A barbárie de 7 de outubro forçou mais de 250 mil israelitas a abandonar as comunidades onde viviam, junto às fronteiras com a Faixa de Gaza e com o sul do Líbano, onde reina o Hezbollah. Meio ano depois, muitos continuam a andar com a casa às costas. Um israelita deslocado partilha com o Expresso os custos materiais e emocionais que a família paga por esta situação. Não censura quem opta por deixar o país, traumatizado, mas garante que vai ficar. “Não temos outro país. Este é o lugar onde podemos sair à rua, dizer ‘sou judeu’ e ninguém nos chama nomes”
Os Gefen andam há exatamente meio ano com a casa às costas. Foi a 8 de outubro de 2023, o dia seguinte ao bárbaro ataque do Hamas a Israel, que esta família israelita saiu à pressa da comunidade onde vivia, no norte de Israel.
O país estava em choque, com os relatos de terror que chegavam de quem morava junto à Faixa de Gaza, e também desorientado, sem explicação para aquela inédita falha de segurança. O ataque do grupo terrorista vitimou mais de mil pessoas em Israel.
Residente no kibbutz de Matzuva, situado a escassos 1,9 quilómetros da fronteira com o Líbano, esta família estava habituada a viver sob tensão, pela presença diária, a curta distância, de um grupo armado que nasceu motivado pela luta contra Israel. “Quando estamos de pé e olhamos para a montanha, conseguimos vê-los. Conseguimos ver o Hezbollah”, diz ao Expresso Ran Gefen, de 48 anos.
Naquele 8 de outubro, porém, não foi propriamente o medo dos mísseis, rockets, morteiros ou drones lançados frequentemente pelo Hezbollah que mais assustou os israelitas que viviam ali próximo.
“Eles tinham milhares de mísseis que podiam destruir-nos, mas naquele dia não foram os mísseis que receámos. Tínhamos medo que houvesse uma invasão da gente do Hezbollah e que começassem a matar e a violar. Se mandassem mísseis, correríamos para os abrigos, ficaríamos ali um, dois dias, uma semana. Mas não conseguiríamos esconder-nos de assassinos que matam bebés e crianças e violam mulheres. Não podíamos arriscar.”
O medo de uma réplica a norte do ataque realizado pelo Hamas no sul lançou o pânico e pressionou as autoridades a atuar. “Não nos sentíamos seguros. Então as autoridades disseram: ‘Vocês estão muito próximos da fronteira, têm de sair do kibbutz’. As pessoas começaram a sair no próprio dia 7 de outubro. Fizeram as malas, pegaram nos seus carros e procuraram alojamento junto de familiares. Toda a gente estava confusa.”
Dos cerca de 1200 habitantes do kibbutz Metzuva, uns 20 voluntariaram-se para ficar para trás, para impedir assaltos ou atos de vandalismo. Passados seis meses, “continua vazio”, diz o israelita. “Se hoje formos lá, vemos quanto a erva cresceu, tem aí um metro de altura. É impressionante.”
Os Gefen — Ran, a mulher e três filhos — decidiram partir também, sem saber por quanto tempo. De início, ficaram dez dias em casa de familiares, depois cerca de quatro meses num hotel, pago pelo Governo.
“Ao começo, dorme-se num sofá ou num colchão na sala, mas, depois de alguns dias assim, não é confortável para ninguém”, recorda. Igualmente, viver num hotel foi saturante. “Tão cedo não queremos ver um hotel. Não é nada agradável quatro ou cinco pessoas viverem num quarto de 16 metros quadrados. Uma, duas semanas até se aguenta, mas durante quatro meses começa a haver conflitos.”
Nos últimos dois meses, os Gefen têm vivido numa casa arrendada, em Shavei Tzion, a cerca de 12 quilómetros da fronteira com o Líbano e muito perto do mar.

O Governo israelita ajuda com uma verba mensal. No caso desta família, os adultos recebem 200 shekel (quase 50€) e os menores 100 shekel (25€). Ran diz que a vida nómada é particularmente dura para as crianças e adolescentes, privados de rotina, do convívio com os amigos e de um ambiente familiar relaxado.
“É preciso muita energia para se mudar para outro lugar. As crianças vão para uma escola nova, têm de fazer novos amigos. Cada mudança é um grande terramoto para os filhos. E não sabemos quando isto vai terminar e quando vamos voltar para casa. Temos de continuar a viver e a trabalhar a sorrir. Mesmo que seja muito difícil, é importante fazê-lo diariamente”, diz. “Se demonstrar medo, os meus filhos também vão ter medo, e a próxima geração também e a seguinte.”
Ran é proprietário de três lojas de bicicletas. Há cerca de um mês teve de fechar uma. O país está em guerra e há dificuldades económicas. O Executivo prometeu ajuda para minimizar a perda de rendimento, mas falhou. Em outubro, Ran recebeu metade da verba prometida, mas desde então nunca mais chegou dinheiro.
“É um momento difícil porque temos de pagar o aluguer, os impostos, a água, a luz, a Internet, a contabilidade, tudo. Estes pagamentos são os normais, os clientes é que não”, afirma. “Temos esperança que tudo melhore e que um dia tenhamos paz. Tenho a certeza que do outro lado também se sofre. Ninguém está feliz. Ninguém.”
A ajuda dos voluntários
Nem sempre o filho mais velho está com a família. Omer, de 19 anos, cumpre um ano de serviço social voluntário junto de crianças com necessidades especiais. Por estes dias, Israel funciona muito graças ao trabalho voluntário de israelitas de várias partes do país e também de judeus que vivem no estrangeiro.
“Havia muita fruta nas árvores e muitas pessoas vieram ajudar a colhê-la e a colocá-la em caixas. Têm sido muito úteis porque a maioria dos trabalhadores era tailandeses. Parte deles voltou para a Tailândia.” Durante o ataque do Hamas de 7 de outubro, foram mortos 32 tailandeses. Estima-se que outros 32 tenham sido levados para a Faixa de Gaza: 17 foram libertados, 15 continuam reféns do grupo palestiniano.
Ran Gefen realça que entre as ajudas nos trabalhos agrícolas estão árabes de aldeias vizinhas — cerca de 20% dos cidadãos israelitas são árabes. “Há árabes a morar perto de nós. São boas pessoas e agora também vieram ajudar-nos. As pessoas que vivem nesta região do norte de Israel, na parte ocidental da Galileia, estão juntas. Nós vamos até às aldeias deles, a um restaurante ou a um pub, e eles vêm até nós. É muito bom.”
Entre as evacuações ordenadas pelo governo e as saídas por iniciativa dos próprios moradores, estima-se que, desde 7 de outubro, cerca de 253 mil israelitas tenham abandonado as suas casas, junto às fronteiras com a Faixa de Gaza (sudoeste) e com o Líbano (norte).
Cerca de 94 mil foram realojados noutras comunidades, à volta de 88 mil foram transferidos para hotéis, hostels ou guest houses e aproximadamente 70 mil decidiram sair de casa por vontade própria.
Estas operações de emergência estão enquadradas no Plano de Distância Segura, elaborado em 2015 para facilitar a evacuação de 25 comunidades localizadas num raio de quatro quilómetros desde a fronteira com Gaza e 50 outras na Galileia, num raio de cinco quilómetros desde o Líbano.
Este plano previa a transferência de populações em contexto de ameaça à sua segurança, como um ataque com mísseis, francoatiradores, uma invasão terrestre ou subterrânea.
A importância de reagir
O israelita entrevistado pelo Expresso critica a situação de abandono que afeta alguns deslocados, sobretudo os mais velhos. “Um dia qualquer, as pessoas precisam de olhar em frente, assumir responsabilidades em relação à sua vida e tomar decisões. A dada altura, eu disse à minha família: ‘Escutem, um hotel é muito bom, mas não podemos continuar aqui. Vamos sair, vamos alugar uma casa pequena’. Há pessoas que não são suficientemente fortes para tomar decisões deste tipo, como as mais velhas, que foram retiradas de casa, colocadas num hotel e agora ninguém se importa com elas.”
“Há pessoas dispostas a voltar para casa, já hoje, mesmo que não seja tão seguro, mas o Governo diz: ‘Não voltem, não voltem’. Mantém aquelas pessoas como pobres e não lhes dá oportunidade de regressar à vida. É preciso olhar sempre para o lado bom da vida. Voltar, fazer alguma coisa e não ficar a chorar o passado.”
A resiliência deste israelita — que é natural de Nahariya, perto do kibbutz onde vive — fá-lo sonhar com o dia do regresso a casa, ao contrário de muitos outros compatriotas que, traumatizados pelos acontecimentos de 7 de outubro, não querem regressar às comunidades onde viviam.
Para Ran, todavia, onde quer que se viva em Israel, a segurança será sempre ilusória. Qualquer metro de território está ao alcance dos mísseis do Hezbollah. “Os mísseis podem atingir Haifa, Telavive, Israel todo. Não é possível escondermo-nos deles. Sei que estamos muito próximos, não importa. Há mais de 20 anos [a 12 de março de 2002], dois homens [militantes da Jihad Islâmica] atravessaram a fronteira e fizeram um ataque terrorista no nosso kibbutz. Mataram cinco pessoas, alvejaram um autocarro com crianças. E ainda vivemos lá”, recorda.
Em 48 anos de vida, diz que este é o momento mais difícil que já viveu enquanto israelita. “É uma situação muito difícil. Vejo pessoas muito agitadas, outras a deixar o país. Compreendo-as, mas acho que temos de ficar”, conclui. “Não temos outro país. Este é o lugar onde podemos sair à rua, dizer ‘sou judeu’ e ninguém nos chama nomes.”
(FOTO ‘Selfie’ da família Gefen. Da esquerda para a direita, atrás: Ran, a esposa Karin e o filho mais velho Omer, de 19 anos. À frente, Shaked (12 anos) e Rotem (17) CORTESIA RAN GEFEN)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de abril de 2024 e no “Expresso”, a 12 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

