Pressão total sobre Israel e o Hamas: o que se sabe sobre a mais recente proposta de cessar-fogo em Gaza?

Este fim de semana, algures na Europa, os chefes dos serviços secretos dos Estados Unidos, de Israel e do Egito irão reunir-se com o ministro dos Negócios Estrangeiros do Catar para tentar desbloquear uma pausa nos combates na Faixa de Gaza que permita uma troca de prisioneiros. Quase quatro meses após o início da guerra, ainda há 136 israelitas nas mãos do Hamas. A ofensiva de Israel já provocou mais de 26 mil mortos no território palestiniano

Palestinianos manifestam-se entre os destroços de Gaza, a 17 de outubro de 2023 SALEH NAJM E ANAS SHARIF / WIKIMEDIA COMMONS

Vai haver uma trégua em Gaza?

É esse, pelo menos, o objetivo de conversações que estão previstas, este fim de semana, algures “na Europa”, noticiou o jornal digital “The Times of Israel”.

Por determinação do Presidente Joe Biden, o enviado dos Estados Unidos será o diretor da CIA, William J. Burns, com a missão expressa de “ajudar a mediar um acordo ambicioso entre o Hamas e Israel”, escreve “The Washington Post”.

Do lado israelita, irá igualmente o chefe dos serviços secretos, David Barnea, que lidera a Mossad.

Quem são os mediadores?

Há dois países empenhados na aproximação entre Israel e o Hamas. Um deles é o Egito, que foi o primeiro país árabe a celebrar um tratado de paz com Israel, em 1979, e que será representado por Abbas Kamel, chefe dos serviços de informação do país.

O outro é o Catar, um dos financiadores do Hamas, e que desde o início da guerra tem assumido o papel principal nos esforços de mediação. Nestas conversações, o pequeno reino do Golfo será representado pelo primeiro-ministro e simultaneamente ministro dos Negócios Estrangeiros Sheikh Mohammed bin Abdulrahman Al-Thani.

Al Thani deverá seguir depois para os Estados Unidos já que, na segunda-feira, tem prevista a participação num evento organizado pelo think tank Atlantic Council, em Washington D.C., onde, entre outros tópicos, vai falar sobre como inverter a escalada do conflito no Médio Oriente.

As partes aceitam os mediadores?

Nos últimos dias, a relação entre Israel e o Catar sofreu um abalo, após terem sido divulgadas palavras do primeiro-ministro de Israel, proferidas num encontro com familiares de reféns. “Vocês não me ouvem agradecer ao Catar. Essencialmente, o Catar não é diferente da ONU ou da Cruz Vermelha e, em certo sentido, é ainda mais problemático. Não tenho ilusões sobre eles”, afirmou Benjamin Netanyahu.

A divulgação da gravação destas declarações junto dos órgãos de informação israelitas foi autorizada pelo gabinete do próprio Netanyahu, o que revela uma intenção de que fossem tornadas públicas.

Em reação, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Catar considerou as palavras de Netanyahu “irresponsáveis” e “destrutivas”. Na rede social X, Majed Al Ansari escreveu que Netanyahu está “a obstruir e a minar o processo de mediação, por razões que parecem servir a sua carreira política, em vez de dar prioridade ao salvamento de vidas inocentes, incluindo reféns israelitas”.

O que poderá ganhar Israel com um acordo?

A principal reivindicação do Governo de Telavive é a libertação da totalidade dos 132 reféns levados pelo Hamas no dia do ataque e que Israel estima que estejam ainda em cativeiro.

Segundo a agência Reuters, em cima da mesa estará a possibilidade de todos serem libertados, por fases e por categorias — começando pelos civis e concluindo com os militares —, ao longo de uma pausa de um mês nos combates.

Para Israel, uma trégua significa também uma pausa naquela que já é a guerra mais duradoura em quase 76 anos de história do país.

E o Hamas, o que tem a ganhar?

O grupo islamita, que controla a Faixa de Gaza, garantiria, para além da trégua, a libertação de milhares de palestinianos detidos nas prisões israelitas.

Para a população de Gaza, uma pausa na guerra seria também sinónimo de um grande alívio, com a entrada no território de ajuda humanitária. Esta sexta-feira, as Nações Unidas alertaram para a explosão de casos de hepatite A nos acampamentos de deslocados.

Há alguém contrário a um acordo?

Desde logo, o primeiro-ministro de Israel que, não só se tem mostrado defensor da guerra em Gaza como opositor a um Estado palestiniano.

No domingo, na sequência de uma conversa telefónica com Joe Biden, Benjamin Netanyahu declarou ter dito ao Presidente norte-americano que rejeitava as exigências do Hamas considerando que um acordo significaria que outro ataque do género do de 7 de outubro “seria apenas uma questão de tempo”.

Por seu lado, o Hamas tem reiterado a rejeição a qualquer acordo que não conduza ao fim da guerra.

Esta trégua pode prenunciar um cessar-fogo definitivo?

Longe disso. Netanyahu não está sozinho na oposição ao fim da guerra. De forma consistente, governantes israelitas têm-se mostrado contrários a um cessar-fogo permanente sem que a capacidade militar do Hamas seja totalmente destruída.

Esta sexta-feira, o assunto foi objeto de comentário por parte de um antigo secretário-geral da NATO, em termos muito negativos e comprometedores para com o primeiro-ministro de Israel. Em entrevista ao diário espanhol “El País”. Javier Solana considerou que o fim da guerra é improvável “com este Netanyahu”.

“Quando [Josep] Borrell [o chefe da diplomacia da União Europeia] diz que o Hamas foi financiado por Israel, não está a mentir. Disse-o de uma forma muito crua. É verdade que tudo o que Netanyahu podia fazer para dividir os palestinianos, fê-lo.”

Uma trégua seria inédita nesta guerra?

Não. Em novembro, as partes respeitaram uma pausa nos combates que durou sete dias, que permitiu a entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza e a concretização de uma troca de prisioneiros: o Hamas libertou 105 reféns israelitas e Israel abriu as portas das suas cadeias a 240 mulheres e menores palestinianos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Estados Unidos-Israel, uma aliança à prova de bala

Os dois países têm uma relação baseada em valores, interesses e na culpa pelo Holocausto

Quando o dia 29 de novembro de 1947 amanheceu e começou a contagem decrescente para a votação, na Assembleia-Geral das Nações Unidas, do plano de partilha da Palestina num Estado judeu e noutro árabe, os judeus não tinham a certeza de que o escrutínio estivesse ganho. Para que o sonho se tornasse realidade, dois terços dos 57 membros da organização — dez deles países muçulmanos — teriam de dizer “sim”.

Nos dias prévios à votação, parte da estratégia da Agência Judaica — uma espécie de Governo oficioso dos judeus da Palestina — passou por identificar países indecisos ou contrários à sua pretensão e exercer a pressão possível, de forma direta ou via terceiros. Um dos alvos foi a Libéria, dos poucos Estados africanos independentes, que era hostil à divisão da Palestina.

A Libéria era quase propriedade da Firestone, a fabricante de pneus criada em 1900, em Nashville, Tennessee, que ali possuía 400 mil hectares de plantações de árvores de borracha. Pressionado pela Casa Branca, o diretor Harvey Firestone fez saber ao Presidente da Libéria, William Tubman, que um voto contra o Estado judeu faria perigar futuros investimentos. A Libéria trocou o voto e contribuiu para a maioria de 33 países que viabilizou o nascimento de Israel.

Compensar sobreviventes

O Presidente dos Estados Unidos era Harry Truman, um dos líderes aliados que participaram na Conferência de Potsdam (Alemanha) sobre o pós-guerra, dois anos antes. “Vi alguns lugares onde os judeus foram massacrados pelos nazis. Seis milhões de judeus foram mortos: homens, mulheres e crianças. É minha esperança que tenham uma casa onde possam viver”, afirmou.

Truman era a voz do sentimento de culpa partilhado por muitos americanos relativamente ao Holocausto e à inação internacional que permitiu todo aquele horror. Uma forma de compensar os sobreviventes era dar-lhes um Estado na terra com que sonhavam. Quando, a 14 de maio de 1948, os judeus declararam a independência do Estado de Israel, os Estados Unidos reconheceram-na no próprio dia.

Passados mais de 75 anos, a solidez da relação entre Israel e os Estados Unidos ficou provada na visita-relâmpago que Joe Biden realizou a Israel, a 18 de outubro, 11 dias após o bárbaro ataque do Hamas. Biden e o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, estão longe de se admirarem. Quando foi eleito, o americano demorou a telefonar ao israelita, no que foi entendido como uma manifestação de distanciamento. Mas em contexto de crise — como o 7 de outubro —, é indiferente quem está no poder em Washington ou Telavive para a aliança se impor.

“O apoio, em 1947, ao estabelecimento de Israel, pelos Estados Unidos e também pela União Soviética e pela maioria dos membros da ONU, teve que ver com o Holocausto, embora essa não tenha sido a única razão”, diz ao Expresso Natan Sachs, diretor do Centro para Política do Médio Oriente do Brookings Institution. “Esta é uma relação de longa data, que tem que ver com um sentimento de valores partilhados em torno da democracia e de ameaças do terrorismo, sobretudo depois do 11 de Setembro. Há também uma afinidade generalizada com a ideia de Israel como país de refugiados que ali constroem uma vida nova. A narrativa em si tem grande influência no imaginário americano.”

Segundo a Agência Judaica, em 2023 havia 15,7 milhões de judeus em todo o mundo. A esmagadora maioria vivia em Israel (7,2 milhões) e nos Estados Unidos (6,3 milhões). As sondagens dizem que cerca de 75% dos judeus americanos votam no Partido Democrata e que a maioria defende dois Estados.

A máscara de Netanyahu

Domingo passado, dois dias após conversar com Biden, ao telefone, e de o ter ouvido defender “uma solução de dois Estados com a segurança de Israel garantida”, Netanyahu deixou cair a máscara. “Não vou comprometer o controlo total da segurança israelita sobre todo o território a oeste da Jordânia [Cisjordânia e Faixa de Gaza incluídas]. E isto contraria um Estado palestiniano”, escreveu na rede social X.

“Não creio que a Administração Biden tenha sido equívoca quanto ao seu apoio a esse tipo de horizonte político [dois Estados]. A questão é mais como lá chegar. Neste momento, as condições entre israelitas e palestinianos são tais que esta é uma possibilidade muito distante”, acrescenta Sachs.

À semelhança do eleitorado, “a maioria dos líderes democratas desde o Presidente Clinton disse apoiar os dois Estados”, diz ao Expresso Joel Beinin, professor emérito de História do Médio Oriente, na Universidade de Stanford (Califórnia). “Exceto Clinton, que fez muito pouco e demasiado tarde, nenhum fez por que isso acontecesse. Biden também não. Numa eleição acirrada como a deste ano, não arriscará perder um voto por causa disso”. A seu ver, “enquanto Netanyahu for primeiro-ministro, desafiará Biden nesta questão, e Biden terá medo de parecer fraco”.

A proteção do veto

Beinin diz que Israel é um parceiro especial dos Estados Unidos também pelo seu papel “na manutenção da hegemonia imperial americana, não apenas no Médio Oriente, mas a nível global”. Ainda que, nos últimos anos, a Casa Branca tenha escolhido o Pacífico como prioridade estratégica, Israel não é percecionado em Washington como um fardo. “Enquanto os Estados Unidos puderem contar com Israel no Médio Oriente, será mais fácil mudar para o Pacífico.”

Ao longo dos anos, a influência dos Estados Unidos sobre Israel tem-se feito de múltiplas formas. Nos anos 90, exerceu-se, em especial, através de ajudas financeiras, sob a forma de garantias de empréstimos. Hoje, diz Sachs, já não há tanto dinheiro envolvido. “Os Estados Unidos fornecem uma grande quantidade de ajuda militar, que é gasta nos Estados Unidos, na indústria das armas, que depois vão para Israel.”

Há ainda a cobertura que a diplomacia americana garante aos interesses israelitas na ONU. “Muitas vezes, vetaram resoluções desfavoráveis a Israel no Conselho de Segurança.” Foi o que aconteceu a 8 de dezembro, relativamente a uma resolução que apelava ao “cessar-fogo humanitário imediato” em Gaza.

A 23 de dezembro de 2016, Barack Obama rompeu com essa prática de décadas e, numa decisão que enfureceu Israel, ordenou a abstenção americana numa resolução que defendia que os colonatos israelitas na Cisjordânia são uma violação do direito internacional.

Sachs não gosta do adjetivo “incondicional” para rotular a relação privilegiada. “Há um apoio muito forte, em parte porque Israel é muito popular entre o povo americano. Se olharmos para as sondagens, mesmo agora, quando há mais críticas a Israel da esquerda e da geração mais jovem, Israel ainda é esmagadoramente popular nos Estados Unidos.”

(IMAGEM Bandeiras dos Estados Unidos e de Israel DEVIANT ART)

Artigo publicado no “Expresso”, a 26 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

“A esperança e a alegria questionam o modelo de opressão de Israel.” Em Gaza, há palhaços a tentar animar quem tudo perdeu

Num território destruído e massacrado, como é hoje a Faixa de Gaza, o combate ao medo e ao trauma, sobretudo junto das crianças, passa muito pela tontice dos palhaços. Em entrevista ao Expresso, o galego Iván Prado, referência mundial do circo solidário, fala da intervenção da sua associação, Palhaços em Rebeldia, nos territórios palestinianos. Recorda um episódio antigo em Gaza que lhe despertou a consciência de que o palhaço é um interlocutor da parte da humanidade “que não se deixa vencer pelas bombas”

Na Faixa de Gaza, o sorriso é uma arma, ainda que ali não haja atualmente motivos para sorrir. No sul daquele território palestiniano, consumido por uma guerra sem trégua vai para quatro meses, uma brigada de “capacetes azuis do riso” desloca-se entre escolas e acampamentos de tendas, onde vivem amontoadas milhares de pessoas que ficaram sem teto.

Estes saltimbancos são habitantes de Gaza, com formação na área das artes circenses. Eles próprios foram afetados e deslocados pelo conflito. “Desde a primeira semana de guerra, temos trabalhado com as crianças, para aliviar o seu sofrimento. Temos esse dever humanitário e profissional para com elas”, diz ao Expresso Majid Elmosalami, coordenador das atividades. “Temos feito muitas atuações em escolas-abrigo e em tendas para refugiados. As pessoas acreditam que são sítios seguros, mas a verdade é que não são.”

Os animadores são alunos e formadores da Gaza Stars Circus School, uma escola de circo estabelecida em 2014, em Beit Lahia, no norte do território. Esta região foi o alvo prioritário dos bombardeamentos e da posterior ofensiva terrestre das forças israelitas. “Não sabemos se a nossa sede foi atingida, mas temos a certeza de que perdemos tudo nesta guerra”, continua o responsável.

Junto dos deslocados, os artistas começam por realizar atividades descontraídas, jogos de grupo e pinturas faciais para criar um clima de diversão. Depois assumem o protagonismo e fazem alguns números de circo, da forma mais criativa possível, tendo em conta o escasso material que têm ao dispor.

A arrecadação onde guardavam os acessórios para as atuações ficava numa escola que foi bombardeada. Com tudo reduzido a cinza, estes voluntários socorrem-se da criatividade. Procuraram materiais intactos e ferramentas caseiras nas ruas e entre escombros e construíram massas, bolas e arcos com as próprias mãos. O vídeo abaixo mostra como.

FALTA VÍDEO

A técnica do improviso não é nova para estes artistas. Por causa do bloqueio à Faixa de Gaza, imposto por Israel e pelo Egito desde 2007, estão impedidos de receber determinado tipo de materiais.

“Não há ninguém nem nenhum sector que não tenha sido afetado por esta guerra. Aconteceu também na área do entretenimento. Perdemos todo o equipamento de circo que recolhemos junto dos nossos amigos estrangeiros durante os últimos dez anos”, diz Majid Elmosalami.

A escola ficou também sem o circo móvel, destruído num bombardeamento. Este miniautocarro, destinado a levar animação — e, com isso, apoio psicológico e psicossocial — às zonas mais devastadas de Gaza, tinha sido adquirido há pouco mais de dois anos na sequência de uma campanha de crowdfunding promovida por um dos principais parceiros: o coletivo espanhol Palhaços em Rebeldia.

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

Esta associação cultural com sede em Pontevedra, na Galiza, que encara a figura do palhaço e as artes circenses no geral como antídotos para as desigualdades, as injustiças, a dor e o sofrimento, tem um compromisso especial com a Palestina. “Temos uma relação de vários anos com a Gaza Stars Circus School” diz Iván Prado, o palhaço que fundou e dirige a organização, em entrevista ao Expresso.

“Visitámo-los, fazemos atuações conjuntas e damos-lhes formação. Mas fundamentalmente damos-lhes apoio económico para que possam andar pelas escolas das Nações Unidas. Neste momento, estão a trabalhar sobretudo em Khan Yunis e Rafah [no sul da Faixa de Gaza]. Também querem dar apoio humanitário — roupa, comida, medicamentos —, por isso estamos a fazer uma campanha para angariar mais dinheiro.”

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

Nascido em Lugo, em 1974, Iván Prado é uma referência mundial do circo solidário. Esse percurso internacional levou um forte impulso precisamente na Palestina, em 2002, estava Gaza ainda sob ocupação israelita e, também na Cisjordânia, as ruas estavam tomadas pela segunda Intifada (revolta palestiniana). “Descobrimos a importância da alegria e do mundo dos palhaços — a palhaçaria — para as populações que sofriam, após bombardeamentos constantes. Éramos três palhaços e fizemos 28 espetáculos em 22 dias, por toda a Cisjordânia e em Gaza.”

Nessa primeira imersão palestiniana, constataram a esperança que o simples abraço de um palhaço pode provocar. Em Gaza, na zona de Erez, quando estavam prestes a iniciar um espetáculo, no pátio de uma escola, começou um bombardeamento israelita não muito longe dali. “As crianças puseram-se de pé a cantar e a bater palmas para tentar abafar o som das bombas e incentivar os palhaços a atuarem. Preferiam ficar a assistir ao espetáculo, em vez de fugirem e esconderem-se das bombas”, recorda.

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

Este episódio marcou Iván até hoje. “Levou-me a tomar consciência de que o palhaço é um interlocutor dessa parte da humanidade que crê na esperança e no ser humano e que não se deixa vencer pelo medo, pelo terror ou, neste caso, pelas bombas.”

Se, em contexto bélico, o palhaço pode ser uma “arma de diversão maciça”, como defende a Palhaços em Rebeldia, pode também tornar-se um alvo. Foi o que aconteceu com o galego, em 2010, noutra viagem aos territórios palestinianos: foi detido pelas autoridades de Israel e interrogado durante mais de cinco horas.

“Disseram de tudo, que eu tinha o número de um terrorista no meu telefone, que me recusei a colaborar com eles, na realidade queriam que abrisse o meu correio eletrónico num computador do Shin Bet [serviço de segurança interna de Israel], o que é ilegal”, conta. “Mas acima de tudo não queriam que fizéssemos um festival de palhaços, porque para eles a esperança e a alegria é algo que questiona o seu modelo de opressão.”

Passou uma noite numa prisão em Telavive e foi deportado “por razões de segurança”. O ‘caso do palhaço preso’ teve ampla difusão mediática. Apesar de expulso, o espanhol conseguiu voltar à Palestina no ano seguinte para lançar a semente de um projeto improvável, que vingou: o Festiclown Palestina.

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

A primeira edição deste festival internacional de palhaços, em 2011, contou com a participação de 40 artistas — incluindo os Irmãos Esferovite, uma banda de palhaços de Vila do Conde —, que realizaram mais de 100 atuações por toda a Palestina.

De Pontevedra para o mundo

As deslocações dos ‘narizes vermelhos’ vão sendo possíveis graças ao financiamento da casa-mãe — Festiclown —, um festival do riso nascido em 1999, no município de Pontevedra, dirigido por Iván Prado. No seu sítio na Internet, o evento apresenta-se como “artefacto de alegria rebelde, que usa o riso como alavanca para mover o mundo”.

Além da Gaza Stars Circus School, a Palhaços em Rebeldia tem uma escola de circo no Lajee Center, no campo de refugiados de Aida, em Belém (na Cisjordânia ocupada) e apoia, no mesmo território, a Escola de Circo Palestiniana (Birzeit), outra em Silwan (Jerusalém Oriental) e a organização Human Supporters (Nablus).

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

“Conseguimos enviar-lhes um mínimo de apoio económico para que façam o que sabem, que é animar, levar alegria, tentar aplicar as artes mágicas e esperançosas do circo. No fundo, o nosso universo é aquele lugar onde as coisas impossíveis se tornam possíveis e as coisas possíveis se tornam belas. É a nossa função e é por isso que o fazemos, viajando até lugares, como a Palestina, que leva 75 anos de limpeza étnica e apartheid”, acrescenta Prado.

Na Palhaços em Rebeldia, colocamos a nossa arte ao serviço da humanidade. O que me faria muito feliz seria que futuros palhaços e palhaças entendessem que a nossa arte é uma ferramenta para construir os sonhos e as utopias da humanidade e que sempre estará ao serviço dos que mais sofrem”, prossegue.

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

A vocação internacional desta associação galega já a fez galgar muitas fronteiras e tornou Iván num nómada, com deslocações frequentes a lugares do mundo onde as pessoas que ali vivem não sabem se estarão vivas no dia seguinte. Para lá dos territórios palestinianos, já esteve nos acampamentos sarauís no deserto da Argélia, nos campos de refugiados em Idomeni (Grécia) e nas favelas do Rio de Janeiro. Quando conversou com o Expresso, tinha acabado de chegar de terras indígenas de Chiapas (México).

Nessas regiões esquecidas, apesar das dificuldades e do sofrimento, é fácil provocar o riso, garante. “A ferramenta usada pelo palhaço é a estupidez humana, a partir do próprio ridículo de cada um de nós. Essa é uma linguagem internacional e universal. Quando alguém se põe ao ridículo, faz de tonto e trabalha a partir da lógica da estupidez, consegue estabelecer uma relação em qualquer idioma, cultura e circunstância. Há potencial de comunicação de sobra.”

Quando a guerra terminar, associações como a Palhaços em Rebeldia terão um papel importante num território com muitas crianças órfãs e um grande trauma para debelar. “Seremos imprescindíveis. Nós já estamos a tentar viajar agora para a Palestina. Estamos a ver como e por onde.”

(FOTO PRINCIPAL CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Quem ataca quem no Médio Oriente? A Palestina é o pretexto comum, mas os nove países envolvidos têm agenda própria

Em três meses, o conflito na Faixa de Gaza assumiu uma dimensão regional, com vários Estados a envolverem-se em trocas de fogo. A Palestina é o argumento útil, mas vários países atacam no interesse de agendas próprias

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

A ofensiva de Israel na Faixa de Gaza destapou o vespeiro da conflitualidade no Médio Oriente. Desde o início da guerra, a 7 de outubro, nove Estados da região já dispararam contra vizinhos. Se países como o Líbano e a Síria têm uma grande exposição ao problema israelo-palestiniano, atores internos no Iraque e no Iémen parecem agir por controlo remoto.

O Irão saiu da sombra e passou a protagonista, bombardeando três países, um deles o Paquistão, uma potência nuclear. A Turquia confirmou que mantém o foco na questão curda. E até a discreta Jordânia alvejou um vizinho.

Israel ➨ Faixa de Gaza

O ataque terrorista do Hamas a Israel, a 7 de outubro, entrou para a memória coletiva do povo judeu como uma espécie de 11 de Setembro, pela sua surpresa, dimensão, impacto emocional e pela vulnerabilidade que evidenciou um país reconhecido pela eficácia dos seus serviços de informação.

Israel retaliou contra a Faixa de Gaza, o território palestiniano controlado pelo grupo islamita, inicialmente com bombardeamentos aéreos posteriormente combinados com uma ofensiva terrestre. No próprio dia do ataque, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse à nação que Israel não parará até “destruir as capacidades do Hamas”.

Faixa de Gaza ➨ Israel

Desencadeada a resposta militar de Israel, o disparo de foguetes desde Gaza não cessou. Na terça-feira passada, o Hamas disparou 25 rockets contra território israelita a partir do norte do território palestiniano, que tem sido o foco principal da intervenção militar.

Ainda que a maioria dos foguetes tenham sido intercetados pelo Iron Dome, o escudo defensivo de Israel, ou caído em descampados, o seu disparo revela capacidade desafiante do Hamas e é, para as comunidades israelitas próximas da fronteira, um reviver permanente do terror vivido a 7 de outubro.

Líbano ➨ Israel

Mal começou a guerra em Gaza, a fronteira norte de Israel tornou-se numa frente de conflito, com troca de fogo de parte a parte e vítimas mortais ocasionais dos dois lados. O sul do Líbano é um bastião do Hezbollah, uma milícia xiita (e também partido político, com deputados e ministros) cujo nascimento está intrinsecamente ligado à invasão israelita do sul do Líbano, em 1982, e subsequente ocupação, até ao ano 2000.

A luta contra a ocupação israelita da Palestina e também contra a presença militar dos Estados Unidos no Médio Oriente são prioridades para o Hezbollah. Os ataques ao longo da fronteira com Israel são, por isso, frequentes, mas com a guerra em Gaza tornaram-se diários e mais intensos.

Israel ➨ Líbano

Para Israel, a sua fronteira norte é um local de tensão permanente desde que se retirou do sul do Líbano. Desde 7 de outubro, as forças israelitas têm não só alvejado posições do Hezbollah como também já atacaram nos subúrbios de Beirute, para eliminar um alto responsável do Hamas.

Este estado de guerra forçou a transferência de milhares de habitantes do norte de Israel para locais mais seguros.

Na fronteira entre Israel e Líbano, que foi demarcada pela ONU (Linha Azul), existe, desde 1978, uma missão de capacetes azuis (UNIFIL), que não tem, porém, dissuadido a troca de fogo de parte a parte.

Israel ➨ Síria

Os ataques israelitas em território sírio não são inéditos e, desde 7 de outubro, já ocorreram por diversas vezes, visando, entre outros, o Aeroporto Internacional de Damasco.

Os alvos de Israel, para além de posições do exército sírio, são prioritariamente grupos armados apoiados pelo Irão e combatentes do Hezbollah libanês, que foram cruciais para a sobrevivência política do Presidente Bashar al-Assad, após os protestos da Primavera Árabe e a guerra civil que se lhe seguiu.

A Síria mantém com Israel uma disputa territorial em torno dos Montes Golã, que Israel ocupou na guerra de 1967, anexou através de uma lei de 1981, mas que os sírios continuam a reivindicar.

Iémen ➨ Israel

No Iémen quem manda são os hutis, um grupo que conquistou o poder pela força em 2014, mas que não é reconhecido como um interlocutor legítimo pela comunidade internacional.

Estes rebeldes iemenitas, que controlam a costa ocidental do país, declararam apoio aos palestinianos e mostraram-no ameaçando navios em trânsito pelo Mar Vermelho com origem ou a caminho de portos em Israel.

Em retaliação ao assédio dos hutis às embarcações que percorrem esta via marítima, por onde passa 12% do comércio mundial, forças dos Estados Unidos e, por uma vez, também do Reino Unido já bombardearam posições dos hutis dentro do Iémen.

Irão ➨ Iraque

A 3 de janeiro, um duplo atentado suicida reivindicado pelo Daesh, na cidade iraniana de Kerman, provocou 94 mortos. O Irão retaliou esta semana e um dos alvos foi Erbil, na região autónoma do Curdistão iraquiano (norte), onde Teerão disparou 11 mísseis balísticos contra o que diz ser um centro de espionagem da Mossad (serviços secretos de Israel).

O Iraque, cuja população é maioritariamente xiita, como o Irão, ainda alberga tropas norte-americanas que ali ficaram após ajudarem no combate ao Daesh. Não raras vezes, os militares dos EUA investem contra milícias locais ligadas ao Irão e são eles próprios um alvo das mesmas, como tem acontecido desde 7 de outubro.

Esta semana, o primeiro-ministro do Iraque defendeu a saída das tropas norte-americanas do país.

Irão ➨ Síria

Paralelamente ao ataque na região iraquiana de Erbil, os Guardas da Revolução Islâmica, uma unidade de elite das Forças Armadas iranianas, atacaram também dentro da Síria, com a qual o Irão não tem fronteira.

Quatro mísseis balísticos foram lançados desde a província de Khuzestan, a oeste do Irão, na direção de posições do Daesh em Idlib, numa resposta direta aos atentados em Kerman.

Nesta região do noroeste da Síria, persiste ainda um foco rebelde de contestação ao regime sírio, que é apoiado pelo Irão. Neste ataque, noticiou a agência iraniana IRNA, Teerão disparou “nove mísseis de vários tipos” contra “grupos terroristas em diferentes áreas dos territórios ocupados na Síria”.

Turquia ➨ Iraque

O Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, tem sido dos líderes mais vocais contra o primeiro-ministro de Israel, ao ponto de já ter dito que Benjamin Netanyahu “não é diferente de Hitler”. Mas paralelamente ao seu apoio à Palestina, há uma questão maior no posicionamento da Turquia na região: o independentismo curdo.

Dentro de portas, os curdos são uma ameaça separatista que Ancara tenta combater também nos países da vizinhança onde vivem minorias curdas.

No sábado passado, caças turcos alvejaram posições no Curdistão iraquiano (norte), onde a Turquia tem várias bases militares. Na véspera, um ataque a uma dessas bases atribuído ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, na sigla inglesa) provocou nove mortos entre os militares turcos.

Turquia ➨ Síria

Os curdos foram o alvo de bombardeamentos turcos também na Síria, dentro do mesmo espírito que levou Ancara a atacar no Curdistão iraquiano.

Segundo o Ministério da Defesa da Turquia, foi alvejado um total de 29 localizações — incluindo “cavernas, bunkers, abrigos e instalações petrolíferas” — associadas ao PKK e às Unidades de Proteção Popular (YPG, na sigla inglesa). Esta organização armada da região do Curdistão sírio teve um papel central na coligação liderada pelos EUA que derrotou o Daesh na Síria.

Dos quatro países do Médio Oriente que têm populações curdas — Turquia, Síria, Iraque e Irão —, a Síria é a que tem a minoria mais pequena.

Irão ➨ Paquistão

No dia seguinte a ter atacado no Iraque e na Síria, o Irão bombardeou também o Paquistão. Os dois países partilham uma fronteira de 900 quilómetros e um inimigo comum: os separatistas do Balochistão, uma região rica em gás e minérios, atravessada pela fronteira entre ambos.

Na terça-feira, o Irão usou drones e mísseis para alvejar posições do Jaish al-Adl, um grupo sunita composto por baloches envolvido em ataques dentro do Irão, numa área remota e montanhosa dessa região separatista. Morreram duas crianças e três civis ficaram feridos.

O ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Hossein Amir-Abdollahian, esclareceu que os alvos dos bombardeamentos não foram paquistaneses, mas “terroristas iranianos presentes em solo paquistanês”. A 15 de dezembro, 11 polícias iranianos tinham sido mortos num ataque a uma esquadra, perto da fronteira com o Paquistão.

Paquistão ➨ Irão

Islamabade respondeu ao ataque do Irão mandando chamar o seu embaixador em Teerão e disparando mísseis contra a província iraniana de Sistão e Balochistão. O bombardeamento, que teve como alvo outro grupo separatista — a Frente de Libertação Baloche —, provocou nove mortos (nenhum tinha nacionalidade iraniana).

Os ataques entre estes dois países originaram posições de condenação de parte a parte e acusações de violação da soberania, mas a relação não congelou.

No mesmo dia em que o Irão atacou o Paquistão, os dois países realizaram um exercício naval com navios de guerra, no Estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico. E no dia seguinte (véspera da retaliação do Paquistão), os dois ministros dos Negócios Estrangeiros deitaram água na fervura e conversaram ao telefone.

Esta sexta-feira, o Governo paquistanês anunciou que o seu país e o Irão concordaram em diminuir as tensões após a troca de violentos ataques esta semana.

“Os dois ministros dos Negócios Estrangeiros concordaram que a cooperação e a coordenação no combate ao terrorismo e outras áreas de interesse comum devem ser reforçadas”, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Paquistão, no final de uma chamada telefónica entre os dois governantes.

Jordânia ➨ Síria

Não foram razões políticas que estiveram na origem de bombardeamentos atribuídos à Jordânia em território sírio, mas, ao estilo de uma guerra sem regras, entre os dez mortos que o ataque provocou havia crianças.

O alvo, na quinta-feira, foi a província de Sweida, no sudoeste da Síria, uma zona não muito distante da fronteira com a Jordânia. Terá sido um esforço para atingir o tráfico de drogas — nomeadamente da anfetamina Captagon, usada pelos terroristas do Daesh para facilitar a matança — e perturbar o seu fluxo para dentro do reino hachemita.

As autoridades de Amã não se pronunciaram sobre o caso, mas é conhecido que, no passado, o país já recorreu a ataques desta natureza para atingir grupos dedicados ao narcotráfico, bem organizados e armados.

No ano passado, o Governo do Reino Unido defendeu que o Captagon é uma “tábua de salvação financeira” para a máquina de guerra do regime sírio.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Depois de Líbano, Síria e Iraque, também o Iémen já foi arrastado para a guerra na Faixa de Gaza

Nove anos de bombardeamentos da Arábia Saudita não quebraram os hutis. Ao estilo de piratas modernos, armados até aos dentes, os rebeldes do Iémen transformaram o Mar Vermelho num campo de batalha, em nome da solidariedade com os palestinianos. Após serem bombardeados pelos Estados Unidos, esta segunda-feira alvejaram com um míssil um navio de carga americano. Para lá do impacto regional, esta escalada é uma ameaça ao processo de paz que vinha a ganhar forma no Iémen

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

A guerra na Faixa de Gaza, que cumpriu 100 dias no domingo, já pôs em ebulição países além de Israel e dos dois territórios palestinianos (Cisjordânia e Gaza). No sul do Líbano, o movimento xiita Hezbollah alimenta confrontos diários com tropas israelitas concentradas no norte do Estado judeu.

No Iraque, aumentaram as hostilidades entre milícias apoiadas pelo Irão e tropas dos Estados Unidos no país. Na Síria, membros dos Guardas da Revolução do Irão foram assassinados em bombardeamentos atribuídos a Israel. Mais recentemente, a guerra transbordou para o Mar Vermelho e inundou o Iémen.

Desde que Israel começou a bombardear a Faixa de Gaza, em retaliação pelo ataque do Hamas de 7 de outubro, os hutis do Iémen declararam apoio aos palestinianos, em palavras e ações. Este grupo rebelde — que tomou o poder pela força em 2014 e controla, atualmente, a costa ocidental do país — fê-lo direcionando o seu poder de fogo para navios em trânsito pelo Mar Vermelho, uma via de navegação crucial para o comércio mundial.

Ao estilo de piratas dos tempos modernos, equipados com drones e vários tipos de mísseis, os hutis escolheram como alvo embarcações que seguiam de e para portos de Israel. A ação mais espetacular ocorreu a 19 de novembro, quando sequestraram o cargueiro Galaxy Leader — com ligações ao empresário israelita Abraham “Rami” Ungar —, com uma abordagem ao navio feita por uma unidade de comandos hutis a bordo de um helicóptero.

Sexta-feira passada, Estados Unidos e Reino Unido alvejaram posições militares dos hutis no interior do Iémen. Numa declaração divulgada pela Casa Branca, o Presidente Joe Biden disse ter ordenado os bombardeamentos “em resposta direta a ataques sem precedentes realizados pelos hutis contra embarcações internacionais no Mar Vermelho”. Na véspera, as forças dos dois países tinham intercetado 21 drones e mísseis disparados pelos hutis.

No sábado, os Estados Unidos voltaram a atacar os hutis, desta vez a solo. No dia seguinte, os rebeldes responderam disparando um míssil de cruzeiro (que foi intercetado) na direção do contratorpedeiro USS Laboon, da Marinha dos Estados Unidos. Já esta segunda-feira, um navio de carga americano foi atingido por um míssil balístico atirado pelos hutis.

“Se o objetivo dos bombardeamentos [dos Estados Unidos e do Reino Unido] foi forçar os hutis a cessar os seus ataques no Mar Vermelho, não funcionará. Pouco depois dos ataques, os hutis prometeram retaliar ferozmente. Isto pode assumir a forma de ataques crescentes a navios americanos e britânicos ou atingir ativos dos Estados Unidos na região. De uma forma ou de outra, a situação provavelmente vai piorar”, analisou ao Expresso Veena Ali-Khan, investigadora do Iémen na Universidade de Nova Iorque.

“Paradoxalmente, os hutis beneficiam com os bombardeamentos, uma vez que permitem que eles se aproveitem do seu sentimento pró-Palestina. Também ajuda-os a provar a sua narrativa de que o verdadeiro inimigo são os EUA. Os hutis há muito que construíram a sua legitimidade com base na hostilidade contra os Estados Unidos e Israel, pelo que estes ataques aumentam a sua popularidade — distraindo a população dos problemas internos.”

O Comando Central dos Estados Unidos — que dirige operações militares com países aliados em apoio dos interesses de Washington e cuja prioridade é “deter o Irão” — rotulou os ataques a infraestruturas militares dos hutis de medidas defensivas destinadas a diminuir a capacidade bélica dos rebeldes. Mesmo a um nível operacional, a eficácia dos bombardeamentos ocidentais é questionável.

Desde março de 2015, os hutis têm sido alvo de uma campanha militar da Arábia Saudita — a Operação Tempestade Decisiva —, que começou com bombardeamentos aéreos, prosseguiu com um bloqueio naval ao Iémen e uma invasão terrestre. Em resposta, a infraestrutura petrolífera saudita foi fortemente atingida por ataques hutis.

Nove anos depois do seu início, contudo, a ofensiva de Riade não enfraqueceu os hutis, não os privou de um arsenal potente nem os inibiu de uma postura desafiante. O grupo controla a parte ocidental do Iémen, incluindo o Estreito de Bab al-Mandeb, à entrada do Mar Vermelho.

Quem são os hutis?

A investida saudita no Iémen começou cerca de meio ano depois de os hutis irromperem pela capital, Saná, e conquistarem o poder, a 21 de setembro de 2014. Começou então uma guerra civil num dos países mais pobres do mundo, com várias reivindicações separatistas, um braço ativo da Al-Qaeda e onde se passa fome e uma criança morre a cada dez minutos.

O objetivo de Riade passou por depor os hutis e devolver o poder ao governo do Presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi, reconhecido pela comunidade internacional. Em vão.

Na histórica disputa pela hegemonia no Médio Oriente — entre a Arábia Saudita (monarquia árabe sunita) e o Irão (república persa xiita) —, os hutis estão na esfera de influência de Teerão, o que torna o Iémen uma peça importante no xadrez das rivalidades regionais. Mas quem são os hutis?

O grupo tem origem na região de Sa’dah, no noroeste do Iémen, negligenciada pelo poder central, durante décadas, em termos políticos, económicos e sociais. Sa’dah é o centro espiritual do zaidismo, uma corrente do Islão xiita.

Nos anos 80, a região tornou-se ainda mais periférica, quando a Arábia Saudita promoveu a disseminação do sunismo radical no país, marginalizando os crentes zaiditas. Esta situação levou à emergência de um movimento de resistência — designado por “Juventude que Acredita” —, que aliava revivalismo religioso e ativismo social.

A sua agenda foi formatada por um clérigo zaidita e membro do Parlamento do Iémen, de seu nome Hussein Badreddin al-Houthi. Com a cabeça a prémio e uma recompensa choruda anunciada pelo governo iemenita pela sua captura, a 10 de setembro de 2004 as autoridades confirmaram a sua morte, em confrontos com as forças de segurança do país.

O seu grupo armado, formalmente designado “Ansar Allah” (Apoiantes de Deus), passou a ser conhecido, informalmente, pelo seu nome de família: os “hutis”.

Irão assobia para o lado

Para os hutis, o Irão era um apoio crucial para a sua manutenção no poder. Para a Arábia Saudita, o grupo tornou-se uma ameaça xiita no calcanhar da Península Arábica esmagadoramente sunita. “Ao longo dos anos, a relação dos hutis com o Irão tornou-se inegavelmente mais forte. Teerão ajudou-os com armas, tecnologia para mísseis guiados antitanque e informação”, diz Veena Ali-Khan.

“Neste momento, é difícil identificar o papel preciso do Irão na escalada do Mar Vermelho, por as provas serem limitadas. No entanto, parece improvável que os hutis tenham escalado a situação a tal ponto sem aprovação ou envolvimento do Irão. Em última análise, isto faz parte da estratégia de Teerão de negação plausível, através da qual podem usar os hutis para escalar, mantendo ao mesmo tempo a posição pública de que não têm nada que ver com os ataques.”

Em abril de 2022, as Nações Unidas mediaram com sucesso uma trégua nos combates no Iémen que comprometeu os rebeldes hutis, o Governo internacionalmente reconhecido e milícias aliadas deste último. Este cessar-fogo, prorrogado duas vezes, expirou em outubro desse ano, mas as partes continuaram a respeitá-lo, numa atitude que indicia vontade — ou urgência — em resolver o conflito.

No atual adensar da tensão em torno do Iémen, a Arábia Saudita anunciou que acompanha a situação com “grande preocupação” e apelou à “contenção e prevenção da escalada”, noticiou a agência oficial saudita. Riade é um aliado fundamental dos Estados Unidos, que fornecem cerca de 80% do total das importações de armamento dos sauditas.

No Iémen, “o cessar-fogo de facto permanece em vigor, mas não existe documento oficial que o vincule. À medida que a probabilidade de uma escalada regional aumenta a cada dia, a fragilidade do processo de paz do Iémen torna-se evidente”, defende a investigadora.

“A Arábia Saudita apresentou uma proposta ao Enviado Especial da ONU para o Iémen [o diplomata sueco Hans Grundberg] no final do ano passado, dando um passo positivo. No entanto, não houve qualquer anúncio sobre o cronograma da aplicação do acordo entre hutis e sauditas, nem sobre para quando se espera o início das conversações intra-iemenitas. Até estes detalhes serem definidos, os iemenitas permanecerão no limbo.”

O apoio que os hutis recebem do Irão inscreve os rebeldes iemenitas no chamado “eixo da resistência”, que serve os interesses da República Islâmica na região, e de que fazem parte também o libanês Hezbollah e o palestiniano Hamas.

Mas a sua identidade xiita não significa que os hutis vão cair sob a influência iraniana por omissão, já que só a Arábia Saudita poderá dar garantias de um cessar-fogo de longo prazo. Os hutis têm, pois, margem para conversar com os dois gigantes e refazer as suas alianças regionais.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui