidados oftalmológicos de qualidade a quem aí vive. Por isso, o momento deste prémio é perfeito.”

As causas de um grande problema

Nos territórios palestinianos, os casos de cegueira e deficiência visual são cerca de dez vezes mais do que os registados em qualquer país europeu. “Há muitas razões para isso. Por vezes, decorre da falta de acesso a cuidados, outras têm que ver com pobreza e falta de conhecimento”, explica o responsável palestiniano.

Outras causas possíveis são “consanguinidade ou casamentos entre primos de primeiro grau, que ocorrem em cerca de 38-40% da população. Os filhos nascem geralmente com catarata, glaucoma e outras doenças hereditárias.” Tal decorrerá de questões sociais e culturais, mas também dos enormes desafios à mobilidade que enfrentam quem vive nos dois territórios palestinianos (Cisjordânia e Faixa de Gaza).

Unidades móveis para chegar a quem não se pode deslocar

Além do hospital-mãe em Jerusalém, o St. John tem instalações em Gaza (território sob bloqueio) e Hebron (no sul da Cisjordânia). Numa região onde ir à urgência de um hospital ou a uma normal consulta médica pode implicar longas esperas em postos de controlo, este hospital dispõe de equipas móveis que se deslocam para a área C — zonas da Cisjordânia controladas a 100% por Israel — e para aldeias remotas ou isoladas.

“Temos mais de 140 anos, fomos o primeiro hospital oftalmológico a estabelecer-se em todo o Médio Oriente. Devido à instabilidade, à insegurança política que atravessamos há muitos anos, decidimos que se as pessoas não conseguem chegar até nós, precisamos de chegar às pessoas. E por isso, tornámo-nos um grupo de hospitais. Com esta estratégia, quem precisar de nós poderá alcançar-nos.”

Ahmad Ma’ali
CEO do St. John of Jerusalem Eye Hospital

Em 2022, o St. John tratou quase 143 mil pacientes e realizou cirurgias em mais de 6900. “Fomos credenciados como hospital de qualidade pela Joint Commission International”, um organismo de acreditação de unidades de saúde, com sede nos Estados Unidos.

“Portanto, não se trata apenas da quantidade, mas também da qualidade do atendimento. De muitas formas, o hospital lidera ao nível da formação oftalmológica de médicos e enfermeiros, além de liderar na prestação de cuidados oftalmológicos”, realça Ma’ali.

Excelente colaboração com hospitais de Israel

Entre os cerca de 260 profissionais do hospital, há pessoal de todas as origens sociais e religiosas. A esmagadora maioria dos pacientes é árabe muçulmana, mas as portas estão abertas a cristãos e judeus.

“Temos muito poucos pacientes judeus, uma vez que eles têm um serviço avançado e gratuito do lado israelita. Mas estamos abertos a toda a gente, mesmo colonos e soldados que procurem cuidados médicos à nossa porta”, garante Ahmad Ma’ali, que trabalha no hospital há 30 anos. “Somos também um local de formação para ortoptistas judeus, que nos são enviados pelo Hadassah [hospital universitário israelita de referência, também em Jerusalém Oriental]. Temos uma excelente colaboração com hospitais de Israel.”

Um desejo da rainha Vitória de Inglaterra

Criado em 1882, por determinação da rainha Vitória de Inglaterra, o St. John, que pertence à Ordem de São João, é um hospital “profundamente enraizado nos ensinamentos cristãos. O próprio nome é um indicador disso”, diz o CEO da instituição. “A nossa missão é tratar a todos, independentemente da raça, religião, classe social ou capacidade para pagar” os cuidados médicos ou tratamentos.

“Ficamos felizes em fazer parcerias com quem quer que seja — judeus, muçulmanos, cristãos — que compartilhe o mesmo espírito. Atravessamos fronteiras, deixamos a política para os políticos e concentramo-nos na vertente humanitária do nosso trabalho”, prossegue o CEO do hospital.

O Prémio António Champalimaud de Visão é entregue esta quarta-feira, numa cerimónia realizada na Fundação Champalimaud, com a presença do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Esta ligação disponibiliza a lista de vencedores das edições passadas, bem como a composição do júri.

(FOTO Ahmad Ma’ali, CEO do Hospital Olftalmológico São João de Jerusalém, fotografado na Fundação Champalimaud NUNO BOTELHO)

RELACIONADO: Um hospital com visão para reduzir a cegueira na Palestina

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de setembro de 2023. Pode ser consultado aqui

As dificuldades de Volodymyr Zelensky para alimentar o guião heroico da guerra

Falta de resultados rápidos na contraofensiva fragiliza narrativa “cinematográfica” do Presidente ucraniano

Dezoito meses passados desde o início da invasão russa, a Ucrânia enfrenta um drama particular dentro da tragédia maior que é a guerra. Com o passar do tempo, o cansaço relativamente ao tema tende a acentuar-se e os espaços informativos dedicam-lhe menos atenção. Mas para Kiev manter o assunto relevante é crucial para não ficar só.

O desafio está entregue em especial ao Presidente, um antigo comediante que com­preendeu, aos primeiros disparos russos, que a importância da comunicação estava ao nível das movimentações militares. “Volodymyr Zelensky percebeu que a Ucrânia só podia ter um combate minimamente equilibrado com a Rússia se conseguisse manter o conflito no topo da agenda político-mediática”, comenta ao Expresso Alexandre Guerra, profissional na área da comunicação e especialista em assuntos internacionais. “Ele sabia que a realidade da guerra, por si só, não chegava para mobilizar a opinião pública interna e a comunidade internacional.”

No espaço da antiga União Soviética duas contendas serviam de aviso a Zelensky. Primeiro, a guerra entre Rússia e Geórgia, em 2008, que culminou com o reconhecimento por parte de Moscovo da independência das repúblicas separatistas georgianas de Ossétia do Sul e Abecásia. E depois, em 2014, a invasão e anexação da península ucraniana da Crimeia, no que é considerado um preâmbulo da guerra atual.

Nos dois casos a agressão russa não suscitou reações práticas. “A realidade não foi sufi­ciente para os aliados europeus e americano se mobilizarem numa resposta perentória à Rússia”, diz o autor do livro “A Política e o Homem Pós-Humano”. “Zelensky tinha essa lição bem estudada. E, estando habituado a amplificar a realidade e até a recriá-la, sabia que teria de criar uma espécie de realidade aumentada da guerra.”

Série com três temporadas

“Por necessidade, e não por capricho”, Zelensky tornou-se realizador e a sua equipa de comunicação argumentista de um ‘guião cinematográfico’, criando heróis e exacerbando conquistas, tudo para tocar as pessoas. O que acontecia no terreno, e que Zelensky comentava em intervenções diárias, “ajudou a enaltecer os feitos como se fossem temporadas de uma série”, ilustra Guerra.

A frase “preciso de munições, não de uma boleia”, atribuída a Zelensky dois dias após a invasão, contribuiu para criar a lenda, sem que haja certeza de que ele a tenha efetivamente dito quando confrontado por uma oferta dos norte-americanos para o resgatar de Kiev. Seguiu-se “a resistência heroica de Kiev, um momento de uma enorme espetacularidade, em que ele não se poupou a puxar pelos feitos dos seus soldados”.

Ao estilo de uma segunda temporada, a reconquista de Kharkiv motivou o Presidente a fazer uma promessa épica: “A bandeira ucraniana retornará a todas as partes do nosso país. Como na região de Kharkiv [Nordeste], os guerreiros ucranianos encontrar-se-ão no Donbas [Leste], no Sul e na Crimeia. Vai acontecer”, disse após visitar a zona de Kharkiv.

“Zelensky sabia que as opiniões públicas internacionais gostam de uma boa história. A dada altura, o próprio começou a alimentar a expectativa de uma grande contraofensiva em múltiplas frentes” — uma terceira temporada da guerra —, “à imagem da II Guerra Mundial. Zelensky nunca escondeu ser muito inspirado por Churchill”.

Contraofensiva silenciosa

A ideia de uma reviravolta na guerra, a expensas da derrocada da Rússia, encaixava nas expectativas dos ucranianos e comprometia o Ocidente com Kiev. Entrou no argumentário de análise ao conflito, mas os resultados tardaram. No terreno, os militares ucranianos, cientes de que as conquistas não surgem por artes mágicas, começaram a fazer-se ouvir. A 30 de junho, ao jornal “The Washington Post”, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da Ucrânia, Valery Zaluzhny, realçava a capacidade militar da Rússia. “Não sentimos que a defesa deles tenha ficado mais fraca”, disse quando questionado sobre o possível impacto do motim do Grupo Wagner no esforço inimigo.

“A contraofensiva era um processo militar que estava em curso de forma lenta e gradual. O problema é que a história que Zelensky quis dar ao mundo era mais espetacular. E a dada altura a sua retórica hollywoodesca ficou muito desfasada da realidade no terreno”, diz Alexandre Guerra. “Os resultados militares não eram compatíveis com aquilo que Zelensky anunciava. E quando se começou a exigir ganhos rápidos, as chefias militares sentiram frustração.” (Ver texto ao lado.)

Este mês, Zelensky despediu os responsáveis de todos os centros de recrutamento militar do país, fragilizados por casos de suborno por parte de ucranianos que não queriam ir combater. Meses antes já tinha demitido de forma abrupta o chefe do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) e a procuradora-geral do Estado, alegando haver funcionários nesses órgãos a colaborar com a Rússia.

“A realidade que Zelensky criou, também a nível interno, passava pela ideia de cidadãos super-heróis, todos eles dispostos a ir para a linha da frente”, conclui Guerra. “Ora, a realidade nunca foi bem assim.”

Sem ser um líder consen­sual, o Presidente tem provado estar à altura do desafio. Deu ímpeto à resistência e injetou esperança no povo. Há dois meses disse à BBC: “Algumas pessoas acham que isto é um filme de Holly­wood e esperam resultados imediatos. Não é. O que está em jogo é a vida das pessoas.” Por breves momentos, Zelensky jogou à defesa.

SEIS MARCOS DA ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO DO PRESIDENTE DA UCRÂNIA

25/2/2022
No dia seguinte à invasão, num vídeo filmado numa rua de Kiev, era já noite, Zelensky mostra-se na companhia de responsáveis políticos. “Boa-noite a todos. O líder do partido está aqui, o chefe de gabinete do Presidente está aqui, o primeiro-ministro [Denys] Shmyhal está aqui, o [principal conselheiro da presidência, Mikhail] Podoliak está aqui, o Presidente está aqui. Estamos todos aqui.” O comandante assegurava que não abandonaria o barco.

1/3/2022
Zelensky intervém, de forma virtual, no Parlamento Europeu. Seria o primeiro de 42 discursos em Parlamentos estrangeiros: 35 por videoconferência (incluindo na Assembleia da República) e sete presencialmente.

3/4/2022
Numa mensagem gravada e transmitida durante a gala dos Prémios Grammy, Zelensky apela ao coração: “Os nossos músicos usam armaduras em vez de smokings.”

21/12/2022
Vai aos Estados Unidos, a primeira deslocação ao estrangeiro. No total, visitou 21 países desde o início da guerra. Foi três vezes à Polónia.

26/12/2022
É Pessoa do Ano da “Time”.

10/1/2023
Fala, por vídeo, nos Globos de Ouro. Em março, Hollywood rejeita ouvi-lo nos Óscares.

QUATRO ‘RALHETES’ AO PRESIDENTE

Contra ofensiva lenta
“Isto não é um show”
Com a contraofensiva nas notícias, a 30 de junho “The Washington Post” entrevista o chefe do Estado-Maior da Ucrânia, que admite que a operação segue ao ritmo possível, atendendo à forte defesa da Rússia. “Isto não é um show a que o mundo inteiro assiste e faz apostas”, disse Valery Zaluzhny. “Cada metro é conseguido com sangue.” O general mostra-se “irritado” com quem se diz frustrado com a falta de resultados. Nove dias antes, à BBC, Zelensky disse que os progressos eram “mais lentos do que o desejado”.

Adesão à NATO
“Não somos a Amazon”
Paralelamente aos pedidos de armas, Zelensky pugnou por adesões rápidas à União Europeia e à NATO. Mas na cimeira da Aliança Atlântica em Vílnius, a 11 e 12 de julho, ele surgiu como um homem só, após ‘levantar a voz’ no Twitter: “É inédito e absurdo que não seja definido um prazo nem para o convite nem para a adesão da Ucrânia.” O post não caiu bem junto dos aliados. O ministro britânico da Defesa verbalizou o que muitos mais terão pensado. “Já lhes tinha dito, no ano passado, quando viajei 11 horas [até Kiev] para receber uma lista [de armamento]… não somos a Amazon”, disse Ben Wallace. “As pessoas querem ver um pouco de gratidão.”

Defesa russa
“Queríamos resultados muito rápidos, mas…”
A 18 de julho, numa entrevista à BBC, Oleksandr Syrskyi, o comandante das forças armadas terrestres ucranianas que liderou a defesa de Kiev e foi o cérebro do contra-ataque em Kharkiv, disse: “Gostávamos de obter resultados muito rápidos, mas é praticamente impossível.” O general explicou que o Leste e o Sul do país estavam saturados com campos minados e barreiras defensivas colocadas pelos russos. São exemplos valas para tanques e fortificações “dentes de dragão”, que desaceleram o avanço dos blindados.

Solução política
“Outra saída é negociar”
Há uma semana, Mark Milley, líder do Estado-Maior conjunto dos EUA, juntou-se ao coro de altas patentes que alertam para uma contraofensiva “longa, lenta e muito sangrenta”. À televisão jordana Al-Mamlaka, o general realçou o complexo sistema defensivo russo e apontou outro caminho: “Derrotar militarmente 200 ou 300 mil soldados russos é muito difícil e desafiador. Outra saída para esta situação é através de negociações.”

(FOTO Volodymyr Zelensky, Presidente da Ucrânia PRESIDÊNCIA DA UCRÂNIA)

Artigo publicado no “Expresso”, a 1 de setembro de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui