As pistas deixadas por um ataque arriscado (mas contido) sobre a relação de forças no Médio Oriente

O Irão lançou um ataque a Israel sem a intenção de ferir. Israel quer responder, mas os Estados Unidos não garantem apoio. A Jordânia é o país que melhor acolhe os palestinianos e saiu em defesa do Estado hebraico. A Arábia Saudita, que estava em rota de aproximação a israelitas e iranianos, ficou praticamente em silêncio. A ofensiva de Israel contra o Irão expôs uma geografia variável na região e um desejo comum — ninguém quer a escalada, mesmo quem não se contém na hora de dar ordem de ataque

O aparatoso ataque da República Islâmica do Irão contra o Estado de Israel, na noite de sábado, fez lembrar os dias da guerra do Golfo de 1991. Desencadeada pela invasão iraquiana do Kuwait, a 2 de agosto de 1990, este foi o primeiro conflito da história a ser transmitido em direto pela televisão.

A emissora americana CNN, fundada dez anos antes, apostou numa cobertura inédita desta guerra e ganhou dimensão mundial. A linguagem dos mísseis — como os ofensivos scuds e os defensivos patriots — entrou na retórica quotidiana dos telespectadores.

Sábado passado, após rebentar a notícia de que o Irão lançara um enxame de drones da direção de Israel, o mundo colou-se à televisão ‘à espera de ver chegar’, dali a umas horas, os 330 drones e mísseis balísticos e de cruzeiro, após uma viagem de 2000 quilómetros.

“Assistimos a isso na guerra do Golfo, mas quando os mísseis já estavam a cair em Bagdade. Agora estávamos à espera que chegassem. Quase que havia notícias sobre os países que estavam a atravessar…”, ilustra, em conversa com o Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

Da mesma forma que, então, os céus da capital iraquiana eram iluminados pelos clarões das explosões, na noite de sábado a imagem do céu escuro sobre a emblemática Cúpula do Rochedo, em Jerusalém, atravessado por projéteis e ao som das sirenes de alerta “marca uma nova era e um novo momento na história de Jerusalém, da Terra Santa e do Médio Oriente”, comentou o historiador britânico Simon Sebag Montefiore na rede social X (antigo Twitter).

A investida do Irão sobre Israel, que Teerão afirma ter sido “limitada”, visando apenas alvos militares e realizada em retaliação pelo ataque de 1 de abril contra o seu consulado em Damasco, atribuído a Israel, abriu a porta de novo conflito. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, avisou repetidas vezes que o seu país responderia a qualquer ataque iraniano. Teerão fez saber de pronto que reagirá a qualquer provocação israelita.

Esta segunda-feira, o gabinete de guerra de Israel reuniu-se para definir o tipo de resposta, em função não só dos seus objetivos, mas, sobretudo, do apoio com que poderá contar dos aliados. Muito dependerá das reações internacionais ao inédito ataque do Irão.

IRÃO. Que motivações teve para atingir Israel?

Desde logo, é percetível uma componente interna para justificar o ataque a Israel. “O Governo dos ayatollahs está muito desacreditado, há uma crise económica e a população vive mal, a polícia dos costumes tem tido atitudes radicais”, como no caso da jovem Mahsa Amini, explica Palmeira. “Uma das formas do regime se credibilizar e se unir internamente é criar inimigos externos”, como Israel e os Estados Unidos, que funcionam como “cimento de um Irão dividido”.

Em paralelo, sobram objetivos regionais. O gigante xiita do Médio Oriente, que faz fronteira com 12 países, quer ser potência hegemónica e “ser temido por todos os outros”. Isso justifica o seu apoio ao “eixo da resistência”, que passa por aliados regionais xiitas (como o libanês Hezbollah e os iemenitas hutis), mas também sunitas, como o palestiniano Hamas.

Com este ataque, Teerão quis demonstrar força e poder. “O Irão mostra força quando vende drones à Federação Russa, drones esses que têm tido papel relevante na guerra na Ucrânia. Revela capacidade tecnológica e ganha dinheiro, porque os vende a bom preço e o Irão precisa de dinheiro.” Até à guerra na Ucrânia, o Irão era o país mais sancionado do mundo, sendo depois ultrapassado pela Rússia.

O ataque foi de grande espetacularidade, mas não provocou grandes danos em Israel, que diz ter intercetado 99% dos projéteis. “O Irão não atacou Israel com mais força porque temia uma retaliação. O Irão quer ter capacidade nuclear, se é que já não tem. Sabe-se onde o urânio está a ser enriquecido e essas localizações seriam imediatamente o primeiro alvo de Israel, tal como as fábricas de drones”, acrescenta o docente da Universidade do Minho. “O Irão não quis provocar Israel ao ponto de Israel — se tivesse sofrido mortos e feridos — ter de responder obrigatoriamente para não ficar numa situação de fraqueza.”

ISRAEL. Como fica a relação com os Estados Unidos?

O ataque do Irão aconteceu numa altura em que a aliança histórica entre Israel e os Estados Unidos revelava desgaste por causa da operação militar israelita na Faixa de Gaza. O incómodo americano ficou mais visível quando, a 25 de março, Washington não exerceu o veto a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que não era do interesse de Israel.

Mas mal o Irão iniciou o ataque a Israel, ficou claro que as forças dos Estados Unidos estacionadas no Médio Oriente estariam ao lado do Estado judeu. “Israel é a única democracia daquela zona, o que significa que para os Estados Unidos e para o Ocidente isso é um elemento relevante a preservar”, comenta Palmeira. “Por outro lado, a sobrevivência do Estado de Israel depende, em grande medida, do apoio ocidental e, fundamentalmente, dos Estados Unidos.”

Por outro lado ainda, um conflito entre Israel e o Irão arrisca-se a ter consequências económicas globais, como revela a pronta reunião dos líderes do G7, no próprio dia, de onde saiu um alerta de uma “escalada regional incontrolável”.

“Interessa, neste momento, que a guerra escale e que haja um conflito que ponha em causa os preços do petróleo, que já estão a subir, e de outras matérias-primas com reflexos na inflação? Interessa ao mundo outra crise económica? Não interessa.” Mais ainda em contexto pré-eleitoral nos Estados Unidos.

Mas, realça o académico, “uma coisa é o interesse de Israel, outra coisa é o interesse de Benjamin Netanyahu, acossado internamente”, ainda antes do ataque de 7 de outubro e, mais recentemente, por causa da questão dos reféns. “E também externamente, porque a intervenção militar israelita na Faixa de Gaza provocou uma catástrofe humanitária”, com impacto emocional nas opiniões públicas internacionais.

“Netanyahu está a lutar pela sua sobrevivência política e, nesse sentido, quanto mais duro for, a priori, acha que isso o favorece. Se atacasse o Irão de seguida, sairia vencedor.” O governante israelita saiu ileso deste confronto graças à eficácia demonstrada pelo sistema de defesa do país, que neutralizou o ataque com aparente facilidade, mas a falta de apoio militar dos Estados Unidos a uma contrarresposta contra o Irão pode condicioná-lo.

JORDÂNIA. Porque acorreu a defender Israel?

O reino hachemita está particularmente exposto à conflitualidade no Médio Oriente, desde logo pela grande quantidade de palestinianos que vivem no país (outrora a Transjordânia) e a quem é concedida cidadania jordana. No atual contexto de guerra em Gaza, Amã tem sido palco de grandes manifestações contra Israel e, já no pós-7 de outubro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, afirmou que “o acordo de paz entre Israel e a Jordânia [celebrado em 1994] está na prateleira e a acumular poeira”.

Durante o ataque do Irão a Israel, contudo, o reino não hesitou. Caças da Força Aérea Jordana levantaram voo para abater drones iranianos, em defesa de Israel. Estima-se que os pilotos jordanos tenham intercetado cerca de 20% dos drones que entraram no seu espaço aéreo. E, segundo informou o Presidente francês, Emmanuel Macron, França — que tem tropas estacionadas na Jordânia — neutralizou projéteis iranianos a pedido das autoridades jordanas.

“A Jordânia tem tido uma atitude construtiva, que começa a mudar a partir do momento em que o Irão surge como ameaça e apoia o Hezbollah no Líbano, e grupos jiadistas que estão na Síria e no Iraque. Isto também é uma ameaça para a Jordânia. Há receio de um Irão hegemónico, sobretudo a partir do momento em que tenha armas nucleares.”

Recentemente, o comandante do grupo Kataib Hezbollah, uma das maiores milícias pró-iranianas que operam no Iraque, afirmou-se pronto para armar e treinar 12 mil jordanos para se juntarem à “frente de resistência” contra Israel.

ARÁBIA SAUDITA. Porque ficou equidistante o arqui-inimigo do Irão?

Ataques como o do Irão a Israel têm o potencial de deixar o Médio Oriente “à beira do abismo”, como disse, esta segunda-feira, o secretário-geral da ONU, António Guterres, no Conselho de Segurança. É também um grande revés nos planos de modernização da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo que têm vindo a aproximar-se de Israel — algumas de forma formal, através dos Acordos de Abraão.

“O Irão tende a ficar isolado na região, porque os vizinhos querem sobretudo paz. Vivem em grande medida do turismo, da atração de figuras como Cristiano Ronaldo como medidas de soft power e querem estabilidade e ser vistos do exterior como países onde há qualidade de vida”, comenta o professor Palmeira.

“Ao contrário de outros países que são fortes no hard power, como o Irão, pela capacidade militar que têm, a Arábia Saudita quer ser forte no plano económico.” Vários países do Golfo “estão a fazer a transição de uma economia assente no petróleo para energias limpas e têm consciência de que esse é o futuro. Não lhes interessam crises económicas nem a desestabilização da zona. Daí que um conjunto de países sunitas tenha boas relações com Israel, o que isola o Irão, que consideram uma espécie de perturbador regional.”

Após o ataque do Irão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita emitiu um comunicado lacónico, expressando preocupação perante a “escalada militar” e apelando a “todas as partes que exerçam a máxima contenção e poupem a região e os seus povos dos perigos da guerra”. Se é verdade que Riade desbravava um caminho de aproximação a Israel, há pouco mais de um ano, a 10 de março de 2023, fez as pazes com o Irão, através de um acordo mediado pela China, após sete anos de relações congeladas.

Os dois principais polos de poder no Médio Oriente não deixam de ser rivais a vários níveis — a Arábia Saudita é uma monarquia árabe sunita e o Irão é uma república persa xiita —, mas o atual contexto força Riade a jogar “um papel quase dúbio”, conclui Palmeira.

“Por um lado, interessa-lhe que as relações com o Irão sejam pacificadas, mas interessa-lhe também, caso o Irão revele apetência para uma maior escalada, alargar o âmbito das suas alianças, incluindo com o Estado de Israel. No fundo, a Arábia Saudita procura jogar com essa geometria variável — não alienar a relação com o Irão e, em simultâneo, equilibrar a ascensão do Irão com alianças com outros países da região.”

(IMAGEM O mapa assinala os territórios do Irão (a verde) e de Israel (a laranja) WIKIMEDIA COMMONS)

RELACIONADO: A escalada que (quase) todos tentam evitar

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de abril de 2024, e no “Expresso”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Coreia do Sul vai a votos: campanha marcada pelo preço do cebolinho e o surgimento de um ‘partido de protesto’

Os sul-coreanos escolhem, esta quarta-feira, o seu próximo Parlamento. Nos boletins de voto, haverá candidatos afetos a um novo partido antissistema que tem concentrado a insatisfação dos eleitores desiludidos com os partidos tradicionais. O custo de vida e a elevada inflação dos alimentos tornaram o cebolinho um dos protagonistas destas eleições legislativas

A visita de um chefe de Estado a um mercado, com os órgãos de informação atrás, é um momento que, à partida, não antecipa grande interesse para além do seu lado pitoresco. Mas na Coreia do Sul, a ida do Presidente Yoon Suk-yeol a um supermercado, num bairro de Seul, a 18 de março, originou grande polémica.

Junto à banca do cebolinho, o líder sul-coreano pegou num molho e disse: “Acho que 875 won [0,60€] por cebolinho é um preço razoável”. O comentário desencadeou um coro de críticas e tornou esta planta aromática um tema de campanha das eleições legislativas desta quarta-feira, com os líderes da oposição a usarem o episódio para acusar o Presidente de estar desfasado da realidade quotidiana dos cidadãos.

Rapidamente se apurou que na véspera, naquele mesmo espaço, o preço do cebolinho era de 1000 won (0,70€) e uma semana antes era vendido a 2760 won (1,90€). No próprio dia da visita de Yoon, o preço médio do cebolinho no comércio a retalho era de 3018 won (mais de 2€).

Para expor a discrepância de preços no mercado, políticos afetos à oposição desataram a comprar cebolinho a diferentes preços e a sugerir, com ironia, que o Presidente passasse a visitar os supermercados locais para controlar os preços.

Nas sondagens, o custo de vida e a elevada inflação dos alimentos surgem como grandes preocupações dos eleitores sul-coreanos. Na quarta maior economia asiática, o preço do cebolinho tornou-se assim uma arma de arremesso político.

As eleições desta quarta-feira visam eleger os 300 deputados que vão ter assento na Assembleia Nacional nos próximos quatro anos. A atual maioria parlamentar é afeta ao Partido Democrático (PD, centro-esquerda), que se opõe ao Partido do Poder Popular (PPP, conservador), do Presidente Yoon Suk-yeol.

O Presidente — que detém o poder executivo, já que na Coreia do Sul o sistema é presidencial — vai a caminho de metade do seu mandato, que será único por determinação constitucional. Ganhou as eleições presidenciais por escassos 0,73%, a margem mais magra da história do país, o que ditou um mandato de grande dificuldade. Estas eleições são vistas também como uma espécie de referendo à sua atuação.

“Ao longo dos últimos dois anos, o mandato tem sido marcado por uma forte oposição por parte da maioria simples no Parlamento, marcada por conflitos, obstruções legislativas e dificuldades na aprovação de orçamentos, a que se juntam vários escândalos e até um debate em torno da qualidade da democracia na Coreia do Sul”, diz ao Expresso Rita Durão, investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).

“Apesar do Presidente ter certos poderes independentes, reformas estruturais nas áreas da economia, educação, saúde ou do trabalho — que são cada vez mais pedidas pelos sul-coreanos e nomeadamente pelos mais jovens — necessitam de apoio dos dois maiores partidos.”

Outros temas quentes da campanha eleitoral foram a greve prolongada de milhares de médicos, em protesto contra o plano governamental de reforma do sector, a fraca taxa de crescimento demográfico da Coreia do Sul — que tem 52 milhões de habitantes e a taxa de fertilidade mais baixa do mundo — e também a corrupção.

Desde 1987, quando o país ascendeu ao clube das democracias, cinco Presidentes foram detidos, julgados ou condenados a penas de prisão, no âmbito de casos de corrupção.

Um dos casos mais recentes teve no centro a primeira dama. Kim Keon Hee foi filmada secretamente a receber uma mala Christian Dior no valor de 2200 dólares (pouco mais de 2000€). A lei anticorrupção sul-coreana proíbe os cônjuges de funcionários públicos de receberem presentes de valor superior a um milhão de won (680€).

Nas fileiras da oposição também se lida com o problema. Durante a campanha eleitoral, o líder do Partido Democrático, Lee Jae-myung, compareceu três vezes em tribunal para responder em processos por corrupção.

Novos partidos a tempo das eleições

A política sul-coreana tem sido amplamente dominada por dois partidos. Atualmente, o PPP detém a presidência e o PD goza de maioria simples na Assembleia Nacional. Em conjunto, têm quase 250 em 300 deputados. Mas o próximo Parlamento pode ser mais fragmentado.

A pensar nestas eleições, antigos líderes destas duas formações fundaram novos partidos. Em janeiro, foi fundado o Partido Nova Reforma, coliderado por um antigo presidente do PPP, Lee Jun-seok, e por um ex-primeiro-ministro, Lee Nak-yon. No mês seguinte, um grupo dissidente do PD liderado por um antigo primeiro-ministro, Lee Nak-yon, fundou o Partido Novo Futuro.

“Existe muita flexibilidade partidária na política sul-coreana, focada em líderes carismáticos, sem forte lealdade a um partido específico”, explica Rita Durão, doutoranda em Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa. “Há, muitas vezes, partidos novos ou fusão de partidos durante o período de eleições.”

À semelhança de outros países, como Portugal, o descontentamento de muitos sul-coreanos relativamente ao modus operandi dos partidos tradicionais e de sucessivos escândalos que salpicam a classe política levou à emergência de um ‘partido de protesto’ — o Partido da Reconstrução da Coreia.

“Este partido tem vindo a subir nas sondagens devido à insatisfação generalizada com o Governo e a oposição que, muitas vezes, têm membros e líderes envolvidos em escândalos. A postura mais populista, ‘antigoverno’ ou ‘antissistema’ acaba por apelar aos eleitores cansados e desiludidos com o status quo do sistema político atual”, acrescenta a investigadora.

Pedras no sapato

Fundado há pouco mais de um mês, o novo partido é liderado por Cho Kuk, um antigo ministro da Justiça que enfrenta uma pena de dois anos de prisão por fraude. O político foi condenado por usar a sua influência para beneficiar de favores académicos, nomeadamente admissões universitárias para os seus filhos e interferir na investigação de um caso de corrupção.

A 8 de fevereiro, um tribunal de recurso confirmou a sentença aplicada em primeira instância. Segundo o jornal “The Korea Times”, a justiça “não colocou Cho sob detenção imediata, alegando baixo risco de fuga, poucas hipóteses de destruição de provas e a necessidade de garantir o seu direito de defesa”.

A Assembleia Nacional determinará a agenda da política interna para os próximos quatro anos, mas não será relevante ao nível da política externa, área que é da competência do Presidente. Após subir ao poder, Yoon Suk-yeol endureceu a relação com a Coreia do Norte.

“O atual Presidente tem sido fortemente criticado pela sua tendência em alinhar-se com os Estados Unidos (fortalecendo a aliança de segurança) e com o Japão (um caso muito delicado dadas as tensões entre os dois países por razões históricas), alienando e antagonizando a China (a parceira económica mais importante da Coreia do Sul)”, conclui Rita Durão.

“Independentemente do resultado eleitoral, a agenda da política externa de Yoon Suk-yeol vai permanecer inalterada.” Mas uma vitória do seu partido criará condições parlamentares para que governe sem estar refém de uma maioria adversa e possa deixar marca no país.

(FOTO Apoiantes do Partido Democrático, de oposição ao Presidente sul-coreano, numa ação de campanha, em Seul ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui

A resiliência dos israelitas que fugiram após o ataque do Hamas e que ainda não conseguiram regressar a casa

A barbárie de 7 de outubro forçou mais de 250 mil israelitas a abandonar as comunidades onde viviam, junto às fronteiras com a Faixa de Gaza e com o sul do Líbano, onde reina o Hezbollah. Meio ano depois, muitos continuam a andar com a casa às costas. Um israelita deslocado partilha com o Expresso os custos materiais e emocionais que a família paga por esta situação. Não censura quem opta por deixar o país, traumatizado, mas garante que vai ficar. “Não temos outro país. Este é o lugar onde podemos sair à rua, dizer ‘sou judeu’ e ninguém nos chama nomes”

Os Gefen andam há exatamente meio ano com a casa às costas. Foi a 8 de outubro de 2023, o dia seguinte ao bárbaro ataque do Hamas a Israel, que esta família israelita saiu à pressa da comunidade onde vivia, no norte de Israel.

O país estava em choque, com os relatos de terror que chegavam de quem morava junto à Faixa de Gaza, e também desorientado, sem explicação para aquela inédita falha de segurança. O ataque do grupo terrorista vitimou mais de mil pessoas em Israel.

Residente no kibbutz de Matzuva, situado a escassos 1,9 quilómetros da fronteira com o Líbano, esta família estava habituada a viver sob tensão, pela presença diária, a curta distância, de um grupo armado que nasceu motivado pela luta contra Israel. “Quando estamos de pé e olhamos para a montanha, conseguimos vê-los. Conseguimos ver o Hezbollah”, diz ao Expresso Ran Gefen, de 48 anos.

Naquele 8 de outubro, porém, não foi propriamente o medo dos mísseis, rockets, morteiros ou drones lançados frequentemente pelo Hezbollah que mais assustou os israelitas que viviam ali próximo.

“Eles tinham milhares de mísseis que podiam destruir-nos, mas naquele dia não foram os mísseis que receámos. Tínhamos medo que houvesse uma invasão da gente do Hezbollah e que começassem a matar e a violar. Se mandassem mísseis, correríamos para os abrigos, ficaríamos ali um, dois dias, uma semana. Mas não conseguiríamos esconder-nos de assassinos que matam bebés e crianças e violam mulheres. Não podíamos arriscar.”

O medo de uma réplica a norte do ataque realizado pelo Hamas no sul lançou o pânico e pressionou as autoridades a atuar. “Não nos sentíamos seguros. Então as autoridades disseram: ‘Vocês estão muito próximos da fronteira, têm de sair do kibbutz’. As pessoas começaram a sair no próprio dia 7 de outubro. Fizeram as malas, pegaram nos seus carros e procuraram alojamento junto de familiares. Toda a gente estava confusa.”

Dos cerca de 1200 habitantes do kibbutz Metzuva, uns 20 voluntariaram-se para ficar para trás, para impedir assaltos ou atos de vandalismo. Passados seis meses, “continua vazio”, diz o israelita. “Se hoje formos lá, vemos quanto a erva cresceu, tem aí um metro de altura. É impressionante.”

Os Gefen — Ran, a mulher e três filhos — decidiram partir também, sem saber por quanto tempo. De início, ficaram dez dias em casa de familiares, depois cerca de quatro meses num hotel, pago pelo Governo.

“Ao começo, dorme-se num sofá ou num colchão na sala, mas, depois de alguns dias assim, não é confortável para ninguém”, recorda. Igualmente, viver num hotel foi saturante. “Tão cedo não queremos ver um hotel. Não é nada agradável quatro ou cinco pessoas viverem num quarto de 16 metros quadrados. Uma, duas semanas até se aguenta, mas durante quatro meses começa a haver conflitos.”

Nos últimos dois meses, os Gefen têm vivido numa casa arrendada, em Shavei Tzion, a cerca de 12 quilómetros da fronteira com o Líbano e muito perto do mar.

O Governo israelita ajuda com uma verba mensal. No caso desta família, os adultos recebem 200 shekel (quase 50€) e os menores 100 shekel (25€). Ran diz que a vida nómada é particularmente dura para as crianças e adolescentes, privados de rotina, do convívio com os amigos e de um ambiente familiar relaxado.

“É preciso muita energia para se mudar para outro lugar. As crianças vão para uma escola nova, têm de fazer novos amigos. Cada mudança é um grande terramoto para os filhos. E não sabemos quando isto vai terminar e quando vamos voltar para casa. Temos de continuar a viver e a trabalhar a sorrir. Mesmo que seja muito difícil, é importante fazê-lo diariamente”, diz. “Se demonstrar medo, os meus filhos também vão ter medo, e a próxima geração também e a seguinte.”

Ran é proprietário de três lojas de bicicletas. Há cerca de um mês teve de fechar uma. O país está em guerra e há dificuldades económicas. O Executivo prometeu ajuda para minimizar a perda de rendimento, mas falhou. Em outubro, Ran recebeu metade da verba prometida, mas desde então nunca mais chegou dinheiro.

“É um momento difícil porque temos de pagar o aluguer, os impostos, a água, a luz, a Internet, a contabilidade, tudo. Estes pagamentos são os normais, os clientes é que não”, afirma. “Temos esperança que tudo melhore e que um dia tenhamos paz. Tenho a certeza que do outro lado também se sofre. Ninguém está feliz. Ninguém.”

A ajuda dos voluntários

Nem sempre o filho mais velho está com a família. Omer, de 19 anos, cumpre um ano de serviço social voluntário junto de crianças com necessidades especiais. Por estes dias, Israel funciona muito graças ao trabalho voluntário de israelitas de várias partes do país e também de judeus que vivem no estrangeiro.

“Havia muita fruta nas árvores e muitas pessoas vieram ajudar a colhê-la e a colocá-la em caixas. Têm sido muito úteis porque a maioria dos trabalhadores era tailandeses. Parte deles voltou para a Tailândia.” Durante o ataque do Hamas de 7 de outubro, foram mortos 32 tailandeses. Estima-se que outros 32 tenham sido levados para a Faixa de Gaza: 17 foram libertados, 15 continuam reféns do grupo palestiniano.

Ran Gefen realça que entre as ajudas nos trabalhos agrícolas estão árabes de aldeias vizinhas — cerca de 20% dos cidadãos israelitas são árabes. “Há árabes a morar perto de nós. São boas pessoas e agora também vieram ajudar-nos. As pessoas que vivem nesta região do norte de Israel, na parte ocidental da Galileia, estão juntas. Nós vamos até às aldeias deles, a um restaurante ou a um pub, e eles vêm até nós. É muito bom.”

Entre as evacuações ordenadas pelo governo e as saídas por iniciativa dos próprios moradores, estima-se que, desde 7 de outubro, cerca de 253 mil israelitas tenham abandonado as suas casas, junto às fronteiras com a Faixa de Gaza (sudoeste) e com o Líbano (norte).

Cerca de 94 mil foram realojados noutras comunidades, à volta de 88 mil foram transferidos para hotéis, hostels ou guest houses e aproximadamente 70 mil decidiram sair de casa por vontade própria.

Estas operações de emergência estão enquadradas no Plano de Distância Segura, elaborado em 2015 para facilitar a evacuação de 25 comunidades localizadas num raio de quatro quilómetros desde a fronteira com Gaza e 50 outras na Galileia, num raio de cinco quilómetros desde o Líbano.

Este plano previa a transferência de populações em contexto de ameaça à sua segurança, como um ataque com mísseis, francoatiradores, uma invasão terrestre ou subterrânea.

A importância de reagir

O israelita entrevistado pelo Expresso critica a situação de abandono que afeta alguns deslocados, sobretudo os mais velhos. “Um dia qualquer, as pessoas precisam de olhar em frente, assumir responsabilidades em relação à sua vida e tomar decisões. A dada altura, eu disse à minha família: ‘Escutem, um hotel é muito bom, mas não podemos continuar aqui. Vamos sair, vamos alugar uma casa pequena’. Há pessoas que não são suficientemente fortes para tomar decisões deste tipo, como as mais velhas, que foram retiradas de casa, colocadas num hotel e agora ninguém se importa com elas.”

“Há pessoas dispostas a voltar para casa, já hoje, mesmo que não seja tão seguro, mas o Governo diz: ‘Não voltem, não voltem’. Mantém aquelas pessoas como pobres e não lhes dá oportunidade de regressar à vida. É preciso olhar sempre para o lado bom da vida. Voltar, fazer alguma coisa e não ficar a chorar o passado.”

A resiliência deste israelita — que é natural de Nahariya, perto do kibbutz onde vive — fá-lo sonhar com o dia do regresso a casa, ao contrário de muitos outros compatriotas que, traumatizados pelos acontecimentos de 7 de outubro, não querem regressar às comunidades onde viviam.

Para Ran, todavia, onde quer que se viva em Israel, a segurança será sempre ilusória. Qualquer metro de território está ao alcance dos mísseis do Hezbollah. “Os mísseis podem atingir Haifa, Telavive, Israel todo. Não é possível escondermo-nos deles. Sei que estamos muito próximos, não importa. Há mais de 20 anos [a 12 de março de 2002], dois homens [militantes da Jihad Islâmica] atravessaram a fronteira e fizeram um ataque terrorista no nosso kibbutz. Mataram cinco pessoas, alvejaram um autocarro com crianças. E ainda vivemos lá”, recorda.

Em 48 anos de vida, diz que este é o momento mais difícil que já viveu enquanto israelita. “É uma situação muito difícil. Vejo pessoas muito agitadas, outras a deixar o país. Compreendo-as, mas acho que temos de ficar”, conclui. “Não temos outro país. Este é o lugar onde podemos sair à rua, dizer ‘sou judeu’ e ninguém nos chama nomes.”

(FOTO ‘Selfie’ da família Gefen. Da esquerda para a direita, atrás: Ran, a esposa Karin e o filho mais velho Omer, de 19 anos. À frente, Shaked (12 anos) e Rotem (17) CORTESIA RAN GEFEN)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de abril de 2024 e no Expresso, a 12 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Resposta do Irão ao ataque israelita ao consulado de Damasco “é inevitável”, avisa líder do Hezbollah

Hassan Nasrallah discursou esta sexta-feira, numa cerimónia alusiva ao Dia de Jerusalém, nos subúrbios de Beirute. O líder do Hezbollah defendeu que “a loucura cometida por Netanyahu ao atacar o consulado iraniano na Síria levará, esperançosamente, ao fim desta batalha e a uma saída vitoriosa”. Nasrallah disse que esta agressão marca um “antes” e um “depois” na região e que a frente libanesa está aberta a participar num ataque a Israel

Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah WIKIMEDIA COMMONS

Um pouco por todo o mundo muçulmano, assinalou-se, esta sexta-feira, o Dia de Jerusalém (Al-Quds, em árabe), um evento anual que visa expressar solidariedade com o povo palestiniano. Foi instituído há 45 anos pelo então Líder Supremo do Irão e fundador da República Islâmica, ayatollah Ruhollah Khomeini.

Este ano, o dia — sempre agendado para a última sexta-feira antes do fim do Ramadão — celebrou-se com tensão acrescida já que teve lugar escassos quatro dias após um ataque que voltou a abalar o Médio Oriente: o bombardeamento ao consulado iraniano em Damasco, na Síria, atribuído a Israel.

“A resposta do Irão não respeitará um limite de tempo, os iranianos estão a pensar e a aprender, e certamente responderão”, alertou, esta sexta-feira o líder do grupo xiita libanês, Hassan Nasrallah, num discurso alusivo ao Dia de Jerusalém.

“Estai certos que a resposta do Irão ao bombardeamento do seu consulado em Damasco é inevitável”

Nasrallah disse que o ataque foi um “acontecimento significativo, que criou um ‘antes’ e um ‘depois’ em termos de consequências”.

“Em Israel, eles entraram em pânico e estão a abastecer-se de comida e água, não só no norte [próximo da fronteira com o Líbano], mas também no centro. O momento em que a resposta vai chegar depende da decisão do Líder Supremo [do Irão], e ela virá”, afirmou, numa intervenção transmitida por vídeo, numa cerimónia realizada no bairro de Dahiyeh, a sul de Beirute, capital do Líbano.

“A frente do Líbano não será fechada porque está altamente ligada a Gaza, esta é uma decisão firme”, ameaçou Nasrallah. “Estamos a travar uma batalha que escreverá a história da região.”

“Ainda não usamos as nossas principais armas”

No bombardeamento de Damasco, em que foram mortas onze pessoas, entre as quais sete membros dos Guardas da Revolução Iraniana, uma das vítimas foi o general iraniano Mohammad Reza Zahedi que “contribuiu para o desenvolvimento da resistência no Líbano”, realçou Nasrallah.

O líder do Hezbollah disse que a relação do Hezbollah com o Irão é “uma fonte de orgulho. Aqueles que devem sentir vergonha são os que procuram normalizar os laços com Israel”.

O Dia de Jerusalém aconteceu a dois dias de se assinalar meio ano da operação “Tempestade Al-Aqsa”, como o Hamas batizou o ataque a Israel, a 7 de outubro. Nasrallah considerou a investida “um acontecimento histórico que representou uma grande ameaça à sobrevivência da entidade sionista”.

“Alguns estão em negação em relação ao facto de Israel ter sido derrotado”, disse Nasrallah, acrescentando que, em meio ano de guerra, o Governo de Benjamin Netanyahu não foi capaz nem de destruir o Hamas nem de libertar os reféns.

“As atrocidades israelitas em Gaza são o resultado do fracasso e da falta de opções”

O líder do Hezbollah vaticinou que Netanyahu não tem opção que não seja acabar com a guerra, o que para ele será uma derrota. “A loucura cometida por Netanyahu ao atacar o consulado iraniano na Síria levará, esperançosamente, ao fim desta batalha e a uma saída vitoriosa.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui

Ataque a consulado iraniano na Síria é escalada significativa na conflitualidade do Médio Oriente

Mais uma linha vermelha foi ultrapassada na região do Médio Oriente. Teerão responsabilizou Israel pelo bombardeamento do seu consulado em Damasco, numa clara violação da sua soberania. O ataque vitimou mortalmente dois generais iranianos. “O nível do ataque é tal que a mensagem dissuasora do Irão terá de ser muito forte”, defende um investigador iraniano

A guerra na Faixa de Gaza e as disputas geopolíticas em seu redor assemelham a região do Médio Oriente a um movimento de ondas sísmicas libertadas após um forte tremor de terra, com epicentro no território palestiniano e réplicas por toda a região.

Na fronteira israelo-libanesa, há trocas de fogo diárias entre o Hezbollah e as forças de Israel. A leste, o Iraque é palco de atritos frequentes entre as tropas dos Estados Unidos e milícias apoiadas pelo Irão. No mar alto, os rebeldes iemenitas hutis, solidários com os palestinianos, lançam mísseis de longo alcance contra embarcações comerciais associadas a Israel.

Noutra frente, num registo não declarado, Israel e o Irão combatem-se de forma indireta. A Síria é o teatro de operações onde Telavive e Teerão mais ficam frente a frente — o país tem fronteira com Israel e dá guarida a forças iranianas. E foi precisamente nesta nação árabe que, esta segunda-feira, os dois países escalaram significativamente a tensão entre ambos.

Pelas 17 horas em Damasco (15h em Portugal Continental), um bombardeamento atingiu com precisão o consulado iraniano na capital síria, reduzindo-o a escombros. O Irão acusou Israel, que não refutou a acusação, remetendo-se ao silêncio.

Violação de duas soberanias

“Para Teerão, este ataque foi uma violação do espaço soberano sírio e, mais ainda, do seu próprio espaço soberano, porque o consulado, ao abrigo das convenções de Viena, que foram ratificadas pelos três Estados envolvidos, é território iraniano”, explica ao Expresso o professor Tiago André Lopes, da Universidade Portucalense.

“Há a perceção de que Israel está a violar direito soberano”, acrescenta o especialista em Relações Internacionais. “E as violações de soberania não podem contar só quando são a Rússia ou a China a fazê-las. Uma violação de soberania é sempre uma violação de soberania.”

Num telefonema para o seu homólogo sírio, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Hossein Amirabdollahian, responsabilizou Israel pelo que designou ser “uma violação de todas as convenções internacionais”.

Retaliação por ataque a base naval

O ataque em Damasco foi desencadeado horas depois de um drone ter alvejado uma base naval israelita em Eilat (sul), junto ao Mar Vermelho, numa ação reivindicada por uma milícia iraquiana apoiada pelo Irão (Resistência Islâmica no Iraque). O porta-voz das Forças de Defesa de Israel, Daniel Hagari, afirmou que o aparelho usado foi “fabricado no Irão” e que o ataque foi “dirigido pelo Irão”.

A retaliação a este incidente no sul de Israel fez-se sentir em Damasco. Segundo o embaixador iraniano na Síria, Hossein Akbari, o ataque “foi realizado por caças F-35” que dispararam seis mísseis contra o edifício. Só o portão ficou de pé, relatou à televisão pública iraniana.

No total, foram mortas 11 pessoas, incluindo sete membros dos Guardas da Revolução, dois deles com a patente de general. Mohammed Zahedi, veterano de 63 anos, liderou a Força Quds no Líbano e na Síria até 2016. Esta força, que adota o nome árabe da cidade de Jerusalém, é uma unidade de elite dentro dos Guardas da Revolução que coordena o apoio de Teerão a grupos armados no Médio Oriente.

O regime israelita “deveria saber que, com tais ações desumanas, nunca alcançará os seus objetivos sinistros”, reagiu o Presidente iraniano, Ebrahim Raisi. “E, dia após dia, testemunhará o fortalecimento da Frente de Resistência e a repulsa e o ódio das nações livres pela sua natureza ilegítima. Este crime covarde não ficará sem resposta.”

“O ataque de Israel ocorreu num local diplomático que é considerado território do Irão. O nível do ataque é tal que a mensagem dissuasora do Irão terá de ser muito forte”, disse ao Expresso Javad Heirannia, diretor do Centro de Investigação Científica e Estudos Estratégicos do Médio Oriente, de Teerão. “Mas não me parece que o Irão vá demonstrar essa reação de momento, porque faria com que a atenção à guerra em Gaza se voltasse para a guerra com o Irão. E traria a América para essa guerra, o que não é desejável para o Irão.”

O ataque ao consulado iraniano suscitou outra leitura nos bastidores do regime dos ayatollahs. “No Irão, há a ideia de que os Estados Unidos deram carta branca a Israel para fazer o que quiser. Há a perceção de que Israel é um proxy do braço armado dos Estados Unidos”, refere Tiago André Lopes.

Para esta perceção contribuíram declarações como as proferidas, sexta-feira passada, pelo ministro da Defesa de Israel. Yoav Gallant afirmou que “Israel está a fazer a transição da defesa para a perseguição ao Hezbollah; chegaremos onde quer que a organização opere, em Beirute, em Damasco e mais além”. E prometeu: “Onde quer que precisemos de agir, agiremos.”

“Para o Irão, Israel é sempre visto como uma espécie de instrumento”, acrescenta o investigador português. “O Irão não reconhece o Estado de Israel porque olha para Israel quase como uma espécie de colonato americano para os Estados Unidos terem um pé na região. O Irão olha para Israel do mesmo modo que a Rússia e a Sérvia olham para o Kosovo.”

Não foi a primeira vez que Israel atacou território sírio visando agentes com ligações ao Irão. Nos últimos dez anos, fê-lo com regularidade para abortar a entrega de armas enviadas por Teerão para aliados na região, seja o regime de Bashar al-Assad, na Síria, seja o grupo xiita Hezbollah, no Líbano.

Porém, “depois da guerra em Gaza, Israel atacou, sem precedentes, os principais comandantes da Força Quds. Normalmente, os alvos eram posições dos Guardas da Revolução e grupos aliados do Irão, mas recentemente Israel tem alvejado os altos comandantes dos Guardas da Revolução”, diz Heirannia.

“Israel está sob muita pressão interna e ao nível da opinião pública global”, diz o iraniano. “Uma guerra com o Irão reduzirá essa pressão e a atenção será direcionada para o Irão. Por outro lado, aproximará de Israel a América e os países ocidentais, que têm estado divididos como resultado da guerra de Gaza.” Em contrapartida, “a falta de reação por parte de Teerão levará Israel a tomar medidas mais severas contra o Irão.”

Tiago André Lopes defende que é provável que o Irão recorra aos seus proxies para retaliar o ataque que sofreu em Damasco. O contexto que envolve particularmente um deles — a Resistência Islâmica no Iraque, que visou Eilat esta semana — está atualmente efervescente.

“Os Estados Unidos estão a ser empurrados para fora do Iraque. O Governo de Bagdade está a negociar a saída das tropas americanas” — uns 2500 soldados que restam no país. “Este movimento, que também opera na Síria, poderá ser agora usado para dar uma espécie de contra resposta àquilo que aconteceu em Damasco.”

“A acontecer, o embate com Israel acontecerá sempre com uma capa, que será a proteção dos palestinianos”, conclui o professor da Portucalense. “A capa escolhida será sempre essa, porque o único outro grupo que poderia unir a região tem a oposição da Turquia que são os curdos. A questão dos curdos é mais difícil, a palestiniana é mais unificadora.”

(Bandeira do Irão junto aos escombros em que se transformou o consulado iraniano em Damasco, atingido por mísseis FIRAS MAKDESI / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui