O principal órgão judicial de Israel foi insensível ao contexto de guerra que o país vive e tornou pública uma deliberação que ameaça reabrir feridas na sociedade. “Enquanto a guerra une a todos, esta decisão leva-nos de volta à divisão anterior a 7 de outubro”, diz ao Expresso um advogado israelita. Em causa está a alteração a uma lei-chave para a reforma judicial do Governo: o Parlamento aprovou-a e agora o Supremo anulou-a

Com uma guerra em curso que mobiliza quase toda a população, paralisa o país e é, nas palavras do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, “a segunda guerra da independência de Israel”, o Supremo Tribunal chamou a si o protagonismo e reforçou a sua autoridade em relação aos destinos do Estado judeu.
Era já noite, no primeiro dia do ano, quando o coletivo de 15 juízes tornou pública a decisão de anular uma alteração à chamada lei da razoabilidade, aprovada no Parlamento (Knesset) a 25 de julho do ano passado, que era um dos pilares da polémica reforma judicial gizada pelo Governo.
Ao longo de 2023, este assunto mobilizou quer os bastidores políticos quer as ruas do país durante largos meses, num braço-de-ferro entre quem achava que o sistema judicial precisava de ser mudado e quem considerava a agenda para a justiça do Governo — dominado por partidos extremistas e religiosos — uma ameaça à democracia.
A investigadora israelita Tamar Hermann, do Instituto de Democracia de Israel, não vê relação entre o momento escolhido pelo Supremo Tribunal e alguma vontade oculta de interferir nos planos de guerra do Governo. “De forma alguma”, disse ao Expresso. “O momento foi este porque o prazo, segundo a lei, estava a terminar. Legalmente, eles não podiam adiar a publicação do veredito.”
O advogado israelita Itay Mor também não perceciona qualquer intenção do Supremo em condicionar o rumo da guerra, mas vislumbra objetivos políticos. “O principal fator que levou a esta decisão prende-se com o facto de duas juízas, incluindo a presidente do Supremo Tribunal, se terem reformado”, disse ao Expresso.
Aos 70 anos, Esther Hayut e Anat Baron atingiram o limite de idade e aposentaram-se em meados de outubro passado. Nestes casos, a lei prevê que, nos três meses seguintes, os antigos juízes possam ainda participar das deliberações. “É legal, mas dadas as circunstâncias é muito invulgar”, explica Itay Mor.
“Esta foi basicamente uma declaração de aposentadoria. Quiseram deixar a sua marca. Houve sugestões para que adiassem a decisão ou pelo menos a sua publicitação. Se isso fosse aceite, estas juízas não participariam.”
“Este é um momento muito problemático para publicar algo deste género”, continua o advogado. “Enquanto a guerra une a todos, esta decisão leva a sociedade de volta à divisão anterior a 7 de outubro. A maioria das pessoas não concorda com isto.”
“A decisão dos juízes do Supremo Tribunal de publicar a decisão durante a guerra é o oposto do espírito de unidade necessário hoje em dia para o sucesso dos nossos soldados na frente”
Yariv Levin
ministro da Justiça de Israel e arquiteto do projeto de reforma judicial
A votação no Supremo foi renhida com oito juízes a defenderem a anulação do fim da cláusula da razoabilidade e sete a pronunciarem-se contra essa prerrogativa. Prevaleceu o argumento de que limitar a possibilidade do Supremo usar critérios de razoabilidade para abortar decisões do Governo mina o caráter democrático do Estado judeu. Esther Hayut e Anat Baron contribuíram para a posição dominante.
A professora Tamar Hermann concorda que a deliberação pode não ser coincidente com o sentimento maioritário da sociedade. “Houve pluralidade no Supremo, mas se perguntarmos às pessoas, a proporção poderá ser diferente. Pode muito bem acontecer que a maioria diga que é uma lei aceitável. O Supremo não é, de forma alguma, um bom reflexo da distribuição de opinião entre as pessoas”, diz.
“Há 64 lugares no Parlamento [num total de 120] ocupados por deputados de partidos de direita, que são a favor desta lei” e foram eleitos pelo povo.
A fundamentação do Supremo totalizou cerca de 250 mil palavras, com cada juiz a escrever um parecer. Para a jurisprudência de Israel, o documento é um marco, já que, pela primeira vez, este tribunal derrubou uma Lei Básica.
Dado Israel não ter uma Constituição escrita, semelhante à que existe em Portugal, por exemplo, um conjunto de Leis Básicas servem de base ao sistema judicial e à estrutura de governo.
Para Benjamin Netanyahu e a sua coligação governativa, esta deliberação foi um rombo no argumento repetido incessantemente de que a maioria parlamentar era soberana. O Supremo demonstrou que os poderes legislativo e executivo devem estar sujeitos a restrições e que maiorias políticas não podem servir para ameaçar direitos.
“O que aconteceu em Israel nunca aconteceu em nenhuma outra democracia na Terra. Há países onde o Supremo pode anular regras, mas nunca decide sobre as regras básicas de uma sociedade. Isso é sempre competência do Parlamento, que é o órgão eleito. E há outros países onde os juízes são eleitos e é possível dar-lhes mais poder. Não é o caso. O que aconteceu é muito extremo, incomum e único”, diz o jurista israelita.
“Isto é uma crise. Se o Parlamento não consegue legislar sobre o que acontece no sistema jurídico, então como funciona o sistema? O Supremo Tribunal não é eleito, então como pode estar acima de tudo?”
Em termos técnicos, a deliberação do Supremo pode voltar a ser desafiada no Parlamento. “O Knesset é o órgão legislativo. É a ele que compete produzir regras. Se o Supremo Tribunal decidir anular o que o Parlamento produz vai criar uma colisão que alguém vai ter de resolver”, diz o advogado.
Se regressar ao Parlamento, não é claro que tipo de maioria será necessária para contrariar a posição do Supremo. “Esse é o problema em Israel, não há indicação de quantos votos uma lei básica deve obter”, diz a professora. “Mas esta deliberação acrescentou algo muito mais substancial, que foi afirmar que o Supremo tem o direito de escrutinar minuciosamente as leis básicas. Isto foi algo bastante ambíguo durante muitos anos e agora o Supremo afirmou-o formalmente.”
Na prática, esta posição relativa às Leis Básicas — que foi aprovada por uma maioria clara de 13 juízes contra dois — significa que o Supremo reclama para si autoridade para anular leis fundamentais do Estado que contrariem a sua natureza judaica e democrática.
Contrariamente à decisão sobre a lei da razoabilidade, esta declaração sobre as Leis Básicas não pode ser apreciada pelo Parlamento. “Não é algo que o Knesset possa contestar, a menos que mude todo o sistema de regime em Israel”, refere a israelita.
“Aparentemente”, acrescenta Tamar Hermann, esta posição do Supremo poderá ser o fim da linha para a reforma judicial do Governo que “percebeu que a luta seria muito longa e dura e, durante uma guerra, as pessoas não aceitariam a continuação deste processo. Talvez o retomem dentro de alguns anos, mas agora não”.
E Itay Mor acrescenta: “Toda a liderança está agora concentrada na guerra. Neste momento, não acredito que alguém pense noutra coisa. Talvez daqui a seis meses, um ano, queiram fazer mudanças, e acredito que as farão. A curto prazo, não será tomada nenhuma decisão em relação a isto”.
Numa mensagem de Ano Novo, um porta-voz das Forças de Defesa de Israel preparou o povo para a probabilidade do conflito se estender todo o ano de 2024. Perante esse cenário, aterrorizado diariamente pela perspetiva do conflito extravasar fronteiras e abrir novas frentes em redor e ainda com um governo fragilizado pela incapacidade em prever o ataque de 7 de outubro e pela dificuldade em resgatar os reféns em posse do Hamas, uma crise constitucional seria mais um pesadelo no país.
“Essa é a maior crítica que se faz em Israel, neste momento, em relação ao sistema judicial. Se se tratasse de uma decisão do Governo, nunca seria tomada a meio da guerra”, conclui Itay Mor. “Mas o sistema judicial faz o que quer. No seu parecer, uma das juízas fez uma comparação entre a guerra e a lei da razoabilidade. Isso mostra o quão desligados eles estão da realidade.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui