“Honraram a minha fé”, disse Khan a partir da prisão, mas não era a sua voz e isso levanta uma questão: pode a IA contornar a repressão?

Apesar de estar preso, o ex-primeiro-ministro do Paquistão Imran Khan participou na campanha para as legislativas e celebrou a vitória com um discurso para os apoiantes. Tudo graças à inteligência artificial que recriou a sua voz e colocou-o a proferir uma mensagem composta a partir de notas que Khan passou para o exterior da cadeia. “A clonagem de voz tornou-se uma ferramenta para publicidade política enganosa”, alerta ao Expresso um especialista na área da Computação e da Inteligência Aumentada. “A educação pública relativamente à existência de deepfakes e a necessidade de ser cético sobre o que se vê, lê e ouve é fundamental nesta era de conteúdos gerados por inteligência artificial”

Imran Khan vendeu caro o seu afastamento da política ativa e da vida em liberdade. Detido desde agosto e sujeito a uma catadupa de processos na justiça — orquestrados pelos militares, com motivações políticas e assentes em acusações forjadas, assim pensa ele e quem o defende —, o antigo primeiro-ministro do Paquistão viu os candidatos conotados com o seu partido ganhar a maioria dos assentos no futuro Parlamento, nas eleições de quinta-feira passada.

Com o partido de Khan dissolvido pelo Supremo Tribunal, militantes perseguidos e ele próprio desqualificado para concorrer — só nas últimas duas semanas, recebeu três penas de prisão de 10, 14 e 7 anos, por divulgação de segredos de Estado, corrupção e casamento ilegal, respetivamente —, os candidatos do Pakistan Tehreek-e-Insaf (PTI) apresentaram-se nas urnas como independentes.

Quer os entraves ao funcionamento do partido, quer as restrições adotadas pelas autoridades no dia das eleições — que decretaram um blackout nas comunicações móveis e na Internet durante o período de votação — não foram suficientes para o derrotar. Imran Khan está encarcerado, mas não o está a sua enorme popularidade, que advém dos tempos em que era uma estrela do críquete e capitaneou a seleção paquistanesa na única vez que venceu o Mundial, em 1982.

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dos 260 deputados eleitos, a 8 de fevereiro, para a Assembleia Nacional são independentes apoiados pelo PTI de Imran Khan. Será a fação maioritária no parlamento

Na hora de celebrar a vitória, foi Imran Khan “quem fez” o discurso para os seus apoiantes — não de viva voz, dado estar preso e privado de participar em atos políticos, mas com o seu timbre vocal gerado por inteligência artificial, numa demonstração de como a tecnologia pode ser usada para contornar a repressão política.

Num vídeo, uma imagem antiga de Khan surge a discursar com os movimentos labiais sincronizados com o som criado pela inteligência artificial. A mensagem foi composta a partir de notas passadas pelo próprio aos seus advogados.

“Eu tinha plena confiança de que todos vocês iriam votar. Todos vocês honraram a minha fé e a vossa participação massiva surpreendeu a todos”, disse a voz de Khan. (Abaixo a versão do discurso em língua inglesa.)

Não foi a primeira vez que o staff de Khan socorreu-se da tecnologia para combater as restrições impostas ao partido e contornar a censura noticiosa às suas iniciativas. Durante a campanha, militantes do PTI alimentaram a dinâmica eleitoral organizando comícios digitais em plataformas como o YouTube e o TikTok, com a voz de Khan gerada por inteligência artificial. Abaixo, outro exemplo.

“A equipa de redes sociais do PTI emergiu como um farol de inovação, empregando técnicas engenhosas para chegar aos cidadãos em todo o país, uma reminiscência de tigres encurralados que lutam pela sobrevivência”, reconheceu o próprio partidoA televisão árabe “Al-Jazeera” rotulou a estratégia da equipa de Imran Khan de “campanha de guerrilha”.

“Esta é, sem dúvida, uma boa utilização da clonagem de voz, dadas as circunstâncias” repressivas em torno da candidatura de Imran Khan, diz ao Expresso Subbarao Kambhampati, professor na Escola de Computação e Inteligência Aumentada, da Universidade Estatal do Arizona (EUA). Porém, “com mais frequência ouvimos e preocupamo-nos com o mau uso ou utilizações perigosas, como a utilização de vozes clonadas em anúncios políticos enganosos.”

Um exemplo recente teve como protagonista o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Nas vésperas das primárias democratas no estado do New Hampshire, que se realizaram a 23 de janeiro, uma voz criada para soar como a do candidato democrata foi usada em mensagens telefónicas gravadas destinadas a desencorajar as pessoas de irem votar.

“O seu voto faz diferença em novembro, não nesta terça-feira”, ouvia-se. Para 5 de novembro estão agendadas as eleições presidenciais. “Embora a voz na chamada automática soe como a voz do Presidente Biden, esta mensagem parece ter sido gerada artificialmente”, apurou o gabinete do procurador-geral de New Hampshire.

“A clonagem de voz tornou-se uma ferramenta para publicidade política enganosa”, alerta Subbarao Kambhampati. “Embora as autoridades se esforcem por penalizar estas práticas e por ajudar a detetá-las (por exemplo, colocando marcas de água nos meios de comunicação gerados sinteticamente), estas medidas não serão suficientes para impedir que aqueles que espalham desinformação usufruam dos dividendos das suas mentiras.”

Uma das normas de segurança recentes é o C2PA, desenvolvido por grandes empresas de tecnologia, como a Microsoft e a Adobe. Visa a criação de um protocolo universal de Internet que permita aos criadores de conteúdos adicionarem um “rótulo nutricional”, como lhe chama o prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), com informações sobre a sua origem: de onde veio e quem ou o quê o criou.

Do além para a campanha

Outro exemplo recente de uma voz clonada para fins políticos, e que parece confirmar a tendência para que 2024 sobressaia como um ano de grande desinformação eleitoral, aconteceu na Indonésia, onde, esta quarta-feira, realizam-se eleições presidenciais.

Suharto, um antigo general que governou o arquipélago indonésio com ‘mão de ferro’ durante mais de 30 anos, e que morreu em 2008, ‘ganhou vida’ num vídeo criado por inteligência artificial que clona a voz e a imagem do antigo ditador.

“O vídeo foi feito para nos lembrar da importância dos nossos votos nas próximas eleições”, disse Erwin Aksa, vice-presidente do Golkar, o partido político que promoveu o vídeo. O Golkar não apresentou um candidato presidencial próprio, mas deu apoio a Prabowo Subianto, o atual ministro da Defesa, que é genro do ditador Suharto.

Para Subbarao Kambhampati, a integração na política das ferramentas deepfake — que usam inteligência artificial para fundir, substituir ou sobrepor áudios e imagens, produzindo assim vídeos e áudios falsos — veio para ficar. “Nos próximos anos, certamente irá difundir-se mais. Depois disso, a nossa capacidade de adaptação à nova realidade — e de não confiarmos em informações que não sejam autenticadas (como, por exemplo, por jornais de confiança, tecnologia de marca de água digital ou tecnologia de autenticação criptográfica) — será alcançada e iremos aceitá-la com calma.”

Segundo o professor, à medida que as falsificações se tornem mais sofisticadas, também aumentará a nossa imunidade a elas: “Aprenderemos a não confiar nos nossos sentidos e a insistir na autenticação”.

Até lá, deixa um conselho: “A educação pública relativamente à existência de deepfakes e a necessidade de ser cético sobre o que se vê, lê e ouve é fundamental nesta era de conteúdos gerados por inteligência artificial”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Jornada eleitoral no Paquistão: eleitores votaram com comunicações suspensas e fronteiras encerradas

Os paquistaneses foram a votos num escrutínio que desafiou, em múltiplas frentes, a democracia que o país reclama. A Internet foi suspensa, as fronteiras com dois países foram encerradas, houve milhares de agentes mobilizados em nome da segurança da jornada eleitoral, mas pelo menos nove pessoas morreram em atos violentos. Tudo acontece com o político mais popular do país detido e objeto de sucessivas penas de prisão

Imran Khan, o político mais popular do Paquistão, está preso DEVIANT ART

O Paquistão realizou, esta quinta-feira, as 12.ª eleições gerais desde que se tornou um país independente, em 1947. Exatamente 128.585.760 eleitores — numa população de mais de 243 milhões — foram convocados para escolher os membros da próxima Assembleia Nacional e também das assembleias das quatro províncias — Balochistão, Khyber Pakhtunkhwa, Punjab e Sindh.

Durante mais de três décadas, o país foi governado pelos militares, mas nos últimos 16 anos, pelo menos oficialmente, o Governo tem estado nas mãos de civis, naquele que é o período ininterrupto mais longo de liderança civil. Cada ato eleitoral é, por essa razão, uma oportunidade de consolidação da democracia. Esta quinta-feira, alguns episódios expuseram um país no fio da navalha.

O político mais popular está preso

Imran Khan, de 71 anos, é uma antiga estrela do críquete — capitão da seleção paquistanesa na única vez que venceu o Mundial, em 1992 — que manteve intacta toda a sua popularidade quando decidiu entrar na política.

Foi afastado do poder em abril de 2022, no âmbito de uma moção de censura, e tem vindo a ser condenado em sucessivos processos na justiça. A última sentença foi-lhe atribuída no sábado passado: um tribunal civil considerou que o seu casamento com Bushra Bibi, celebrado em 2018, violava a lei islâmica e condenou ambos a sete anos de prisão.

Dias antes, Khan fora condenado a 10 anos, considerado culpado num caso de divulgação de segredos de Estado. Já em meados de 2023, tinha sido condenado a três anos de prisão por corrupção.

Detido na Prisão Adiala, em Rawalpindi, o líder do partido Pakistan Tehreek-e-Insaf (PTI), fundado em 1996 com o propósito de acabar com a corrupção no pais, votou por via postal.

Uma campanha de repressão visando apoiantes do PTI, nos dias que antecederam o escrutínio, avolumaram preocupações acerca do caráter livre e justo das eleições. Nos boletins de voto, onde os partidos são identificados por símbolos, o taco de críquete que identifica o PTI foi proibido.

Blackout nas comunicações

Durante o período de votação, as comunicações móveis e os serviços de dados estiveram suspensos em todo o país.

blackout teve impacto na dinâmica eleitoral, já que eleitores perderam formas de se coordenarem na ida às urnas, candidatos ficaram sem canais de comunicação com os seus representantes nas assembleias de voto, informações importantes emitidas divulgadas por SMS pela Comissão Eleitoral deixaram de estar acessíveis.

Na página da Comissão Eleitoral, a instituição disponibilizou um endereço de e-mail para os eleitores — privados de acesso à Internet — apresentarem queixas e denunciarem situações irregulares.

Estes constrangimentos levaram o PTI, de Imran Khan, a sugerir um truque: “Paquistaneses, o regime ilegítimo e fascista bloqueou os serviços de telemóvel em todo o Paquistão no dia das eleições. Vocês estão todos convidados a combater este ato covarde, removendo as passwords das vossas contas pessoais de WiFi, para que qualquer pessoa nas proximidades possa ter acesso à Internet neste dia extremamente importante”.

Violência é arma de combate político

Por todo o Paquistão, a Comissão Eleitoral estabeleceu 90.777 assembleias de voto, considerando 29.985 “sensíveis”, no que respeita às condições de segurança, e 16.766 “altamente sensíveis”, noticiou o jornal digital “Pakistan Observer”. Cerca de 44 mil foram consideradas “normais”.

Para garantir um ato eleitoral seguro, o Governo mobilizou para o efeito cerca de 650 mil agentes das forças de segurança. Ainda assim, pelo menos nove pessoas, incluindo duas crianças e seis agentes, foram mortas na sequência de ataques com granadas, explosões de bombas e tiroteios, em várias regiões do país.

Já a véspera da jornada eleitoral foi sangrenta com pelo menos 28 mortos contabilizados em dois ataques à bomba junto a sedes de candidatura, na província do Balochistão. Estes atentados foram reivindicados pelo autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh).

Duas das quatro fronteiras encerradas

Outra medida temporária, à semelhança da suspensão das comunicações, foi o encerramento das fronteiras com o Irão e o Afeganistão. O Paquistão tem fronteira também com a Índia e a China.

O Ministério do Interior justificou as restrições adotadas no dia das eleições dizendo: “Como resultado dos recentes incidentes de terrorismo no país, nos quais vidas preciosas foram perdidas, as medidas de segurança são essenciais para a manutenção da lei e da ordem e para lidar com possíveis ameaças”.

As fronteiras foram encerradas à circulação automóvel e também pedestre. Em comunicado, um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros anunciou que a normalidade nas fronteiras será retomada na sexta-feira.

Votar ainda está vedado a muitas mulheres

Entre os mais de 128 milhões de eleitores, 59 milhões são mulheres, quase metade portanto. No entanto, no universo de 5121 candidatos aos 265 assentos na Assembleia Nacional, há apenas 312 do sexo feminino. Para além dos 4807 homens, há ainda dois candidatos transgénero.

No país que se notabilizou por ter eleito, pela primeira vez em todo o mundo, a primeira mulher muçulmana para a sua liderança — a primeira-ministra Benazir Bhutto, em 1988 —, as paquistanesas continuam a esbarrar com conservadorismo social e costumes tribais.

Reportagens como esta da agência France Presse, realizada em Dhurnal, na província do Punjab, revelam que, na hora de votar, muitas mulheres são impedidas de o fazer pelos homens da família, sejam o marido, o pai, um irmão ou um filho.

“A mulher não tem autonomia para tomar decisões de forma independente”, diz uma viúva de 60 anos, mãe de sete raparigas, seis delas com formação universitária. “Falta aos homens a coragem para garantir às mulheres os seus direitos.”

Dinastia política continua a fazer escola

Um dos principais partidos a ir a votos é o Partido Popular do Paquistão (PPP), fundado em 1967 por Zulfikar Ali Bhutto, que viria a ser primeiro-ministro e Presidente do Paquistão e seria condenado à morte por enforcamento na sequência de um golpe militar.

Zulfikar era o pai de Benazir Bhutto, que foi primeira-ministra entre 1988 e 1990 e ainda entre 1993 e 1996. Benazir foi assassinada a 27 de dezembro de 2007, num ataque suicida realizado durante um comício eleitoral em Rawalpindi. À semelhança do pai, também Benazir liderou o PPP.

Atualmente, quem dirige esse partido político é Bilawal Bhutto-Zardawi, filho de Benazir e neto de Zulfikar. O seu pai, Asif Ali Zardari, foi também Presidente do Paquistão, entre 2008 e 2013.

Nascido em 1988, Bilawal desenvolveu uma campanha com ênfase nas alterações climáticas e na igualdade de género na economia. Apesar de ter uma irmã mais nova — Aseefa Bhutto-Zardari, que também já debutou na política —, é ele o descendente desta importante dinastia política paquistanesa, muito atingida pela violência política.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui