Eleições: não está em causa quem ganha, antes a legitimidade da República Islâmica

O regime iraniano enfrenta uma crise de legitimidade e os ayatollahs já não o conseguem esconder. Num apelo desesperado, Ali Khamenei instou, há dias, os seus conterrâneos a votarem nas eleições desta sexta-feira, 1 de março, para o Parlamento e para a Assembleia de Peritos, o órgão que escolhe o Líder Supremo. Os opositores, por seu lado, apelam ao boicote. Após as últimas eleições terem registado um mínimo histórico de afluência às urnas, a República Islâmica está pressionada mais do que nunca pela urgência em inverter a tendência, para se mostrar relevante

Da última vez que o Irão realizou eleições legislativas, em fevereiro de 2020, o país estava ainda sob o signo do choque. A 4 de janeiro, uma das figuras mais prestigiadas da República Islâmica, o general Qasem Soleimani, tinha sido assassinado por um drone disparado pelos Estados Unidos, estava ele no aeroporto de Bagdade, no Iraque. No dia do voto, o sentimento anti-ocidental estava ao rubro entre os mais entusiastas do regime religioso.

Esta sexta-feira, dia 1 de março, os iranianos regressam às urnas para escolher os seus representantes no Parlamento (Majlis) e também os membros da Assembleia de Peritos, o órgão encarregue de escolher o Líder Supremo. O escrutínio acontece num contexto em que, seja pela inimizade de décadas com os Estados Unidos, ou pela aliança com a Rússia, seja pelo apoio de Teerão a grupos armados na região, como o palestiniano Hamas ou o libanês Hezbollah, ambos protagonistas na guerra em curso na Faixa de Gaza, o país sente-se na mira dos grandes poderes ocidentais.

Esta perceção não estará ausente destas eleições, que constituirão um dilema para os eleitores: “Se os candidatos da linha dura e anti-Israel vencerem as eleições para o Parlamento, então poderão legislar no sentido de empurrar o governo e as forças armadas para uma abordagem mais conflituosa em relação aos conflitos na região”, comenta ao Expresso Mohammad Eslami, investigador iraniano na Universidade do Minho.

“Na mesma linha, se a prioridade do Parlamento for a economia e a subsistência das pessoas, [os novos deputados] poderão reorientar o regime para uma abordagem mais pacífica.”

Estas serão também as primeiras eleições desde a morte da iraniana Mahsa Amini, na sequência de ferimentos infligidos pela “polícia da moralidade” após ser detida por não usar o véu islâmico segundo a etiqueta da República Islâmica. O assassínio da jovem de 22 anos desencadeou uma vaga de protestos populares antirregime que duraram meses e só terminaram quando o regime começou a deter e a enforcar manifestantes, na sequência de julgamentos considerados fraudulentos.

Na crença de que votar é validar a República Islâmica e contribuir para a sua perpetuação, os opositores ao regime dos ayatollahs têm-se multiplicado em apelos ao boicote como forma de acentuar o divórcio entre uma parte significativa da sociedade e a hierarquia religiosa no poder.

“Estas eleições têm uma importância significativa uma vez que as anteriores registaram uma taxa de participação inferior a 50% [exatamente 42,57%], um mínimo histórico desde a Revolução Islâmica”, em 1979, diz Eslami. Para se mostrar relevante e com saúde, o regime iraniano — que tem sido desafiado por sucessivas vagas de contestação popular (por razões políticas, sociais e económicas) — está pressionado pela necessidade de inverter a tendência.

“Outro aspeto importante é o surgimento de vários movimentos sociais envolvidos ativamente no processo eleitoral” continua o iraniano. “Entre eles estão a oposição iraniana e antigos grupos reformistas que se recusam a apoiar as eleições, defendendo uma posição de ‘Não às eleições manipuladas’ e expressando relutância em conceder legitimidade ao atual regime através do voto. Já os apoiantes do regime defendem a participação eleitoral sob a bandeira ‘Desta vez, tudo vai mudar’”, fazendo fé que os próximos representantes parlamentares estarão comprometidos com “uma conduta transparente nas suas funções”.

No Índice de Perceção da Corrupção de 2023, o Irão surge na posição 149, numa lista de 180 países.

A 18 de fevereiro, o Líder Supremo do Irão, o ayatollah Ali Khamenei, de 84 anos, fez um apelo ao voto com laivos de desespero, colocando a ênfase mais na participação do que no sentido do voto. Disse então:

Todos devem participar nas eleições. As eleições são o principal pilar da República Islâmica. As eleições são a forma de reformar o país. Aqueles que querem resolver os problemas e repará-los devem recorrer às eleições. O caminho certo são as eleições. A principal prioridade é a participação do povo. A escolha das pessoas certas é secundária.”

Mas enquanto o líder religioso suplica para que os iranianos votem, por todo o país há ações de boicote ao ato eleitoral como, por exemplo, cartazes de campanha queimados. Em declarações ao Expresso, fontes da oposição iraniana no exílio dizem-se cientes que “estas eleições são vitais para que o regime recupere legitimidade”. Mas “a verdade é que o povo iraniano como um todo não acredita mais nas eleições fraudulentas deste regime”.

Conscientes que a legitimidade que o sistema político iraniano procura depende em muito da taxa de afluência às urnas, esta semana, 275 personalidades iranianas das áreas política, social e cultural uniram-se num apelo público ao boicote a este escrutínio que consideram ser “encenado”.

Na mira destes notáveis — um deles Morteza Alviri, um antigo presidente da Câmara Municipal de Teerão e embaixador em Espanha — está, designadamente, a quantidade de candidaturas desqualificadas pelo Conselho dos Guardiães.

Ainda assim, após três meses de análise às qualificações dos candidatos, este órgão composto por seis teólogos e seis juristas (que exercem mandatos de oito anos) viabilizou mais de 15.200 nomes para disputar as eleições legislativas. Entre os candidatos, há 1713 mulheres, mais do dobro das 819 que se apresentaram a votos em 2020.

Uma complexa pirâmide de poder

A estrutura de poder da República Islâmica é constituída por um emaranhado de órgãos eleitos por sufrágio direto universal e outros nomeados que têm no topo dessa cadeia de decisão o Líder Supremo. Para além do Parlamento e da Assembleia de Peritos, também o Presidente é escolhido por voto popular.

Esta sexta-feira, serão escolhidos os 290 deputados e deputadas do Parlamento (formalmente designado Assembleia consultiva Islâmica), com idades entre os 30 e os 75 anos de idade, para mandatos de quatro anos. Cinco assentos estão reservados a representantes de minorias.

Concorrem dezenas de partidos políticos, mas na dinâmica política quotidiana, o sistema movimenta-se em função de outras sensibilidades: conservadores versus reformistas.

“Apesar da multiplicidade de partidos, o sistema político no Irão funciona ao estilo de coligações, com os partidos a alinharem-se sob as bandeiras abrangentes dos reformistas, moderados ou conservadores, a fim de garantir uma maioria no Parlamento”, explica Eslami.

“Estes três principais movimentos políticos no Irão representam diferentes ideologias e crenças: os reformistas pressionam por reformas sociais e políticas, os moderados defendem uma abordagem mais pragmática da governação e os conservadores os valores e princípios tradicionais. Este processo de construção de coligações destaca a importância da cooperação e do compromisso no sistema político iraniano.”

Também a eleição para a Assembleia de Peritos encerra um alto grau de complexidade. “Para serem elegíveis, os candidatos devem possuir qualificações específicas a nível religioso, político e da jurisprudência. Devem ter uma compreensão profunda dos ensinamentos e princípios islâmicos, bem como experiência em jurisprudência islâmica. Devem também ter uma sólida experiência política e ser capazes de navegar pelas complexidades do sistema político iraniano. O número de candidatos que conseguem reunir estas qualificações e, portanto, inscrever-se como candidatos é muito baixo”, conclui Eslami.

“Durante este processo de seleção, mais de metade dos candidatos são normalmente desqualificados, limitando ainda mais o número de indivíduos que podem concorrer a um lugar na Assembleia de Peritos. Como resultado, é comum que haja apenas dois ou três candidatos a competir por cada vaga, tornando o processo eleitoral altamente competitivo e exclusivo.”

Um nome que, este ano, não passou no crivo do Conselho dos Guardiães, suscitando indignação entre os reformistas, foi Hassan Rohani, que foi Presidente do Irão entre 2013 e 2021 e que era membro da Assembleia de Peritos desde o ano 2000.

Rohani exerceu a presidência com o rótulo de moderado tendo sido responsável pela assinatura do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, a 14 de julho de 2015, que contribuiu para retirar a República Islâmica do isolamento internacional e aliviar as dificuldades económicas do povo ao garantir o levantamento de sanções internacionais.

Rohani foi sucedido na presidência pelo conservador Ebrahim Raisi, que virou o Irão para oriente, designadamente na direção da Rússia.

(IMAGEM PARLIAMENTARY UNION OF THE OIC MEMBER STATES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de fevereiro de 2024 e no “Expresso”, a 1 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

Nas prisões de Israel há milhares de palestinianos à espera de serem usados como moeda de troca

O ataque do Hamas a Israel fez aumentar o número de detenções de palestinianos. Nas prisões israelitas, há atualmente cerca de 9000 pessoas oriundas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, umas condenadas a prisão perpétua, outras em vias de julgamento, muitas sem qualquer acusação. O prisioneiro mais famoso é Marwan Barghouti, a quem chamam “o Mandela palestiniano” e que o Hamas quer ver sair em liberdade. Quem também passou pelas prisões israelitas foi Yahya Sinwar, o líder do Hamas que hoje é o homem mais procurado por Israel

Paris, Cairo, Doha… Nas últimas semanas, estas capitais têm acolhido conversações com vista a uma pausa nos combates entre Israel e o Hamas. A confirmar-se, será a segunda em quase cinco meses. Em novembro, uma trégua de sete dias possibilitou a libertação de 105 reféns (81 dos quais israelitas), levados para dentro da Faixa de Gaza a 7 de outubro, durante o ataque do Hamas — restam ainda 134 no território palestiniano. Por seu lado, Israel abriu as portas das suas prisões a 240 palestinianos, 107 dos quais menores.

“A questão palestiniana sempre girou em torno das negociações para a libertação de prisioneiros detidos em prisões israelitas, e muito frequentemente em regime de detenção administrativa, o que significa ficarem detidos por tempo ilimitado sem acusação nem julgamento”, explica ao Expresso Giulia Daniele, professora no Instituto Universitário de Lisboa, do ISCTE. “Esta margem de negociação aumentou ainda mais desde 2006, após a vitória do Hamas nas eleições legislativas palestinianas.”

A 25 de junho de 2006, exatamente cinco meses após o escrutínio palestiniano, o rapto de um soldado israelita, no complexo posto fronteiriço de Kerem Shalom — entre Israel, o Egito e a Faixa de Gaza — daria origem à troca de prisioneiros mais desproporcional de sempre envolvendo Israel e, do outro lado, o Hamas ou o Hezbollah libanês.

A 11 de outubro de 2011, para receber de volta o soldado Gilad Shalit, Israel aceitou libertar 1027 prisioneiros palestinianos. Do grupo fazia parte Yahya Sinwar, o líder do Hamas que Israel pensa ter sido o ‘cérebro’ do ataque de 7 de outubro e que procura a todo o custo. Recentemente, as Forças de Defesa de Israel divulgaram um vídeo, referente aos primeiros dias da guerra, onde Yahya Sinwar é identificado no interior de um túnel.

“Benjamin Netanyahu pagou caro a libertação de Gilad Shalit ao ter de libertar mais de 1000 presos palestinianos”, comenta a investigadora, “mas ganhou em termos de consenso nacional. De seguida, tomou a decisão de assassinar Ahmed al-Ja’bari, o comandante operacional das Brigadas Izz ad-Din al-Qassam”, que raramente aparecia em público e socorria-se de estafetas para comunicar com outros dirigentes do Hamas.

O homem foi morto a 14 de novembro de 2012, numa rua da cidade de Gaza, atingido por um drone israelita. Esta execução “aumentou ainda mais o consenso em torno de Netanyahu que estava a perder o apoio do seu eleitorado por questões de política interna”. No mês anterior, o Parlamento de Israel votara a sua dissolução após falhar a aprovação do orçamento para o ano seguinte.

Pintura de glorificação à fuga de seis palestinianos da prisão israelita de Gilboa, a 6 de setembro de 2021, através de um túnel escavado com uma colher MAJDI FATHI / NURPHOTO / GETTY IMAGES

Quando foi libertado, Yahya Sinwar cumpria quatro penas de prisão perpétua. Israel cedeu em nome de um interesse maior. É o que pode acontecer com milhares de palestinianos que, de forma recorrente, são presos, mantidos nas prisões de Israel — alguns sem condenação ou até acusação — e pontualmente usados como moeda de troca.

Quer a organização palestiniana Addameer, quer a organização de defesa dos direitos humanos israelita HaMoked contabilizam atualmente cerca de 9000 prisioneiros palestinianos nas cadeias israelitas. Quase 3500 não estão acusados de qualquer crime.

O número total aumentou significativamente desde 7 de outubro, na sequência da detenção de palestinianos de Gaza envolvidos no ataque e, sobretudo, de habitantes da Cisjordânia ocupada, onde Israel aplica a lei militar à população palestiniana e o direito civil aos seus colonos.

Desde 7 de outubro, organizações de direitos humanos têm também dado conta do agravamento das condições de detenção dos palestinianos, que passa por “rusgas violentas, transferências retaliatórias entre prisões e isolamento de prisioneiros, menos acesso a água corrente e pão e menos visitas de familiares”, enumerou a organização internacional Human Rights Watch, em finais de novembro.

No sábado, a agência palestiniana Wafa noticiou a morte de um palestiniano, na prisão israelita de Ramla. Izz al-Din Ziyad el-Banna, de 40 anos, vivia em Gaza, onde foi detido pelas forças israelitas há dois meses. Sofria de hemiplegia e, segundo a Wafa, “foi submetido a tortura após a sua detenção, o que provocou uma grave deterioração do seu estado de saúde”.

Israel rebate as acusações de maus tratos e de condições desumanas reservadas aos prisioneiros palestinianos dando como exemplo a experiência do próprio Yahya Sinwar. Quando esteve preso, o líder do Hamas foi submetido a uma cirurgia, realizada por médicos israelitas, para remoção de um tumor no cérebro.

O destino dos prisioneiros palestinianos está omnipresente no quotidiano de quem vive na Cisjordânia e na Faixa de Gaza MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES

Dos atuais 9000 prisioneiros palestinianos, o maior grupo — quase 3500 — está em regime de detenção administrativa. Isso significa que não só nunca foram julgados como não estão acusados de qualquer crime. Os períodos de detenção vão sendo renovados indefinidamente, com base em informação secreta que não chega ao conhecimento do detido.

Os prisioneiros podem ficar nesta situação durante meses ou anos. Para Israel, a detenção administrativa é uma arma que enche as prisões de palestinianos que, mais cedo ou mais tarde, podem ser usados no combate político.

Em junho de 2021, três organizações palestinianas — o Clube dos Prisioneiros da Sociedade Palestiniana, a Comissão para os Assuntos dos Detidos e Ex-Detidos e o Conselho Superior dos Prisioneiros — anunciaram terem documentados mais de um milhão de palestinianos detidos por Israel desde 1967, quando começou a ocupação da Palestina. Para a ONU, o número é credível.

A arma da greve de fome

As práticas de detenção abusivas têm suscitado reações por parte dos próprios prisioneiros. “Um instrumento muito importante e representativo utilizado pelos presos é a greve de fome, individual ou coletiva, que já envolveu dezenas de representantes de partidos políticos palestinianos, nas últimas décadas”, recorda a investigadora.

A última ação coletiva começou a 18 de agosto passado. Mais de 1000 presos deixaram de comer em protesto contra rusgas contínuas aos seus quartos, em várias prisões, com uso excessivo de força. Havia também queixas relativas às visitas de familiares e aos períodos na solitária.

Hisham Abu Hawash foi protagonista numa das ações da ‘batalha dos estômagos vazios’, como são genericamente conhecidas as campanhas de greve de fome dos palestinianos. Este membro da Jihad Islâmica Palestiniana, natural da aldeia de Dura, perto de Hebron (Cisjordânia), foi libertado a 4 de janeiro de 2022, após 141 dias sem comer, o que o definhou até aos 38 kg. Hawash tinha 40 anos e estava em regime de detenção administrativa havia 15 meses. Oito meses após ser libertado, voltou a ser preso.

O caso de Hisham Abu Hawash foi imortalizado num mural na cidade de Gaza MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES

Giulia Daniele realça o compromisso político dos presos que se manifesta mesmo atrás das grades. “Até agora, o diálogo entre Hamas e Fatah foi possível quase exclusivamente graças aos presos políticos.”

Em 2006, após a vitória do Hamas — numas eleições em que alguns deputados eleitos estavam na cadeia —, “os presos políticos foram capazes de pôr de lado as rivalidades entre fações, em particular entre o Hamas [islamita] e a Fatah [secular]”, diz.

“O debate — que continua, ainda hoje, nas prisões israelitas entre presos palestinianos — demonstra que todos os partidos se envolveram numa reflexão alargada que contemplou as divisões entre eles, mas, ao mesmo tempo, a necessidade de encontrar uma unidade nacional como base da resistência contra o ocupante israelita.”

Essa discussão tornou possível, no primeiro semestre de 2006, a formação de dois governos palestinianos integrados por Hamas e Fatah, o segundo dos quais de “unidade nacional”.

“Depois de um período de fortes tensões e conflitos intrapalestinianos, começou-se a falar da possibilidade de união graças aos presos políticos e aos documentos de reconciliação nacional assinados por líderes dos diferentes partidos. Em várias ocasiões, esses documentos tiveram como primeira assinatura a de Marwan Barghouti.”

O Mandela palestiniano

Chamado de “Mandela palestiniano”, Marwan Barghouti — nascido em 1962, na aldeia de Kobar (arredores de Ramallah, na Cisjordânia) — foi preso e condenado por um tribunal militar israelita a cinco penas de prisão perpétuas, em 2002, estavam as ruas palestinianas tomadas pela Intifada Al-Aqsa, a segunda revolta palestiniana. Barghouti foi condenado por orquestrar ataques contra israelitas.

A partir da prisão, contribuiu para a redação do Documento de Conciliação Nacional dos Prisioneiros, de 2006, assinando-o em representação da Fatah. Mais recentemente, em abril de 2017, Barghouti liderou uma greve de fome em grande escala contra “o sistema ilegal de prisões arbitrárias em massa e maus-tratos de prisioneiros palestinianos em Israel”, explicou num artigo de opinião publicado no jornal norte-americano “The New York Times”.

“Liberdade para Barghouti”, pede-se neste mural em Ramallah, onde Marwan surge ao lado de Yasser Arafat, o líder histórico dos palestinianos AHMAD GHARABLI / AFP / GETTY IMAGES

“Marwan Barghouti é chamado também de ‘o preso excelente’ porque continua a ser, desde a morte de Yasser Arafat [o líder histórico dos palestinianos], em 2004, um dos líderes mais populares, apesar de ter sido condenado a cinco penas de prisão perpétua. É considerado por muitos palestinianos o único capaz de restabelecer a legitimidade da Autoridade Nacional Palestiniana e de assumir as principais prioridades do povo palestiniano num futuro governo nacional”, diz a professora do Instituto Universitário de Lisboa. “Outro ponto a seu favor é a capacidade de realização de uma possível unidade do movimento nacional palestiniano, fragmentado durante muito tempo.”

Barghouti é imensamente popular na Cisjordânia, já não tanto na Faixa de Gaza. Mas o Hamas, que controla Gaza, sempre declarou que a sua libertação é uma prioridade, no âmbito de um acordo de troca de prisioneiros com Israel. Nas atuais negociações com vista a um cessar-fogo, Marwan Barghouti, da rival Fatah, é um dos prisioneiros palestinianos que o Hamas quer ver sair em liberdade.

Giulia Daniele tem dúvidas que isso vá acontecer. “Ele é um dos principais inimigos de Israel, que o considera uma figura de destaque do terrorismo palestiniano”, conclui. “Parece-me muito improvável, senão impossível, que o nome dele possa aparecer numa futura lista de troca de presos palestinianos por reféns israelitas. Isso significaria criar a base para uma unidade nacional palestiniana e, dessa forma, fragilizar um dos principais objetivos da estratégia israelita — dividir a sociedade e a representação política palestiniana (Fatah e Hamas) entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.”

(FOTO PRINCIPAL Nos territórios palestinianos, há murais de homenagem aos palestinianos detidos em prisões de Israel MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Morte, fome e destruição: Gaza é uma tragédia a céu aberto

Responsáveis de organizações humanitárias internacionais com equipas na Faixa de Gaza relatam um horror sem fim naquele território palestiniano. E acusam Israel de obstrução deliberada dos esforços de assistência à população. “As consequências de um assalto total a Rafah são inimagináveis”, alerta Avril Benoit, diretora-executiva dos Médicos Sem Fronteiras

“Moramos numa tenda de 15 metros quadrados. Obtemos água todos os dias, vamos encher garrafões a 500 metros de distância. Fazemos pão, porque nas padarias não há. Há carne, outros tipos de alimentos e enlatados que vêm da ajuda internacional”, conta o palestiniano Ahmed numa mensagem enviada ao Expresso. “Os legumes são escassos e ridiculamente caros. Cozinhamos no fogo por falta de gás. A eletricidade está cortada, claro. Há grande aglomeração de pessoas na cidade, muito lixo acumulado. Toda a gente está desempregada.”

Antes da guerra, Ahmed vivia num apartamento na cidade de Gaza. Os bombardeamentos israelitas deixaram-no ao deus-dará, com a mulher e duas crianças. Agora vive num acampamento em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, onde estão refugiadas 1,5 milhões de pessoas.

Rafah está em contagem decrescente para o início de uma grande ofensiva terrestre com que Israel espera deitar mão a Yahya Sinwar, o líder do Hamas. “As consequências de um assalto total a Rafah são inimagináveis”, alerta Avril Benoit, diretora-executiva dos Médicos Sem Fronteiras (MSF). “Uma das nossas médicas em Rafah disse que está a escrever os nomes dos filhos nos braços e pernas deles, para serem identificados se forem mortos.”

Benoit, que participou numa conferência de imprensa virtual com representantes de organizações humanitárias presentes em Gaza, a que o Expresso assistiu, denuncia “os ataques repetidos e persistentes contra unidades de saúde” e descreve um filme de terror: profissionais de saúde mortos em bombardeamentos, pacientes que se recusam a sair dos hospitais com medo de serem mortos por snipers, outros em suporte vital que morrem devido a cortes na eletricidade, bancos de sangue vazios, cirurgias sem anestesia, reutilização de compressas, feridos com infeções graves. “Colegas em Gaza disseram que viram bebés cujas pernas tiveram de ser amputadas antes de aprenderem a andar.”

As regras da guerra

Jeremy Konyndyk, presidente da Refugees International, culpa Israel pela “ausência de qualquer processo humanitário de deconfliction”, prática normalizada, mas inexistente nesta guerra. “Muitas vezes, estabelece-se um canal de comunicação, facilitado pela ONU, entre os operadores humanitários e os militares que conduzem hostilidades em determinada área, para que as partes se vejam e os militares saibam onde estão as instalações humanitárias, quais são os movimentos das equipas, e evitem atingi-los.” Israel respeitou esta prática em 2006, na guerra com o Hezbollah.“Toda a negação de acesso à ajuda humanitária é um caminho muito rápido para a fome”, diz Konyndyk. “Se não houver uma operação humanitária significativa e autorizada a operar sem restrições em todo o território, a fome ocorrerá não devido a fenómenos naturais, mas pela forma como esta guerra está a ser conduzida e pelas recusas persistentes e intencionais do Governo israelita de dar acesso à assistência.”

Sally Abi Khalil, da Oxfam, cita relatos de pessoas que se viram forçadas a comer ração para animais, e de mulheres que não conseguem produzir leite materno. “O uso que Israel faz da fome como arma de guerra tem sido incrivelmente eficaz. Os palestinianos estão à beira da fome.”

Terça-feira, o Programa Alimentar Mundial suspendeu a distribuição de ajuda no norte da Faixa, depois de os seus camiões terem sido pilhados por gente desesperada.

A contas com a justiça

A 26 de janeiro, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ordenou a Israel que tome “medidas imediatas e eficazes para permitir a prestação de serviços básicos e assistência humanitária” a quem está urgentemente necessitado”. Dia 26, Israel será chamado a reportar de que forma tem correspondido.

Florence Rigal, presidente dos Médicos do Mundo (MdM), defende que não só o Governo de Israel não parou com os bombardeamentos indiscriminados como a ajuda humanitária não aumentou. “A nossa capacidade de atuação em Gaza enquanto organização médica humanitária é muito baixa.”

Um obstáculo é a dificuldade em fazer entrar ajuda no território, apesar de dezenas de camiões com comida, água e medicamentos estarem parados na fronteira com o Egito. Outro é a impossibilidade de fazer circular a ajuda dentro da Faixa de Gaza. “Bombardeamentos e atiradores furtivos põem todas as atividades em risco”, diz. Há duas semanas, a sede dos MdM foi destruída.

(FOTO Destruição na área de El-Remal, na Faixa de Gaza, A 9 de outubro de 2023, após bombardeamentos de Israel WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de fevereiro de 2024, e no “Expresso”, a 23 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Líder do Hezbollah diz que morte de civis é “linha vermelha” e que Israel “pagará com sangue” cada mulher e criança mortos

Hassan Nasrallah acusou Israel, esta sexta-feira, de matar civis “de forma deliberada” no sul do Líbano. Num discurso de homenagem a três figuras do Hezbollah “martirizadas” por agentes “sionistas”, o chefe do grupo xiita libanês defendeu que a posição dos Estados Unidos relativamente à guerra na Faixa de Gaza é “a maior hipocrisia que o mundo hoje testemunha”

Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah WIKIMEDIA COMMONS

O Hezbollah assinalou, esta sexta-feira, o aniversário do “martírio” de três altos responsáveis, todos assassinados por Israel. A ocasião foi aproveitada pelo líder do grupo radical islâmico, Hassan Nasrallah, para recordar que o “inimigo sionista” continua a ser um alvo.

“O nosso objetivo é impor ao inimigo as maiores perdas materiais e humanas possíveis, obrigando-o a admitir a derrota e a retirar-se”, disse o secretário-geral da organização xiita libanesa, num discurso transmitido pela televisão do grupo, Al-Manar. A sua intervenção coincidiu com uma escalada na fronteira entre Israel e o Líbano, que viveu o seu dia mais sangrento na quarta-feira, com onze civis mortos, incluindo cinco crianças, provocados por bombardeamentos israelitas.

Mortes civis são “linha vermelha”

Nasrallah defendeu que Telavive poderia ter evitado matar civis, qualificou o massacre como ato “deliberado” e fez um aviso: “Não toleramos absolutamente nenhum dano aos civis e é imperativo que o inimigo perceba que ultrapassou a linha vermelha a este respeito”, disse. “Quando se trata de vítimas civis, esta questão é particularmente sensível e está presente desde o início da resistência.”

“O inimigo pagará com sangue” por cada mulher e criança morta nas hostilidades ao longo da fronteira, promete Nasrallah. “A resistência libanesa possui mísseis poderosos e precisos que permitem um alcance desde Kiryat Shmona [no norte de Israel] até Eilat”, na costa israelita do Mar Vermelho, no sul.

Desde o início da guerra entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza, que dura há mais de quatro meses, a fronteira israelo-libanea tem sido uma frente paralela, com vítimas ocasionais dos dois lados. No dia seguinte à chacina, o Hezbollah disparou dezenas de foguetes contra Kiryat Shmona, no que considerou ser “uma resposta preliminar”.

Hipocrisia americana

O secretário-geral do Hezbollah não isentou de responsabilidades os Estados Unidos, o grande aliado de Israel, no banho de sangue que se vive em Gaza. “A Administração americana é responsável por cada gota de sangue derramada na região”, disse. “Os fundos, armas, mísseis e projéteis de artilharia israelitas vêm atualmente de Washington. Se os Estados Unidos interromperem a ponte aérea para Israel, a agressão contra Gaza cessará.”

“A maior hipocrisia que o mundo hoje testemunha é a posição da Administração americana sobre os acontecimentos em Gaza.”

Nasrallah defendeu que perante os “esquemas americanos e sionistas” na região, só restam duas opções: “a resistência ou a rendição”. E fez a sua escolha: “Em memória dos nossos líderes martirizados, reafirmamos a eficácia da resistência popular como uma opção viável.”

Quem são os três mártires?

Os “mártires” homenageados por Nasrallah, nesta intervenção, foram todos mortos por Israel, na mesma semana, em anos diferentes. O clérigo xiita Ragheb Harb, um dos fundadores do Hezbollah, foi assassinado por libaneses colaboradores de Israel, a 16 de fevereiro de 1984.

O antigo secretário-geral do Hezbollah Abbas al-Mousawi foi morto, com a mulher e um filho, num ataque aéreo israelita contra a escolta em que seguia, a caminho de uma cerimónia de aniversário da morte de Ragheb Harb, a 16 de fevereiro de 1992. E o comandante militar Imad Moghniyeh foi abatido a 12 de fevereiro de 2008, após um ataque com um carro armadilhado atribuído aos serviços secretos israelitas (Mossad).

Todas estas mortes justificam o propósito maior de Nasrallah no combate a que se propõe. “Hoje, em Gaza, na Cisjordânia, no sul do Líbano, no Iémen, na Síria, no Irão e em toda a região, nunca devemos perder de vista a verdade sobre os custos da resistência e os custos da rendição”, concluiu. “O custo da rendição é elevado, perigoso, excessivamente alto e extremamente importante. A rendição no Líbano implicaria o domínio político e económico israelita sobre a nossa nação.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Ataques terroristas voltam a aumentar em Moçambique: “A acalmia nos combates não foi uma vitória, talvez uma pausa estratégica”

A insurgência jiadista em Cabo Delgado dura há mais de seis anos. Nos últimos meses, uma descida consistente da quantidade de ataques fazia prever o fim da ameaça e o regresso à normalidade daquela província no norte de Moçambique. “Houve um otimismo talvez um pouco exagerado. Agora, em janeiro, fomos surpreendidos”, alerta o historiador Eric Morier-Genoud, autor de um livro que aborda as origens do problema

Eric Morier-Genoud, fotografado em Lisboa NUNO FOX

A 3 de janeiro passado, ainda o mundo recuperava da folia própria da entrada num novo ano, um duplo ataque suicida na cidade iraniana de Kerman recentrou a Humanidade nas angústias do dia-a-dia. Esses atentados, que provocaram 94 mortos, fizeram temer o alastramento da guerra na Faixa de Gaza a todo o Médio Oriente pelo duro golpe infligido ao Irão.

O banho de sangue em Kerman foi reivindicado pelo autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh, no acrónimo árabe), a organização terrorista que o Irão ajudou a derrotar no Iraque e na Síria e que se julgava quase inativa, após meses de declínio consistente do número de ataques.

No dia seguinte à chacina, o Daesh içou a bandeira da jihad (guerra santa) e, numa mensagem áudio divulgada na Internet, o seu porta-voz, Abu Hudhayfah al-Ansari, anunciou uma nova campanha global de terror jiadista intitulada “Matem-nos onde quer que os encontrem”. Os “soldados” do Daesh foram instados a “procurar alvos fáceis antes dos difíceis, alvos civis antes dos militares” e a “alvejar judeus, cruzados [cristãos] e os seus aliados criminosos em todos os lugares da Terra e sob todos os céus”.

O anúncio teve repercussões nas semanas seguintes, em especial na África Subsariana, onde está ativa uma constelação de grupos armados leais ao Daesh.

Na República Democrática do Congo, no espaço de uma semana, os jiadistas da Província da África Central do Estado Islâmico (ISCAP, na sigla inglesa) atacaram aldeias cristãs e decapitaram 50 pessoas. No nordeste do Mali, o braço Província do Sahel do Estado Islâmico (ISSP), que se movimenta em áreas muçulmanas, atacou forças governamentais e uma milícia tuaregue rival.

No passado fim de semana, na Nigéria, a célula designada Província da África Ocidental do Estado Islâmico (ISWAP) investiu contra uma sede da polícia, no estado de Borno, matando quatro agentes.

“Viagem de pregação”

Uma quarta frente subsariana deste ressurgimento jiadista é Moçambique. A 29 de janeiro, o Daesh anunciou uma “viagem de pregação” pelo norte deste país lusófono, após acusar o Exército moçambicano de realizar “massacres contra muçulmanos” na província de Cabo Delgado, de maioria muçulmana, uma das mais pobres e distanciadas da capital, Maputo.

Os alvos do Daesh são posições de tropas governamentais, postos administrativos e, não raras vezes, as populações civis. Há notícias de mortes violentas, raptos, saques, destruição e invasões de propriedades agrícolas. “Há relatos de mortos, alguns decapitados, e de populações em pânico e em fuga”, partilhou, a 2 de fevereiro, a Fundação Ajuda À Igreja que Sofre, após receber testemunhos de missionários católicos em Cabo Delgado.

“No último trimestre do ano passado, houve pouquíssimos ataques por parte dos rebeldes e começou a desenvolver-se a ideia de que a insurgência estava na reta final. Em janeiro, surgiram muitos ataques contra bases militares do Governo. Foi uma surpresa geral porque, durante três meses, houve uma acalmia e parecia que as coisas estavam a resolver-se. Agora, os ataques estão a intensificar-se”, comenta ao Expresso Eric Morier-Genoud, autor do livro “Towards Jihad? — Muslims and Politics in Postcolonial Mozambique” [A caminho da Jihad? – Muçulmanos e Políticas em Moçambique Pós-Colonial] (2023, não traduzido na língua portuguesa).

Paralelamente às ações armadas, o Daesh “desenvolveu uma campanha mediática muito forte, com declarações e divulgação de fotografias e vídeos dos ataques”, acrescentou o investigador da Universidade Queen’s de Belfast (Irlanda do Norte). “Começou a surgir a impressão de que havia muita coisa a acontecer, mais do que acontecia na realidade.”

O recrudescimento do terrorismo no norte de Moçambique arrasa a esperança de normalização e estabilidade que tinha começado a instalar-se no país. “Houve um otimismo talvez um pouco exagerado. Agora, em janeiro, fomos surpreendidos. Afinal, a acalmia nos combates não foi uma vitória, talvez uma pausa estratégica.”

Esse otimismo foi, em parte, também potenciado pelo anúncio da Total Energies, a gigante francesa do sector da energia, de que planeia retomar o desenvolvimento do seu projeto de exploração de gás natural liquefeito no norte de Moçambique no primeiro trimestre de 2024. A operar no país desde 1991, a Total suspendeu as atividades em Cabo Delgado em abril de 2021 devido à ofensiva jiadista na região.

“Os insurgentes não têm meios para desenvolver este tipo de estruturas [económicas]. Não penso que tenham em mente controlá-las”, avalia o professor Genoud. “Para eles, é mais um meio de fazerem publicidade e dizerem à população que há desigualdade, que as gentes locais não recebem nada enquanto se desenvolvem grandes projetos e que têm de seguir outra lei, que não a do Governo atual, para poderem ser uma sociedade mais justa.”

As preocupações do Presidente

Nas últimas semanas, o Presidente moçambicano tem abordado com grande frequência a situação no norte do país. “O momento não é dos melhores, não porque o nosso trabalho não esteja bem, mas porque em todas as guerras — refiro-me agora ao combate ao terrorismo — há momentos altos e momentos baixos, mas também há momentos em que o inimigo se reestrutura, e é o que está a acontecer agora. Estão a movimentar-se muito”, disse Filipe Nyusi, a 26 de janeiro, citado pelo jornal moçambicano “O País”.

“O modus operandi dos terroristas nos últimos dias tem exigido fortes medidas de vigilância”, afirmou o chefe de Estado, a 2 de fevereiro, durante uma receção ao corpo diplomático, no Palácio da Ponta Vermelha, em Maputo.

“Queremos apelar à nossa resiliência coletiva, para suster as investidas dos terroristas. Aos jovens, apelamos para não aderirem ao recrutamento e a reportarem qualquer movimento estranho que possa condicionar a segurança das comunidades”, disse no dia seguinte, numa intervenção por ocasião do Dia dos Heróis Moçambicanos.

A insurgência jiadista em Cabo Delgado fez-se anunciar ao mundo a 5 de outubro de 2017, quando homens munidos com facas, machetes e armas de fogo atacaram três postos da polícia na cidade de Mocímboa da Praia, aos gritos de “Allahu Akbar” (Deus é Grande).

Este episódio é descrito nas suas múltiplas vertentes — quem o fez, como e com que objetivo — no livro “Towards Jihad? — Muslims and Politics in Postcolonial Mozambique”, uma investigação histórica sobre a relação entre “a mesquita e o Estado” desde a independência de Moçambique, em 1975, e que aborda também as origens da ameaça jiadista.

Publicada em 2023, a obra procura responder à pergunta: será que as opções políticas relativamente aos muçulmanos moçambicanos — primeiro adotadas pelo poder colonial português, de matriz católica, e depois pela Frelimo, o partido de orientação marxista-leninista que sempre governou o país — empurraram a comunidade na direção da violência?

“A jihad não é um desenvolvimento natural do Islão em Moçambique”, responde Morier-Genoud. “A insurgência podia muito bem não ter acontecido, não há nenhuma inevitabilidade em relação ao que aconteceu. Nesse sentido, penso que o processo pode inverter-se até à renúncia da violência. A esmagadora maioria dos muçulmanos de Moçambique não quer a sharia total nem um califado, nem aceita a violência como forma de atingir esses objetivos.”

“A ideia de que houve uma radicalização por parte dos muçulmanos moçambicanos é errada”

Mais de seis anos após o seu início, a rebelião jiadista já provocou quase 5000 mortos e um milhão de deslocados. Hoje, os terroristas atuam ao estilo de uma guerrilha clássica, com uma circulação de combatentes extremistas através da fronteira com a Tanzânia. Porém, refere o especialista, “a base dos insurgentes está em Moçambique e a maioria da liderança e dos combatentes são moçambicanos”.

Desde julho de 2021, uma força militar africana — formada por efetivos de oito países da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), que compõem a Missão da SADC em Moçambique (SAMIM), e um contingente de cerca de 3000 soldados do Ruanda — apoia Moçambique no “combate ao terrorismo e aos atos de extremismo violento” em Cabo Delgado, como consta do seu mandato.

“Essa intervenção regional teve um impacto muito grande”, comenta o historiador. “Conseguiu-se reduzir o número de combatentes em 90%, comparativamente aos que existiam em finais de 2020. Também foi possível reduzir a área de atuação dos insurgentes. Nesse sentido, é um sucesso. O problema é o passo seguinte… já foi anunciado que a SADC vai retirar-se de Moçambique a partir de julho. Há preocupações que foram expressas, inclusive, pelo Presidente da República. É uma transição e, como em qualquer transição, há riscos.”

A 14 de dezembro passado, o Parlamento moçambicano aprovou o aumento do serviço militar obrigatório de dois para cinco anos, medida que configura uma resposta direta à necessidade de reforçar a capacidade de combate do país. A mobilização de reservistas é outra possibilidade sugerida pelo chefe de Estado para fazer face à retirada dos militares da SAMIM, a partir de julho próximo.

Em paralelo, na sequência de um pedido de ajuda dirigido por Maputo à União Europeia, a 3 de novembro de 2021, foi lançada a Missão de Formação Militar da UE (EUTM, sigla inglesa), visando o treino de tropas especiais moçambicanas no combate ao terrorismo. Portugal participa com militares e assegura o comando da força.

Ao contrário da Missão da SADC, as tropas ruandesas irão continuar em Moçambique. Além da perseguição aos extremistas, estes efetivos têm adotado uma postura de grande proximidade às populações. Protegem cidades, reabrem estradas e participam na construção de obras públicas, como poços.

Este patrulhamento de proximidade, que possibilitou o regresso a casa de populações que tinham fugido dos ataques, granjeou-lhes prestígio e aprovação junto das populações. “Os ruandeses parecem ser as tropas mais eficientes”, avalia Morier-Genoud. “Falam suaíli [língua predominante no extremo norte de Moçambique], têm ótimas relações com a população e tiveram muito sucesso nas zonas onde estão.”

Califado perdido

Em 2019, o Daesh reconheceu oficialmente os Al-Shabaab moçambicanos (A Juventude, em árabe), a seita que está na origem da insurgência em Cabo Delgado, como uma das suas províncias — o Estado Islâmico de Moçambique (ISM). O juramento de fidelidade dos jiadistas moçambicanos contribuiu para internacionalizar o problema, numa altura em que o Daesh já perdera o califado que chegou a controlar em um terço da Síria e 40% do Iraque (2014-17).

“Eles querem depor o Governo tal como existe e estabelecer um Governo que siga unicamente a sharia [lei islâmica]. Uma vez que agora estão ligados ao Estado Islâmico, há todo um discurso relativo ao estabelecimento de uma província do califado mundial na zona de Cabo Delgado. Eles pedem à população que siga o Alcorão e que não interaja com o governo secular, militares e polícia.”

A presença jiadista em Moçambique distorce a imagem da comunidade muçulmana no país, aproximadamente 20% da população total de quase 35 milhões de pessoas. “A esmagadora maioria dos muçulmanos está satisfeita com a liberdade religiosa que existe no país e com a forma como o Governo atua”, conclui Eric Morier-Genoud. “O que existe é um grupo muito pequeno — falamos de dezenas ou centenas de pessoas — que se radicalizou e quer criar uma sociedade islâmica à margem da sociedade existente.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de fevereiro de 2024, e no “Expresso”, a 16 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui