A 1 de agosto de 2014, numa outra guerra na Faixa de Gaza, entre Israel e o Hamas, um soldado israelita foi levado através de um túnel após sofrer uma emboscada. Desde então, a sua família tem-se feito ouvir em instituições de poder — das Nações Unidas ao Vaticano, do Parlamento Europeu ao Congresso dos Estados Unidos — pedindo que obriguem o Hamas a devolver os seus restos mortais. A mãe de Hadar Goldin relata ao Expresso os esforços feitos para que o resgatem e possam fazer um enterro digno

A dor da perda de um filho, em circunstâncias especialmente angustiantes, tornou Leah Goldin uma paladina dos direitos humanos. Vai para dez anos que Israel travava outra guerra na Faixa de Gaza quando uma emboscada levada a cabo por militantes do Hamas, surgidos de um túnel subterrâneo, na zona de Rafah, surpreendeu três soldados israelitas. Mataram dois e arrastaram consigo um terceiro. Era Hadar Goldin, filho de Leah que, dez anos depois, não tem certeza se foi levado vivo ou morto.
Em entrevista ao Expresso, esta israelita de 68 anos descreve o momento em que a vida da família ficou virada do avesso. “A nossa viagem começou a 1 de agosto de 2014. Decorria a operação ‘Barreira de Proteção’ e dois filhos meus, os gémeos Hadar e Tzur, participaram juntos.” Tinham 23 anos.
“Tzur comandava uma força de salvamento, entrava e saía de Gaza para resgatar companheiros [das Forças de Defesa de Israel (FDI)], uns feridos, outros mortos, muitos deles amigos. Também resgatou umas dezenas de palestinianos, apanhados no meio do fogo, usados pelo Hamas como escudos humanos. Quando lhe perguntava porque o fazia, ele respondia: ‘Mãe, não pode ser de outra forma…’”, recorda.
“Ao mesmo tempo, o seu irmão gémeo, Hadar, fazia parte de uma unidade de elite — a Brigada Givati — que guardava o corpo de engenharia que participava na destruição dos túneis subterrâneos. Depois da guerra, descobrimos que, [no momento da emboscada a Hadar], estavam a 400 metros de distância um do outro.”

Naquele 1 de agosto, iniciava-se uma trégua de 72 horas, anunciada por Estados Unidos e Nações Unidas. “Duas horas após ser declarada, o Hamas violou o cessar-fogo e atacou a equipa de Hadar. Ele era muito magro, foi levado pelo túnel. Um amigo colocou a sua vida em perigo e, contra os procedimentos, entrou no túnel e encontrou a camisa de Hadar com sangue, o seu tzitzit e o seu livro de orações”, recorda Leah.
“Procuravam um soldado ferido, mas 36 horas depois, as FDI declararam que as provas forenses recolhidas da sua roupa indicavam que não havia possibilidade de que pudesse estar vivo. Convenceram-nos a fazer o funeral. Digo ‘convenceram-nos’ porque hoje não tenho a certeza do que aconteceu… O que posso dizer é que aquilo que enterrámos foi a prova de que ele foi sequestrado, porque Hadar está nas mãos de Yahya Sinwar, o terrorista que mais sofrimento nos causa.”
Yahya Sinwar é o atual líder do Hamas na Faixa de Gaza, considerado o cérebro do ataque do Hamas de 7 de outubro. A 13 de fevereiro, as FDI divulgaram um vídeo identificando-o dentro de um túnel, nos primeiros dias da guerra. As autoridades israelitas acreditam que, atualmente, possa estar escondido na zona de Rafah (sul), onde Israel tem iminente uma ofensiva militar.
Adeus a um corpo distante
A 3 de agosto de 2014, dezenas de milhares de pessoas despediram-se de Hadar Goldin, numa cerimónia realizada no cemitério de Kfar Saba, a cidade onde ainda hoje vive a família, na região de Telavive. “Enquanto Tzur fazia a coisa mais humanitária que era resgatar palestinianos, as mesmas pessoas violaram o cessar-fogo humanitário, sequestraram o irmão e recusaram-se a devolvê-lo para que fosse feito um enterro digno na sua terra natal”, lamenta Leah.
“Agora atente nisto: Tzur foi chamado para resgatar Hadar, enquanto responsável pela força de salvamento. Claro que quando chegou ao local foi mandado para casa.” Tzur não sabia que o soldado levado pelo Hamas era o irmão.

Vergados à dor da perda de um dos seus, em circunstâncias tão angustiantes como imaginar o tratamento que lhe terá sido infligido por terroristas, os Goldin demoraram algum tempo a reagir. Até ao dia em que se cruzaram com Irwin Cotler, um antigo ministro da Justiça e procurador-geral do Canadá que defendeu prisioneiros políticos como o russo Andrei Sakharov e o sul-africano Nelson Mandela. Nascido em 1940, no seio de uma família judia, Cotler dispôs-se a defender Hadar pro bono.
“Hadar foi morto numa violação de um cessar-fogo. Uma vez que a trégua tinha sido mediada pelos Estados Unidos, pelas Nações Unidas e recebera o apoio da União Europeia, todos eles tinham de assumir responsabilidade em relação ao regresso do meu filho”, explica Leah. “Era esse o nosso sentimento enquanto família. Tínhamos esperança que a comunidade internacional nos ajudasse a trazer o nosso rapaz para casa.”
A cruzada dos Goldin levou-os ao Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas, a 22 de dezembro de 2017, quando este órgão acolheu uma reunião em formato “fórmula Arria”, convocada por um dos seus membros e realizada em registo informal.
Enquanto Leah prestou depoimento sobre o caso do filho, Cotler fez o enquadramento jurídico e também do de outro soldado israelita — Oron Shaul — levado para Gaza nas mesmas circunstâncias de Hadar, noutro incidente duas semanas antes.

“Nas Nações Unidas, Irwin Cotler fez uma coisa espantosa. Mostrou que o rapto de Hadar Goldin e Oron Shaul e a recusa em devolvê-los para que fosse feito um enterro digno é uma flagrante violação do direito internacional humanitário. Há todo um capítulo que fala de mortos, de raptos de pessoas indefesas, de pessoas desaparecidas, de recusa em entregar o corpo às famílias para seja feito um enterro digno, de maus tratos e dignidade humana”, enumera a israelita.
A sessão no CS realizou-se a três dias do Natal. Leah não acreditava que houvesse grande afluência àquela audiência, mas enganou-se. “Havia representantes de 40 países, a maioria politicamente contra Israel. No fim, houve um consenso de que Hadar e Oron deviam regressar imediata e incondicionalmente.” O trabalho frutificou. A 11 de junho de 2019, o CS aprovou, por unanimidade, a sua primeira resolução sobre pessoas dadas como desaparecidas durante conflitos armados (resolução 2474).
Na mesma linha, a 18 de janeiro de 2024, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução apelando “a um cessar-fogo permanente [na Faixa de Gaza] e ao reinício dos esforços no sentido de uma solução política, desde que todos os reféns sejam imediata e incondicionalmente libertados”. “Isto mostra que estamos certos na nossa luta, a lei está do nosso lado”, diz Leah.

Oficialmente, Israel reconhece a existência de 133 israelitas cativos do Hamas. Teme-se que a maioria não esteja viva. Hadar Goldin e Oron Shaul são dois dos nomes. Da lista fazem parte também dois civis: Avraham “Avera” Mengistu, um israelita nascido na Etiópia, com problemas mentais, que entrou em Gaza por vontade própria em setembro de 2014, e Hisham al-Sayed, um israelita árabe beduíno, raptado em 2015.
Leah, que se descreve como uma mulher religiosa, tem fé que todos sejam devolvidos às famílias sem pôr em risco mais vidas de soldados. Essa crença, e a busca desesperada por atalhos que tragam o corpo do filho até si, levou esta judia a pedir ajuda ao Papa Francisco.
“Os líderes religiosos têm muitas ligações. Mesmo o Hamas, que grita ‘Allahu Akbar’ quando nos vem matar, é permeável a alguma influência religiosa. Temos de encontrar um caminho…”, diz. “Trazer o meu filho para lhe fazer um enterro digno é uma questão puramente religiosa e moral, de acordo com todas as religiões.”
A 21 de dezembro de 2022, o Papa Francisco recebeu, no Vaticano, uma delegação de representantes dos quatro israelitas levados pelo Hamas em 2014-15. “Preparei-me para aquele momento”, recorda Leah. “O que é que eu ia dizer ao Papa? Acabei por falar-lhe de duas coisas. Primeiro, da Pietà [a famosa escultura de Miguel Ângelo que representa Jesus morto nos braços de sua mãe]. Depois, disse-lhe que, sendo ele oriundo da Argentina, percebia melhor a dor de uma mãe após o desaparecimento de um filho. No final do encontro, ele veio falar comigo e disse que é uma obrigação devolver um filho a uma mãe para ser enterrado.”
Meses depois, o Papa fez chegar aos Goldin, através do arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário para as Relações com os Estados, um relatório de página e meia sobre as diligências feitas junto de vários países. “Ele disse que apesar de ter obtido reações de indiferença, não ia desistir.”

A 16 de julho de 2008, numa polémica troca de prisioneiros entre Israel e o grupo armado libanês Hezbollah, Israel libertou cinco prisioneiros (entre os quais Samir Kuntar, condenado por terrorismo e assassínio) e devolveu os corpos de 199 militantes do Hezbollah. Em troca, recebeu dois caixões com os restos de dois soldados (Ehud Goldwasser e Eldad Regev), que tinham sido raptados pelo Hezbollah, a 12 de julho de 2006. Este caso precipitou o início da guerra de 34 dias entre Israel e o Hezbollah no verão de 2006.
Hadar e Oron nunca foram objeto de um processo semelhante. “O meu marido é historiador e sempre diz que não se pode usar métodos de uma guerra passada numa guerra futura, porque o contexto é diferente. Temos feito essa pergunta ao longo dos anos. Mas as pessoas são diferentes…”
O negócio dos mortos
A 8 de julho de 2015, o jornal israelita “The Jerusalem Post” noticiava uma tentativa de contacto com o Hamas por parte de “um mediador europeu”, em nome do Governo de Israel, com vista à “abertura de um canal de comunicação” para resgatar os dois corpos.
O Hamas recusou discutir o assunto até que Israel libertasse um conjunto de detidos. Estes tinham sido libertados em troca do militar israelita Gilad Shalit, que esteve cativo em Gaza entre 2006 e 2011, mas, entretanto, Israel tinha-os prendido novamente. “É inacreditável o quão cínico o Hamas pode ser para negociar os mortos…”, diz Leah Goldin.

Leah pede que não falemos de política, mas vai dizendo que Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro que assumiu o cargo pela primeira vez em 2009, não é mais o mesmo. “Todo o Governo é composto por pessoas que perderam os seus valores religiosos, humanitários, morais… Só pensam no seu benefício político. Esta é a nossa maior dor. E agora não somos só nós, são as famílias dos reféns e das pessoas assassinadas.”
A israelita acredita que se os casos de Hadar e Oron tivessem sido resolvidos, o ataque do Hamas de 7 de outubro nunca teria acontecido. “Enquanto o Hamas não os devolver, nós vamos ceder ao terrorismo, e eles ganham. Se tiverem sucesso nalgumas ações, vão continuar. O Hamas devia saber que manter reféns não é um trunfo, mas antes que tem um custo. Pensariam duas vezes antes de fazer outro sequestro”, diz.
“E depois de terem conseguido trocar reféns, fazem uma seleção, como na idade das trevas. É o método terrorista, deixam os mortos para o fim para os tornar um ativo melhor. Por isso, encontram legitimidade para matar mais. Temos de pensar ao contrário. O grande erro é usarmos a nossa lógica e os nossos valores na discussão com eles. Eles são terroristas.”
Para Leah, o compromisso com o imperativo humanitário passa também por garantir que quem recebe apoio cumpre a lei. Caso contrário, os doadores tornam-se cúmplices e também devem ser responsabilizados. Quando a União Europeia ajuda Gaza, por exemplo, tem de exigir um retorno.
“Não, nós não queremos deixar o povo de Gaza morrer à fome. Eu só quero trazer o meu filho para casa. E isso não custa dinheiro. É só uma questão de seriedade, de comportamento e de diálogo”, diz. “Nós estamos certos. Temos formas de trazer o nosso filho sem guerra, porque as bombas não resolvem problemas humanitários e os reféns são assuntos humanitários.”
Apontar o dedo às famílias dos reféns
O 7 de outubro uniu a dor dos Goldin à de centenas de outras famílias que viram parentes seus serem levados pelo Hamas. Mas atualmente, em Israel, nem todos são empáticos com as famílias dos reféns. Muitos culpam-nos de contribuir para um custo pesado que é a libertação de terroristas.
“Sentimos a palavra ‘custo’ como uma dor”, diz Leah. Os Goldin têm-se privado de participar em manifestações. “Jamais tomaremos parte por qualquer lado político. Somos apenas parte das famílias de reféns que agora são atacadas, o que é inacreditável. Mas não estou preocupada, porque o Governo sugeriu que as famílias dos reféns são de esquerda e os soldados mortos são de direita, portanto estou em ambos. É só estúpido.”

Leah Goldin é doutorada em Ciência da Computação pelo prestigiado Technion (Instituto de Tecnologia de Israel), de Haifa. Dá aulas na Faculdade de Engenharia Afeka, de Telavive, e trabalha como consultora independente para vários tipo de indústrias, como a de Defesa.
Além dos gémeos Hadar e Tzur, tem uma filha (Ayelet) e mais outro filho (Hemi). Tem 10 netos. O marido, Simha, é professor no Departamento de História Judaica da Universidade de Telavive.
Nos últimos dez anos, “muita gente abraçou-nos, enxugou as nossas lágrimas e disse que rezava por nós. Disseram que se identificavam com a nossa situação, mas isso é impossível”, conclui Leah Goldin.
“O problema é que ao longo do caminho — um longo caminho de nove anos e oito meses — aprendemos que muita gente, principalmente decisores, em Israel e em todo o mundo, deixaram para trás os seus valores. Direitos humanos são apenas palavras, não são uma ação. E o mais frustrante é que os interesses políticos governam tudo. Não é o ser humano que esses líderes procuram ajudar. É muito frustrante. Somos humanos, estamos perdidos, ficamos para trás.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui
