A posição dos Estados Unidos de apoio incondicional a Israel é cada vez mais insustentável entre os próprios norte-americanos. Depois de, na semana passada, o secretário de Estado Antony Blinken dizer que a ofensiva em Rafah seria “um erro”, este domingo a vice-Presidente Kamala Harris não descartou “consequências” se a investida for avante. Esta segunda-feira, a abstenção de Washington a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que exige o cessar-fogo imediato em Gaza confirma uma mudança de posição em relação a Israel
Com o mês do Ramadão a entrar na terceira semana, o Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas aprovou, esta segunda-feira, uma proposta de resolução com vista a uma trégua humanitária imediata na Faixa de Gaza, que contribua para aliviar o sofrimento da população durante o mês mais sagrado para os muçulmanos, que termina a 9 de abril.
A resolução foi proposta pelos dez membros não permanentes do CS e tinha garantido, à partida, o apoio de dois dos cinco membros permanentes — a Federação Russa e a China. A votação foi inequívoca e também surpreendente: 14 votos a favor a uma abstenção, dos Estados Unidos, que assim optaram por não aplicar o poder de veto em defesa de Israel.
O texto aprovado esta segunda-feira:
“exige um cessar-fogo imediato durante o mês do Ramadão, respeitado por todas as partes, que leve a um cessar-fogo sustentável e duradouro, e também exige a libertação imediata e incondicional de todos os reféns.”
Esta resolução segue-se a uma outra votada há três dias, proposta pelos Estados Unidos que foi vetada por Moscovo e Pequim. Essa iniciativa lançou uma nuvem sobre a relação — até agora à prova de bala — que os EUA mantêm, há décadas, com Israel. A votação desta segunda-feira confirma que Washington perdeu a paciência.
O documento redigido pelos Estados Unidos, que foi a votos na sexta-feira, determinava “o imperativo de um cessar-fogo imediato e sustentado para proteger os civis de todos os lados”. O diploma recebeu 11 votos a favor, uma abstenção e a rejeição de três membros, entre os quais a Federação Russa e a China. Por terem poder de veto, Moscovo e Pequim fizeram prevalecer a sua posição e neutralizaram a vontade da maioria que aprovou a resolução.
Nos corredores das Nações Unidas, circulava a ideia de que os Estados Unidos iam assumir uma rota de colisão com o aliado Israel e defender uma trégua nos combates. Na véspera da votação, um artigo no influente “The New York Times” realçava que a resolução continha “a linguagem mais forte que Washington usou até agora” e que era “uma aparente mudança do aliado mais próximo de Israel”.
O diabo está nos detalhes
Porém, “se lermos cuidadosamente a resolução proposta pelos Estados Unidos, ela não pede um cessar-fogo”, alerta ao Expresso Joel Beinin, professor emérito de História do Médio Oriente, na Universidade de Stanford (Califórnia, EUA).
O texto era significativamente mais forte do que diplomas anteriores apoiados pelos norte-americanos, dizia que a trégua era importante, mas ficava aquém ao não exigi-la. E, contrariamente a resoluções anteriores vetadas pelos EUA que defendiam um cessar-fogo incondicional, esta ligava diretamente um cessar-fogo à libertação dos reféns israelitas.
Da expectativa de uma posição dura em relação a Israel às críticas sobre a linguagem ambígua e complicada do texto da resolução, que mais parecia uma tentativa de agradar a todos, não ficou clara uma mudança substancial no apoio dos EUA a Israel — que a votação desta segunda-feira confirmou.
Para Joel Beinin, os Estados Unidos tiveram duas grandes motivações para apresentar esta resolução. Por um lado, “as ações israelitas em Gaza são ultrajantes”. Por outro, “a opinião pública nos EUA é favorável a um cessar-fogo, ao fornecimento de ajuda humanitária a Gaza e à libertação dos reféns. O Presidente Biden corre o risco de perder as eleições de novembro se não tiver em conta que partes importantes da base do Partido Democrata se opõem à sua política relativa à guerra em Gaza”.
Desde o ataque do Hamas de 7 de outubro, os EUA já vetaram três resoluções condenatórias de Israel. Desde a década de 1970, no Conselho de Segurança da ONU, os EUA têm sido um escudo protetor dos israelitas, tendo já usado a prerrogativa do veto 48 vezes em defesa de Israel, mais de metade das 85 vezes em que bloqueou resoluções. Isso tem valido a Washington o rótulo de cúmplice da impunidade de Israel face ao direito internacional.

A resolução apresentada na sexta-feira indiciou uma vontade de mudança em linha com o crescente incómodo vocalizado por políticos norte-americanos em face da desproporcionalidade da guerra, do “pesadelo sem fim”, como o descreveu, este fim de semana, o secretário-geral da ONU, António Guterres, que esteve na fronteira entre Gaza e o Egito, e dos planos de guerra de Telavive, que passam por uma operação em Rafah, onde estão acantonados cerca de 1,5 milhões de palestinianos.
A 14 de março, o líder da maioria democrata no Senado, Chuck Schumer, um judeu, proferiu um discurso apaixonado em que afirmou que Israel tem direito a defender-se, mas que “a forma como exerce esse direito é importante”. Schumer fez a apologia dos dois Estados como solução para o conflito, identificou a liderança do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu como parte do problema e defendeu que “novas eleições são a única forma de permitir um processo de tomada de decisão saudável e aberto sobre o futuro de Israel”.
“Israel não poderá sobreviver se se tornar um pária”, acrescentou. “O apoio a Israel diminuiu em todo o mundo nos últimos meses, e esta tendência só irá piorar se o Governo israelita continuar a seguir o seu caminho atual.”
Este domingo, a televisão norte-americana ABC divulgou uma entrevista à vice-Presidente dos EUA, Kamala Harris, que se mostrou incisiva em relação a Israel. “Temos sido claros em várias conversas e de todas as formas que qualquer grande operação militar em Rafah seria um grande erro”, defendeu. “Deixe-me dizer uma coisa: estudei os mapas. Não há lugar para aquelas pessoas irem.” A vice de Biden sugeriu mesmo que se a investida sobre Rafah for avante poderá haver “consequências” para Israel.
“Claro que, a longo prazo, tudo isto pode ter impacto nas relações entre os Estados Unidos e Israel. Mas por enquanto, os EUA continuam a enviar armas para Israel”, comenta Joel Beinin.
Os EUA são o principal fornecedor de armamento de Israel. E todos os anos, Washington desembolsa uma grande quantia em ajuda militar ao Estado judeu. Em 2023, a verba rondou os 3800 milhões de dólares (mais de 3500 milhões de euros). Atualmente, a Casa Branca está a trabalhar com o Congresso para garantir uma ajuda adicional de 14 mil milhões de dólares (quase 13 mil milhões de euros).
Na passada sexta-feira, a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez defendeu, num discurso na Câmara dos Representantes, que os EUA não podem continuar a “facilitar” matanças em Gaza como forma de honrar a sua aliança com Israel.
“É chegado o momento de forçar o cumprimento da lei dos EUA e dos padrões de humanidade, e cumprir as nossas obrigações para com o povo americano de suspender a transferência de armas dos EUA para o Governo israelita, a fim de parar e prevenir novas atrocidades.”
A 23 de dezembro de 2016, estava Barack Obama a viver os seus últimos dias na Casa Branca (com Donald Trump já eleito), os Estados Unidos fizeram história e abstiveram-se numa resolução do CS sobre os colonatos israelitas nos territórios palestinianos, que assim foi aprovada.
A resolução 2334 considera que os colonatos “não têm validade legal e constituem uma violação flagrante do direito internacional” e “exige que Israel cesse imediata e completamente todas as atividades dos colonatos no território palestiniano ocupado”.
O primeiro-ministro de Israel disse que o país não iria obedecer. “Netanyahu já tinha destruído a sua relação com o Presidente Obama ao agir pelas suas costas e combinar com a liderança republicana do Congresso um discurso numa sessão conjunta do Congresso e por fazer lóbi contra o acordo nuclear com o Irão”, explica Joel Beinin.
“Essa resolução foi, em parte, uma forma de ‘retribuição’. Não teve qualquer impacto porque o Conselho de Segurança não adotou qualquer mecanismo de aplicação, Obama estava em final de mandato e os EUA nada fizeram uma vez que a Administração Trump [que se seguiu] apoiou totalmente a expansão dos colonatos. Apesar dessa resolução, os laços EUA-Israel tornaram-se mais estreitos com Trump.”
Oito anos depois, o mesmo Netanyahu continua a bater o pé ao amigo americano. Na quinta-feira, véspera da votação no Conselho de Segurança da resolução proposta pelos EUA, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, defendeu que uma incursão terrestre em Rafah seria “um erro”, algo “desnecessário” para derrotar o Hamas e que os EUA “não apoiam”.
No dia seguinte, Blinken chegou a Israel pela oitava vez desde 7 de outubro. Reuniu-se com o gabinete de guerra do Governo israelita e ouviu de Netanyahu aquilo que não queria: “Eu disse-lhe que não seremos capazes de derrotar o Hamas sem entrar em Rafah e eliminar os batalhões restantes que lá estão”, afirmou o chefe do Governo israelita. “Eu disse-lhe que esperava fazê-lo com o apoio dos Estados Unidos, mas que, se for necessário, fá-lo-emos sozinhos.”
(FOTO Sala do Conselho de Segurança das Nações Unidas WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de março de 2024. Pode ser consultado aqui