Nações Unidas querem investigar valas comuns descobertas em Gaza

Descoberta de centenas de corpos enterrados em dois dos maiores hospitais levanta novas suspeitas de crimes de guerra

O horror na Faixa de Gaza parece não ter fim. Terça-feira, as Nações Unidas pediram “uma investigação clara, transparente e credível” às valas comuns descobertas em dois dos maiores hospitais no território palestiniano — o Al-Shifa, na cidade de Gaza (centro), e o Nasser, em Khan Yunis (sul). A descoberta foi possível após a retirada das tropas israelitas e a entrada no terreno de equipas da proteção civil palestiniana. “Dado o clima de impunidade prevalecente, isto deveria incluir investigadores internacionais”, defendeu o austríaco Volker Türk, alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos. “Os hospitais estão abrangidos por uma proteção muito especial ao abrigo do direito internacional humanitário. O assassínio intencional de civis, detidos e outras pessoas que estão ‘fora de combate’ é crime de guerra.”

As duas unidades de saúde foram palco de operações de forças especiais de Israel, que acusa o Hamas de ocultar infraestruturas terroristas nos hospitais. A ONU fala de centenas de corpos “enterrados profundamente no solo e cobertos de resíduos” e outros “despidos e com as mãos amarradas”. No hospital Nasser, em Khan Yunis, foram recuperados 283 cadáveres.

Jornalistas fazem falta

As Forças de Defesa de Israel rejeitaram as alegações de enterros em massa e possíveis execuções dentro de hospitais. Admitiram ter matado e detido centenas de militantes do Hamas nos dois complexos hospitalares e ter procedido à exumação “seletiva” de cadáveres enterrados previamente pelos palestinianos, para tentar encontrar reféns levados pelos jiadistas a 7 de outubro. “Os exames foram feitos de forma cuidadosa e exclusivamente em locais onde os serviços de informação indicaram a possível presença de reféns, com base em dicas fornecidas por reféns previamente libertados. Foram realizados com respeito, mantendo a dignidade do falecido”, afirmou o exército israelita.

Stéphane Dujarric, porta-voz do secretário-geral da ONU, António Guterres, realçou que a descoberta de valas comuns “é outra razão por que precisamos de um cessar-fogo” e de “maior acesso por parte dos [funcionários] humanitários”. Dujarric alertou ainda para o bloqueio à informação em relação ao que se passa em Gaza e que resulta numa deficiente cobertura noticiosa da guerra. “Precisamos de mais jornalistas com a possibilidade de fazer o seu trabalho em Gaza com segurança e contar os factos”, disse. A guerra já dura há mais de meio ano e parece estar longe do fim. Israel tem iminente uma ofensiva na zona de Rafah (sul), onde está concentrada a maioria da população do território.

(FOTO Deslocação de populações em Gaza JABER JEHAD BADWAN / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 25 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

A luta de Leah Goldin para resgatar o filho morto em Gaza há dez anos: “Não quero que ninguém morra à fome, só quero trazer Hadar para casa”

A 1 de agosto de 2014, numa outra guerra na Faixa de Gaza, entre Israel e o Hamas, um soldado israelita foi levado através de um túnel após sofrer uma emboscada. Desde então, a sua família tem-se feito ouvir em instituições de poder — das Nações Unidas ao Vaticano, do Parlamento Europeu ao Congresso dos Estados Unidos — pedindo que obriguem o Hamas a devolver os seus restos mortais. A mãe de Hadar Goldin relata ao Expresso os esforços feitos para que o resgatem e possam fazer um enterro digno

Leah (ao centro), acompanhada pelo filho Tzur e pelo marido Simha, numa ação de sensibilização, em Kfar Saba. Nas ‘t-shirts’, fotos de Hadar e Oron JACK GUEZ / AFP / GETTY IMAGES

A dor da perda de um filho, em circunstâncias especialmente angustiantes, tornou Leah Goldin uma paladina dos direitos humanos. Vai para dez anos que Israel travava outra guerra na Faixa de Gaza quando uma emboscada levada a cabo por militantes do Hamas, surgidos de um túnel subterrâneo, na zona de Rafah, surpreendeu três soldados israelitas. Mataram dois e arrastaram consigo um terceiro. Era Hadar Goldin, filho de Leah que, dez anos depois, não tem certeza se foi levado vivo ou morto.

Em entrevista ao Expresso, esta israelita de 68 anos descreve o momento em que a vida da família ficou virada do avesso. “A nossa viagem começou a 1 de agosto de 2014. Decorria a operação ‘Barreira de Proteção’ e dois filhos meus, os gémeos Hadar e Tzur, participaram juntos.” Tinham 23 anos.

“Tzur comandava uma força de salvamento, entrava e saía de Gaza para resgatar companheiros [das Forças de Defesa de Israel (FDI)], uns feridos, outros mortos, muitos deles amigos. Também resgatou umas dezenas de palestinianos, apanhados no meio do fogo, usados pelo Hamas como escudos humanos. Quando lhe perguntava porque o fazia, ele respondia: ‘Mãe, não pode ser de outra forma…’”, recorda.

“Ao mesmo tempo, o seu irmão gémeo, Hadar, fazia parte de uma unidade de elite — a Brigada Givati — que guardava o corpo de engenharia que participava na destruição dos túneis subterrâneos. Depois da guerra, descobrimos que, [no momento da emboscada a Hadar], estavam a 400 metros de distância um do outro.”

Hadar Goldin nasceu a 18 de fevereiro de 1991. Quando morreu, tinha casamento marcado para dali a um mês AFP / GETTY IMAGES

Naquele 1 de agosto, iniciava-se uma trégua de 72 horas, anunciada por Estados Unidos e Nações Unidas. “Duas horas após ser declarada, o Hamas violou o cessar-fogo e atacou a equipa de Hadar. Ele era muito magro, foi levado pelo túnel. Um amigo colocou a sua vida em perigo e, contra os procedimentos, entrou no túnel e encontrou a camisa de Hadar com sangue, o seu tzitzit e o seu livro de orações”, recorda Leah.

“Procuravam um soldado ferido, mas 36 horas depois, as FDI declararam que as provas forenses recolhidas da sua roupa indicavam que não havia possibilidade de que pudesse estar vivo. Convenceram-nos a fazer o funeral. Digo ‘convenceram-nos’ porque hoje não tenho a certeza do que aconteceu… O que posso dizer é que aquilo que enterrámos foi a prova de que ele foi sequestrado, porque Hadar está nas mãos de Yahya Sinwar, o terrorista que mais sofrimento nos causa.”

Yahya Sinwar é o atual líder do Hamas na Faixa de Gaza, considerado o cérebro do ataque do Hamas de 7 de outubro. A 13 de fevereiro, as FDI divulgaram um vídeo identificando-o dentro de um túnel, nos primeiros dias da guerra. As autoridades israelitas acreditam que, atualmente, possa estar escondido na zona de Rafah (sul), onde Israel tem iminente uma ofensiva militar.

Adeus a um corpo distante

A 3 de agosto de 2014, dezenas de milhares de pessoas despediram-se de Hadar Goldin, numa cerimónia realizada no cemitério de Kfar Saba, a cidade onde ainda hoje vive a família, na região de Telavive. “Enquanto Tzur fazia a coisa mais humanitária que era resgatar palestinianos, as mesmas pessoas violaram o cessar-fogo humanitário, sequestraram o irmão e recusaram-se a devolvê-lo para que fosse feito um enterro digno na sua terra natal”, lamenta Leah.

“Agora atente nisto: Tzur foi chamado para resgatar Hadar, enquanto responsável pela força de salvamento. Claro que quando chegou ao local foi mandado para casa.” Tzur não sabia que o soldado levado pelo Hamas era o irmão.

O funeral de Hadar Goldin realizou-se a 3 de agosto de 2014, em Kfar Saba, com honras militares e uma multidão em choque ILIA YEFIMOVICH / GETTY IMAGES

Vergados à dor da perda de um dos seus, em circunstâncias tão angustiantes como imaginar o tratamento que lhe terá sido infligido por terroristas, os Goldin demoraram algum tempo a reagir. Até ao dia em que se cruzaram com Irwin Cotler, um antigo ministro da Justiça e procurador-geral do Canadá que defendeu prisioneiros políticos como o russo Andrei Sakharov e o sul-africano Nelson Mandela. Nascido em 1940, no seio de uma família judia, Cotler dispôs-se a defender Hadar pro bono.

“Hadar foi morto numa violação de um cessar-fogo. Uma vez que a trégua tinha sido mediada pelos Estados Unidos, pelas Nações Unidas e recebera o apoio da União Europeia, todos eles tinham de assumir responsabilidade em relação ao regresso do meu filho”, explica Leah. “Era esse o nosso sentimento enquanto família. Tínhamos esperança que a comunidade internacional nos ajudasse a trazer o nosso rapaz para casa.”

A cruzada dos Goldin levou-os ao Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas, a 22 de dezembro de 2017, quando este órgão acolheu uma reunião em formato “fórmula Arria”, convocada por um dos seus membros e realizada em registo informal.

Enquanto Leah prestou depoimento sobre o caso do filho, Cotler fez o enquadramento jurídico e também do de outro soldado israelita — Oron Shaul — levado para Gaza nas mesmas circunstâncias de Hadar, noutro incidente duas semanas antes.

Leah Goldin entre o secretário-geral da ONU, António Guterres, e o Presidente de Israel, Isaac Herzog, numa visita posterior à sede da ONU, a 20 de julho de 2023 LEV RADIN / GETTY IMAGES

“Nas Nações Unidas, Irwin Cotler fez uma coisa espantosa. Mostrou que o rapto de Hadar Goldin e Oron Shaul e a recusa em devolvê-los para que fosse feito um enterro digno é uma flagrante violação do direito internacional humanitário. Há todo um capítulo que fala de mortos, de raptos de pessoas indefesas, de pessoas desaparecidas, de recusa em entregar o corpo às famílias para seja feito um enterro digno, de maus tratos e dignidade humana”, enumera a israelita.

A sessão no CS realizou-se a três dias do Natal. Leah não acreditava que houvesse grande afluência àquela audiência, mas enganou-se. “Havia representantes de 40 países, a maioria politicamente contra Israel. No fim, houve um consenso de que Hadar e Oron deviam regressar imediata e incondicionalmente.” O trabalho frutificou. A 11 de junho de 2019, o CS aprovou, por unanimidade, a sua primeira resolução sobre pessoas dadas como desaparecidas durante conflitos armados (resolução 2474).

Na mesma linha, a 18 de janeiro de 2024, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução apelando “a um cessar-fogo permanente [na Faixa de Gaza] e ao reinício dos esforços no sentido de uma solução política, desde que todos os reféns sejam imediata e incondicionalmente libertados”. “Isto mostra que estamos certos na nossa luta, a lei está do nosso lado”, diz Leah.

À esquerda, Leah e o marido, Simha, numa reunião no Parlamento Europeu, a 20 de junho de 2018, sobre o caso humanitário de Hadar Goldin © EUROPEAN UNION 2018 – SOURCE : EP

Oficialmente, Israel reconhece a existência de 133 israelitas cativos do Hamas. Teme-se que a maioria não esteja viva. Hadar Goldin e Oron Shaul são dois dos nomes. Da lista fazem parte também dois civis: Avraham “Avera” Mengistu, um israelita nascido na Etiópia, com problemas mentais, que entrou em Gaza por vontade própria em setembro de 2014, e Hisham al-Sayed, um israelita árabe beduíno, raptado em 2015.

Leah, que se descreve como uma mulher religiosa, tem fé que todos sejam devolvidos às famílias sem pôr em risco mais vidas de soldados. Essa crença, e a busca desesperada por atalhos que tragam o corpo do filho até si, levou esta judia a pedir ajuda ao Papa Francisco.

“Os líderes religiosos têm muitas ligações. Mesmo o Hamas, que grita ‘Allahu Akbar’ quando nos vem matar, é permeável a alguma influência religiosa. Temos de encontrar um caminho…”, diz. “Trazer o meu filho para lhe fazer um enterro digno é uma questão puramente religiosa e moral, de acordo com todas as religiões.”

A 21 de dezembro de 2022, o Papa Francisco recebeu, no Vaticano, uma delegação de representantes dos quatro israelitas levados pelo Hamas em 2014-15. “Preparei-me para aquele momento”, recorda Leah. “O que é que eu ia dizer ao Papa? Acabei por falar-lhe de duas coisas. Primeiro, da Pietà [a famosa escultura de Miguel Ângelo que representa Jesus morto nos braços de sua mãe]. Depois, disse-lhe que, sendo ele oriundo da Argentina, percebia melhor a dor de uma mãe após o desaparecimento de um filho. No final do encontro, ele veio falar comigo e disse que é uma obrigação devolver um filho a uma mãe para ser enterrado.”

Meses depois, o Papa fez chegar aos Goldin, através do arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário para as Relações com os Estados, um relatório de página e meia sobre as diligências feitas junto de vários países. “Ele disse que apesar de ter obtido reações de indiferença, não ia desistir.”

Leah (de camisola amarela) está à direita do Papa Francisco EMBAIXADA DE ISRAEL NA SANTA SÉ

A 16 de julho de 2008, numa polémica troca de prisioneiros entre Israel e o grupo armado libanês Hezbollah, Israel libertou cinco prisioneiros (entre os quais Samir Kuntar, condenado por terrorismo e assassínio) e devolveu os corpos de 199 militantes do Hezbollah. Em troca, recebeu dois caixões com os restos de dois soldados (Ehud Goldwasser e Eldad Regev), que tinham sido raptados pelo Hezbollah, a 12 de julho de 2006. Este caso precipitou o início da guerra de 34 dias entre Israel e o Hezbollah no verão de 2006.

Hadar e Oron nunca foram objeto de um processo semelhante. “O meu marido é historiador e sempre diz que não se pode usar métodos de uma guerra passada numa guerra futura, porque o contexto é diferente. Temos feito essa pergunta ao longo dos anos. Mas as pessoas são diferentes…”

O negócio dos mortos

A 8 de julho de 2015, o jornal israelita “The Jerusalem Post” noticiava uma tentativa de contacto com o Hamas por parte de “um mediador europeu”, em nome do Governo de Israel, com vista à “abertura de um canal de comunicação” para resgatar os dois corpos.

O Hamas recusou discutir o assunto até que Israel libertasse um conjunto de detidos. Estes tinham sido libertados em troca do militar israelita Gilad Shalit, que esteve cativo em Gaza entre 2006 e 2011, mas, entretanto, Israel tinha-os prendido novamente. “É inacreditável o quão cínico o Hamas pode ser para negociar os mortos…”, diz Leah Goldin.

A 19 de julho de 2023, Leah Goldin foi ovacionada numa sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos, em Washington DC, em que discursou o Presidente israelita, Isaac Herzog BRENDAN SMIALOWSKI / AFP / GETTY IMAGES

Leah pede que não falemos de política, mas vai dizendo que Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro que assumiu o cargo pela primeira vez em 2009, não é mais o mesmo. “Todo o Governo é composto por pessoas que perderam os seus valores religiosos, humanitários, morais… Só pensam no seu benefício político. Esta é a nossa maior dor. E agora não somos só nós, são as famílias dos reféns e das pessoas assassinadas.”

A israelita acredita que se os casos de Hadar e Oron tivessem sido resolvidos, o ataque do Hamas de 7 de outubro nunca teria acontecido. “Enquanto o Hamas não os devolver, nós vamos ceder ao terrorismo, e eles ganham. Se tiverem sucesso nalgumas ações, vão continuar. O Hamas devia saber que manter reféns não é um trunfo, mas antes que tem um custo. Pensariam duas vezes antes de fazer outro sequestro”, diz.

“E depois de terem conseguido trocar reféns, fazem uma seleção, como na idade das trevas. É o método terrorista, deixam os mortos para o fim para os tornar um ativo melhor. Por isso, encontram legitimidade para matar mais. Temos de pensar ao contrário. O grande erro é usarmos a nossa lógica e os nossos valores na discussão com eles. Eles são terroristas.”

Para Leah, o compromisso com o imperativo humanitário passa também por garantir que quem recebe apoio cumpre a lei. Caso contrário, os doadores tornam-se cúmplices e também devem ser responsabilizados. Quando a União Europeia ajuda Gaza, por exemplo, tem de exigir um retorno.

“Não, nós não queremos deixar o povo de Gaza morrer à fome. Eu só quero trazer o meu filho para casa. E isso não custa dinheiro. É só uma questão de seriedade, de comportamento e de diálogo”, diz. “Nós estamos certos. Temos formas de trazer o nosso filho sem guerra, porque as bombas não resolvem problemas humanitários e os reféns são assuntos humanitários.”

Apontar o dedo às famílias dos reféns

O 7 de outubro uniu a dor dos Goldin à de centenas de outras famílias que viram parentes seus serem levados pelo Hamas. Mas atualmente, em Israel, nem todos são empáticos com as famílias dos reféns. Muitos culpam-nos de contribuir para um custo pesado que é a libertação de terroristas.

“Sentimos a palavra ‘custo’ como uma dor”, diz Leah. Os Goldin têm-se privado de participar em manifestações. “Jamais tomaremos parte por qualquer lado político. Somos apenas parte das famílias de reféns que agora são atacadas, o que é inacreditável. Mas não estou preocupada, porque o Governo sugeriu que as famílias dos reféns são de esquerda e os soldados mortos são de direita, portanto estou em ambos. É só estúpido.”

Familiares de Hadar, Oron, Mengistu e Al-Sayed, em frente à sede do Comité Internacional da Cruz Vermelha, em Genebra, a 5 de julho de 2023 GABRIEL MONNET / AFP / GETTY IMAGES

Leah Goldin é doutorada em Ciência da Computação pelo prestigiado Technion (Instituto de Tecnologia de Israel), de Haifa. Dá aulas na Faculdade de Engenharia Afeka, de Telavive, e trabalha como consultora independente para vários tipo de indústrias, como a de Defesa.

Além dos gémeos Hadar e Tzur, tem uma filha (Ayelet) e mais outro filho (Hemi). Tem 10 netos. O marido, Simha, é professor no Departamento de História Judaica da Universidade de Telavive.

Nos últimos dez anos, “muita gente abraçou-nos, enxugou as nossas lágrimas e disse que rezava por nós. Disseram que se identificavam com a nossa situação, mas isso é impossível”, conclui Leah Goldin.

“O problema é que ao longo do caminho — um longo caminho de nove anos e oito meses — aprendemos que muita gente, principalmente decisores, em Israel e em todo o mundo, deixaram para trás os seus valores. Direitos humanos são apenas palavras, não são uma ação. E o mais frustrante é que os interesses políticos governam tudo. Não é o ser humano que esses líderes procuram ajudar. É muito frustrante. Somos humanos, estamos perdidos, ficamos para trás.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Israel atacou o Irão, mas a resposta à chuva de mísseis e drones que sofreu “virá mais tarde”

A aguardada retaliação de Israel ao ataque direto do Irão ao seu território aconteceu esta sexta-feira através de um ataque desferido a partir de território iraniano. Sem provocar grandes danos, Telavive mostrou que consegue obter informações e ter capacidade operacional para atacar infraestruturas sensíveis iranianas. Especialistas ouvidos pelo Expresso ajudam a perceber como foi possível, vaticinam o que se segue e explicam por que razão enquanto Benjamin Netanyahu continuar no poder em Israel, Telavive e Teerão estarão mais próximo de uma confrontação direta

Seis dias. Foi quanto demorou Israel a responder à chuva de 300 drones e mísseis lançados desde o Irão contra o seu território. Esta sexta-feira, o mundo acordou com a notícia de um ataque a território iraniano prontamente atribuído a Israel e temeu o início de uma nova guerra.

À semelhança do ataque iraniano de sábado passado, a ofensiva israelita foi contida ao nível dos danos que procurou infligir. Mas a dinâmica de ataque e contra-ataque que toma Telavive e Teerão pode não ficar por aqui.

“Devemos assumir que esta está longe de ser a resposta definitiva de Israel ao ataque militar direto por parte do Irão, no fim de semana passado”, diz ao Expresso Luís Tomé, professor de Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa.

“Esta ação faz parte de uma resposta que foi concebida para, por um lado, respeitar os compromissos que Israel terá assumido perante os Estados Unidos e outros países europeus e vizinhos, nomeadamente países árabes de não retaliar de forma militar direta contra o Irão.”

Por outro lado, “há um aviso ao Irão no sentido de Israel mostrar não só que teve capacidade para se defender daquelas centenas de mísseis e drones lançados, mas também que é capaz, a partir de dentro do Irão, de obter informações e ter capacidade operacional para atacar infraestruturas sensíveis bem no centro do país.”

Teerão tentou minimizar o ataque admitindo ter sido realizado por “mini-drones”. Ao Expresso, o iraniano Mohammad Eslami, especialista em tecnologias militares emergentes, revela que os aparelhos usados em ataques às cidades iranianas de Isfahan e de Tabriz foram drones quadricópteros. Neutralizados pelo sistema de defesa iraniano, “foram lançados a partir de dentro do Irão”, acrescenta.

Estes drones “têm um alcance entre cinco e dez quilómetros” e “uma ogiva explosiva muito pequena, o suficiente para fazer explodir um carro ou um veículo blindado”. Transportam “pequenas granadas” e, se forem um pouco maiores, “podem carregar um número maior de granadas e, às vezes, uma arma para atirar em alvos humanos”, detalha Eslami, professor de Relações Internacionais na Universidade do Minho.

Sem que Telavive e Teerão falem abertamente dos contornos da operação, há notícias que dão conta que Israel terá também disparado mísseis desde o exterior do Irão a partir de caças.

“Não é claro se a intenção de Israel foi fazer uma operação real ou apenas identificar o tipo de defesa aérea e as suas localizações”, acrescenta. “Na verdade, esta não foi uma resposta de Israel, foi um ato subversivo. Confirma a ideia de que agentes israelitas estão a trabalhar ativamente no Irão.”

As autoridades iranianas reconheceram que Isfahan foi atacada por três drones. Não foi a primeira vez que esta localidade, no centro do Irão, foi um alvo de Israel. A cidade abriga património mundial da humanidade reconhecido pela Unesco mas também estruturas onde o Irão desenvolve o seu programa nuclear, uma grande base da força aérea e fábricas associadas nomeadamente à produção de drones.

“Até que ponto este tipo de operações pode causar danos?”, questiona Eslami. “Muito baixo. Há alguns anos, Israel também atacou um local de enriquecimento de urânio em Isfahan usando estes quadricópteros. O dano foi muito pequeno”, diz.

“A nível tático, Israel tem vantagem devido à forte capacidade de obter informações e às tecnologias de ponta. Mas a nível estratégico, é muito frágil e vulnerável contra o Irão. Por isso, uma guerra é algo a que Israel não se pode permitir.”

Sabotagem, ciberataques e assassínios de cientistas

Israel tem um longo histórico de ataques clandestinos dentro do Irão. Luís Tomé recorda que “há muito tempo que Israel vem desenvolvendo uma guerra indireta, híbrida contra o Irão”, que passa por atos de sabotagem, ciberataques e assassinatos de cientistas da área do nuclear.

Com este ataque, Israel passa a mensagem que “conhece as instalações nucleares, sabe onde elas se localizam e que pode fazer ataques a partir de dentro do Irão contra infraestruturas sensíveis”, continua o professor da Universidade Autónoma.

“A resposta de Israel àquilo que aconteceu no dia 13 de abril [ataque do Irão] virá mais tarde. Israel está a tentar congregar uma coligação de vontades dos Estados Unidos e de países vizinhos para fazer uma retaliação mais massiva contra infraestruturas nucleares, que são uma ameaça não apenas para Israel, mas também para países árabes da região, designadamente a Arábia Saudita.”

Luís Tomé acredita que a resposta de Israel ao mega ataque iraniano de 13 de abril vai acontecer mesmo sem uma nova provocação do Irão. “Benjamin Netanyahu tem esse interesse pessoal, porque a continuação do conflito na Faixa de Gaza, mas sobretudo a escalada, até certo ponto controlada, do conflito com o Irão, é uma forma do primeiro-ministro de Israel sobreviver politicamente e escapar a algum tipo de pressão que se estava a acentuar muito, interna e externamente”, diz.

Por outro lado, “Israel não pode deixar de assumir uma resposta de facto ao que sofreu. É verdade que o Irão, há décadas, vem fazendo ataques contra Israel, mas ataques indiretos, no campo da guerra híbrida, através dos seus proxies e também de ciberataques. Sofrendo pela primeira vez um ataque militar direto a partir do Irão, Israel não pode deixar de responder e de uma forma assumida porque todos estes ataques que Israel vem fazendo em regra nunca são assumidos.”

No curto prazo, “o enfrentamento direto terá terminado aqui, mas o indireto vai continuar”, defende ao Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

“Os proxies iranianos que estão mais próximos do território israelita — seja o Hezbollah libanês, a Jihad Islâmica na Síria e no Iraque, sejam os hutis do Iémen — podem continuar a operar. O próprio Hamas [na Faixa de Gaza] — apesar de ser praticamente impossível, hoje, fazer-lhe chegar armamento — não deixará de seguir orientações iranianas nalguns aspetos”.

Como tem sido prática, Israel não reivindicou o ataque desta sexta-feira. A única indicação, a nível oficial, de que terá estado por trás desta ação — para além da declaração de Washington de que “foi informado” — foi feita pelo ministro da Segurança Nacional, o ultra-ortodoxo radical Itamar Ben-Gvir, que escreveu na rede social X (antigo Twitter): “Fraco”.

De pronto, Yair Lapid, o líder da oposição em Israel, reagiu. “Nunca antes um ministro tinha causado danos tão graves à segurança do país, à sua imagem e ao seu estatuto internacional. Num tweet imperdoável de uma só palavra, Ben-Gvir conseguiu escarnecer e envergonhar Israel.”

‘Não fomos nós’

José Palmeira explica porque razão Israel nunca assume os ataques que desfere, como aconteceu também com o bombardeamento ao consulado iraniano em Damasco, a 1 de abril. “Israel nunca assume para se defender ao nível do direito internacional. Fa-lo para se defender perante instâncias internacionais, como o Tribunal Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional. Se houver uma acusação nesses tribunais, pode dizer: ‘não fomos nós’.”

Para o Irão, o facto de Israel não ter reivindicado o ataque pode ser útil para alimentar uma narrativa interna. “Permite ao Irão dizer à sua opinião pública que não houve um ataque direto, logo não tem de retaliar”, continua Palmeira. “Mas ao mesmo tempo, para consumo interno, ter o inimigo dentro do próprio território, não o detetar e não evitar que isto aconteça não deixa de ser muito preocupante.”

Com uma área de cerca de 1.648.000 km², o Irão é 75 vezes maior do que Israel (22.145 km²). Igualmente, a República Islâmica faz fronteira (terrestre e naval) com 13 Estados soberanos: Iraque, Turquia, Azerbaijão, Arménia, Turquemenistão, Afeganistão, Paquistão, Kuwait, Arábia Saudita, Bahrain, Catar, Emirados Árabes Unidos e Omã. “Não é fácil, em termos de segurança, controlar um país tão grande. Através de alguma fronteira, pode entrar alguma coisa para dentro do território iraniano”, acrescenta Palmeira.

A identificação de quem, no Irão, foi cúmplice de Israel está, de momento, no domínio da especulação. No país, há vários tipos de oposição interna ao regime, desde logo membros de fações de uma linha democrática e secular que rejeitam a revolução islâmica e que, frequentemente, são detidos, reprimidos e mortos pelas forças do regime.

“Sabemos que os próprios ayatollahs têm oposição interna. Mas não faria muito sentido que essa oposição atuasse sobre o arsenal nuclear ou sobre uma base aérea”, comenta José Palmeira. “Não seria muito racional, mas fica sempre a dúvida.”

Inimigos e interesses comuns

Acrescenta Luís Tomé. “Há informações que indicam que agentes estrangeiros, designadamente pró-israelitas, operam juntamente com alguns grupos separatistas. Os iranianos gostam de vincar a tese, que me parece pouco credível, de que há uma relação e uma articulação de inimigos comuns, como israelitas e o Daesh. Mas obviamente que operacionais estrangeiros a atuar dentro do Irão têm de ter apoios diversos que não podem resultar apenas do pagamento a locais. Há interesses coincidentes desde logo na hostilidade ao regime iraniano.”

Num cenário de confronto direto entre Teerão e Telavive, “Israel tem a capacidade de atacar o Irão, mas não de vencer uma guerra contra o Irão”, diz Eslami. “As infraestruturas ofensivas do Irão estão distribuídas por todo o país, não é possível atingi-las a todas. Já Israel é um território pequeno, pelo que uma guerra longa e erosiva resultará na destruição de Israel. Israel pode, sem dúvida, atacar o Irão, mas não pode defender-se contra os ataques em massa iranianos durante muito tempo.”

Com Benjamin Netanyahu no poder em Israel, a eventualidade de uma confrontação direta entre os dois países é maior. “Há muito tempo que defendo que, no caso da Ucrânia, só iríamos começar a conhecer um desfecho próximo ou depois das eleições nos Estados Unidos”, conclui Luís Tomé.

“E a partir de 7 de outubro [ataque do Hamas] digo a mesma coisa” em relação à guerra em Gaza e à escalada da situação no Médio Oriente. “Netanyahu, como tem problemas com Joe Biden que não tinha com Donald Trump, vai fazer o possível para esticar a conflitualidade até que — sonha ele — Trump volte. Ele acha que se sobreviver no poder até ao regresso de Trump, terá outra margem de manobra para poder fazer algumas coisas, designadamente contra o Irão. Não me parece que isto vá acalmar nos próximos tempos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui

A escalada que (quase) todos tentam evitar

Teerão desferiu o primeiro ataque assumido contra o território do Estado judaico. Telavive já decidiu que vai retaliar

O aparatoso ataque da República Islâmica do Irão contra o Estado de Israel, na noite de sábado, fez lembrar os dias da Guerra do Golfo de 1991, a primeira a ser transmitido em direto pela televisão. Fundada 10 anos antes, a emissora americana CNN apostou numa cobertura inédita dessa guerra.

Sábado passado, após ter sido noticiado que o Irão lançara um enxame de 330 drones e mísseis balísticos e de cruzeiro na direção de Israel, o mundo colou-se à televisão ‘à espera de os ver chegar’. “Assistimos a isso na Guerra do Golfo, quando os mísseis caíam em Bagdade. Agora estávamos à espera que chegassem. Quase que havia notícias sobre os países que atravessavam…”, ilustra, em conversa com o Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

A investida do Irão — que Teerão afirma ter sido “limitada”, visando apenas alvos militares e realizada em retaliação pelo ataque de 1 de abril contra o seu consulado em Damasco, atribuído a Israel — abriu porta a novo conflito. O gabinete de guerra israelita já decidiu retaliar, não havendo pistas sobre em que moldes. Teerão promete reagir de imediato. Estados Unidos e União Europeia tentam dissuadir Israel, para que a situação não se agrave ainda mais. Em paralelo, procuram isolar a República Islâmica, adotando novas sanções.

IRÃO 
Que motivação para atacar?

É percetível uma componente interna. “O Governo dos ayatollahs está muito desacreditado, há uma crise económica, a população vive mal e a polícia dos costumes tem tido atitudes radicais”, explica Palmeira. “Uma das formas de o regime se credibilizar e ter união interna é criar inimigos externos.” Em paralelo, há objetivos regionais. O gigante xiita do Médio Oriente quer ser uma potência hegemónica e “ser temido por todos os outros”. Isso justifica o apoio ao “eixo da resistência”, que passa por aliados regionais xiitas (como o libanês Hezbollah e os iemenitas hutis) e sunitas (como o palestiniano Hamas).

Teerão quis demonstrar poder. “O Irão mostra força quando vende drones à Federação Russa, os quais têm tido papel relevante na guerra na Ucrânia. Revela capacidade tecnológica e ganha dinheiro de que precisa, porque os vende a bom preço.” Até à guerra na Ucrânia, o Irão era o país mais sancionado do mundo.

O ataque foi de grande espetacularidade, mas não provocou grandes danos em Israel, que diz ter intercetado 99% dos projéteis. “O Irão não atacou com mais força porque temia uma retaliação. Quer ter capacidade nuclear, se é que já não tem. Sabe-se onde o urânio está a ser enriquecido e essas localizações seriam o primeiro alvo de Israel, tal como as fábricas de drones”, acrescenta o docente da Universidade do Minho. “O Irão não quis provocar ao ponto de Israel — se tivesse sofrido mortos e feridos — ter de responder obrigatoriamente para não ficar numa situação de fraqueza.”

ISRAEL 
E agora, Estados Unidos?

O ataque aconteceu numa altura em que a aliança histórica entre Israel e os Estados Unidos revelava desgaste por causa da operação militar na Faixa de Gaza. Mas cedo ficou claro que as forças americanas estacionadas no Médio Oriente estariam ao lado do Estado judaico. “Israel é a única democracia da zona, o que é, para os Estados Unidos e o Ocidente, um elemento relevante a preservar”, comenta Palmeira, “assim como a sobrevivência do Estado de Israel depende, em grande medida, do apoio ocidental e dos Estados Unidos.”

Por outro lado, um conflito entre Israel e o Irão arrisca-se a ter consequências económicas globais, como revela a reunião dos líderes do G7, no próprio dia, de onde saiu um alerta de uma “escalada regional incontrolável”. Mas, realça o académico, “uma coisa é o interesse de Israel, outra é o de Benjamin Netanyahu, acossado internamente”, por causa do 7 de outubro e dos reféns, “e externamente, porque a intervenção em Gaza provocou uma catástrofe humanitária”, diz. “Está a lutar pela sua sobrevivência política e acha que quanto mais duro for, mais isso o favorece.”

“O Irão não atacou Israel com mais força porque temia uma retaliação, pois quer ter capacidade nuclear”, diz o perito José Palmeira

JORDÂNIA 
Porquê ajudar Israel?

O reino hachemita está exposto à conflitualidade no Médio Oriente, desde logo pela grande quantidade de palestinianos que vive no país. Amã tem sido palco de manifestações contra a guerra em Gaza e, já no pós-7 de outubro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, afirmou que “o acordo de paz entre Israel e a Jordânia [de 1994] está na prateleira e a acumular poeira”.

Durante o ataque do Irão a Israel, o reino não hesitou. Caças da Força Aérea jordana abateram drones iranianos em apoio de Israel. Segundo o Presidente francês, Emmanuel Macron, França — que tem tropas na Jordânia — neutralizou projéteis iranianos a pedido de Amã. “A Jordânia tem tido uma atitude construtiva, que começa a mudar a partir do momento em que o Irão surge como ameaça e apoia o Hezbollah no Líbano e grupos jiadistas que estão na Síria e no Iraque. Isto também ameaça a Jordânia. Há receio de um Irão hegemónico, sobretudo a partir do momento em que tenha armas nucleares.”

Recentemente, o comandante do grupo Kataib Hezbollah, uma das maiores milícias pró-iranianas no Iraque, afirmou-se pronto para armar e treinar 12 mil jordanos para se juntarem à frente de resistência anti-Israel.

ARÁBIA SAUDITA 
Equidistante?

Ataques como o do Irão a Israel têm o potencial de deixar o Médio Oriente “à beira do abismo”, como disse o secretário-geral da ONU, António Guterres. Isso é um grande revés nos planos de modernização da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo que se aproximavam de Israel. “O Irão tende a ficar isolado, porque os vizinhos querem paz. Vivem em grande medida do turismo, da atração de figuras como Cristiano Ronaldo. Procuram estabilidade e querem ser vistos do exterior como países onde há qualidade de vida”, comenta Palmeira.

“Ao contrário de outros países, como o Irão, que têm capacidade militar, a Arábia Saudita quer ser forte no plano económico.” Vários países do Golfo “estão a fazer a transição de uma economia assente no petróleo para energias limpas e têm consciência de que esse é o futuro. Não lhes interessa crises económicas nem a desestabilização da zona. Daí um conjunto de países sunitas ter boas relações com Israel, o que isola o Irão, que consideram um perturbador regional.”

Após o ataque do Irão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita emitiu um comunicado lacónico, expressando preocupação perante a “escalada militar” e pedindo a “todas as partes que exerçam a máxima contenção”. Se é verdade que Riade desbravava um caminho de aproximação a Israel, a 10 de março de 2023 fez as pazes com o Irão, após sete anos de relações congeladas.

O contexto força Riade a jogar “um papel quase dúbio”, conclui Palmeira. “Interessa-lhe que a relação com o Irão seja pacificada, mas também, caso o Irão revele apetência para maior escalada, alargar o âmbito das suas alianças, incluindo com Israel. A Arábia Saudita procura não alienar a relação com o Irão e equilibrar a ascensão do Irão com alianças com outros países da região.”

(MAPA MIDDLE EAST POLICY COUNCIL)

RELACIONADO: As pistas deixadas por um ataque arriscado (mas contido) sobre a relação de forças no Médio Oriente

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

As maiores eleições do mundo

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A Índia vai a votos pela primeira vez desde que ultrapassou a China e se tornou o país mais populoso do mundo, com cerca de 1440 milhões de habitantes. A partir desta sexta-feira, os indianos começam a escolher 543 deputados à câmara baixa do Parlamento (Lok Sabha) para os próximos cinco anos. A disputa trava-se, sobretudo, entre o Partido do Povo Indiano (nacionalista), do primeiro-ministro Narendra Modi, e o Congresso Nacional Indiano, que tem estado na oposição nos últimos dez anos. Para formar Governo, um partido ou coligação terá de garantir 272 assentos.

Votar neste país, que tem a sétima área do mundo, implica uma logística complexa. Segundo a lei, deve haver um local de voto a dois quilómetros da casa de qualquer eleitor. Assim, dos Himalaias (norte) ao Índico (sul), do deserto Thar (oeste) aos arquipélagos da Baía de Bengala (leste), haverá 1,05 milhões de assembleias de voto — a de Tashigang a 4650 metros de altitude —, com 5,5 milhões de urnas eletrónicas.

Para pôr de pé esta operação, cerca de 11 milhões de funcionários atravessaram glaciares e desertos, selvas densas e águas infestadas de crocodilos, nas costas de elefantes e de camelos, a bordo de barcos e helicópteros. O escrutínio, que se prolonga até 1 de junho, realiza-se em sete fases. A principal razão para este calendário por camadas prende-se com a necessidade de alocar forças de segurança para verificar todo o processo, precavendo tentativas de fraude e episódios de violência.

Outra dimensão

969

milhões de indianos estão aptos a votar neste escrutínio. A idade legal para poder votar são 18 anos e para ser candidato, 25

44

dias é quanto dura o processo eleitoral até os resultados serem anunciados (4 de junho); as eleições mais rápidas foram as de 1980: demoraram quatro dias

2660

forças políticas (nacionais e regionais) estão registadas na Índia — para fazer face à iliteracia, são identificados por símbolos

Em que radica a popularidade de Modi?

O atual primeiro-ministro foi eleito pela primeira vez em 2014. Aos 73 anos, candidata-se a um terceiro mandato. Se o cumprir, Narendra Modi torna-se o terceiro indiano com mais tempo na chefia do Executivo. Mais experientes só Jawaharlal Nehru, o primeiro líder pós-independência — 16 anos e 286 dias —, e a sua filha, Indira Gandhi, que passou um acumulado de 15 anos e 350 dias no poder.

O cientista social indiano Amit Singh considera “exagerado” dizer que Modi é um líder popular. “É popular, mas controverso, talvez devido à sua capacidade de usar a religião para polarizar as massas hindus”, diz ao Expresso. “É popular apenas nalguns segmentos da maioria hindu.” Nas eleições de 2019, a sua coligação obteve 37%.

Singh diz que Modi tem boa imprensa, ao contrário da oposição, que recebe pouca atenção. “Há um capitalismo de compadrio que apoia a candidatura de Modi.” Um exemplo foi a compra da NDTV pelo multimilionário Gautam Adani, próximo de Modi. Outrora independente, a televisão é hoje câmara de ressonância do Governo.


Braço de ferro entre duas megacoligações

PARTIDOS Os protagonistas destas eleições são o Partido do Povo Indiano (BJP, na sigla inglesa), criado em 1980 e hoje no poder, e o histórico Congresso Nacional Indiano, fundado em 1885.

LÍDERES O primeiro-ministro Narendra Modi chefia o BJP (nacionalismo hindu). O rosto do Congresso (centro) é Rahul Gandhi, filho, neto e bisneto de antigos primeiros-ministros.

COLIGAÇÕES O BJP formou uma coligação de 38 partidos, a Aliança Democrática Nacional. A oposição une 26 na Aliança Inclusiva para o Desenvolvimento Nacional Indiano (INDIA), a fim de proteger o país do nacionalismo hindu. Modi passou a chamar Bharat ao país, o nome em hindi.

SÍMBOLOS O BJP é identificado por uma flor de lótus e o Congresso por uma mão.


DUAS PERGUNTAS A

Amit Singh
Cientista social indiano, autor do livro “An Approach to Hindutva India”

Que mais o preocupa no seu país?

A ascensão agressiva do nacionalismo e da religião hindus e, em simultâneo, a morte da democracia secular. O secularismo trouxe-nos liberdade de expressão, de religião, igualdade de género e o seu declínio está a ter impacto nos direitos humanos. O crescimento do nacionalismo hindu também perturbou a harmonia comunitária. Vigilantes hindus têm atacado muçulmanos e cristãos. Com Narendra Modi no poder, o ataque à sociedade civil, em especial às minorias religiosas, aumentou.

Com que impacto socioeconómico?

A desigualdade social é preocupante e é a maior de sempre. O desemprego entre os jovens com formação superior é muito elevado. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, 83% dos indianos sem trabalho são jovens. Que vão essas pessoas fazer? Vai haver caos social. Outro problema é a concentração da riqueza em 1% da elite. Com Modi, as divisões sociais aumentaram. As pessoas estão polarizadas com base na casta e na religião, com impacto na qualidade da democracia.

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui