O primeiro-ministro de Israel é procurado pelo mais importante tribunal do mundo por crimes de guerra e contra a Humanidade. Viajar para o estrangeiro passou a ser um quebra-cabeças para Benjamin Netanyahu: há 124 países signatários do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, muitos dos quais com boas relações com Israel, mas também defensores do direito e da justiça internacional
Se o primeiro-ministro de Israel, o ex-ministro da Defesa israelita e o chefe do braço militar do Hamas — presumivelmente morto por Israel em julho — entrassem num dos 124 Estados-membros signatários do Tribunal Penal Internacional (TPI), os três poderiam ser presos pelas forças policiais dos respetivos países. No entanto, “na prática é pouco provável” que isso aconteça, afirmam ao Expresso professores de Direito Internacional.
Quinta-feira passada, o TPI emitiu mandados de detenção contra os israelitas Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant, e o palestiniano Mohammed Deif por crimes contra a Humanidade e crimes de guerra. O Tribunal de Haia não tem capacidade de prender diretamente os suspeitos que procura: “É óbvio que não pode haver uma força policial internacional com autoridade para atravessar fronteiras e ir a países sem o seu consentimento”, começa por dizer William Schabas, especialista em Direito Penal Internacional e Direitos Humanos, em declarações ao Expresso.
Por outro lado, “o TPI tem no total 124 forças policiais — são as forças policiais dos seus Estados-membros”, acrescenta, referindo-se aos países que ratificaram o Estatuto de Roma, que fundou o Tribunal em 2002. É o caso de todos os países da União Europeia, mas não de nações proeminentes como os Estados Unidos, Israel, Rússia, China ou Índia, que não têm obrigação legal de cooperar com esta instância judicial.
Netanyahu acusa procurador
“A grande maioria dos Estados-membros do TPI, incluindo Portugal, prenderá certamente os suspeitos se estes entrarem no seu território. Na prática, é pouco provável que Netanyahu e Gallant se desloquem a Estados que ratificaram o Estatuto de Roma. Já dos cerca de 75 Estados que não o ratificaram, muitos não são o que se poderia chamar de ‘amigos de Israel’, e por isso também não é provável que Netanyahu se desloque a esses países”, afirma o professor da Universidade de Middlesex (Reino Unido) e da Universidade Leiden (Países Baixos).
Netanyahu não tardou a reagir com “repugnância” às “ações absurdas e falsas” do Tribunal de Haia, que classificou de “antissemita”, “tendencioso” e “discriminatório”. Segundo o primeiro-ministro israelita, o procurador-geral do TPI, Karim Khan, é “corrupto” e “está a tentar salvar-se de acusações de assédio sexual e por juízes tendenciosos”, atirou, referindo-se às notícias publicadas pela imprensa britânica e americana, que acusam Khan de alegado assédio sexual a uma jovem da equipa de acusação.
Quem cumpre e quem bate o pé ao TPI?
“Um total de 124 Estados — cerca de dois terços dos países do mundo — aderiram ao tratado do Tribunal Penal Internacional”, lembra Diane Marie Amann, professora de Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos. “Este compromisso de cooperação tem sido interpretado significando que os Estados-membros devem executar as ordens do TPI. Essas ordens podem dizer respeito ao acesso a testemunhas ou a provas físicas, e podem também incluir mandados que visem a detenção de indivíduos”, acrescenta ao Expresso.
Só que a emissão dos mandados de captura contra Netanyahu não colheu unanimidade entre os 124 países e, na prática, há quem tenha argumentos para não o fazer. É o caso de Viktor Orbán, primeiro-ministro da HUNGRIA, país que aderiu ao TPI em 1999 e ratificou o Estatuto em 2001, quando, em Budapeste, estava no poder… Viktor Orbán. Agora, o chefe do Governo classificou os mandados do TPI de “escandalosamente descarados” e “cínicos”. Numa atitude desafiadora, revelou a intenção de convidar Netanyahu para visitar a Hungria.
“Isto é errado por si só”, disse na sexta-feira, em entrevista à rádio estatal húngara. “Portanto, não há outra escolha: temos de confrontar esta decisão e, por isso, ainda hoje convidarei o primeiro-ministro dos israelitas, o Sr. Netanyahu, para visitar a Hungria.”
Orbán já antes fizera saber que não cumpriria o mandado de detenção contra Vladimir Putin, emitido a 17 de março de 2013, por “responsabilidade individual” nos crimes de guerra de “deportação ilegal” e “transferência ilegal” de crianças das zonas ocupadas da Ucrânia para território russo.
Ao nível de Orbán, em defesa férrea dos governantes israelitas, está o Presidente da ARGENTINA, Javier Milei, que discordou da posição do TPI e descreveu os mandados como “um ato que distorce o espírito da justiça internacional”. Acrescentou: “Esta resolução ignora o direito legítimo de Israel de se defender contra ataques constantes de organizações terroristas como o Hamas e o Hezbollah”.
Na mesma linha, outro país latino-americano colocou-se ao lado de Israel: o PARAGUAI. “Esta decisão viola o direito legítimo de Israel de se defender. O Paraguai rejeita veementemente a exploração política do direito internacional e considera que esta decisão compromete a legitimidade do Tribunal, além de enfraquecer os esforços pela paz, segurança e estabilidade no Médio Oriente”, defendeu o Governo.
Aliado histórico de Israel, o Paraguai foi um dos países que seguiram os Estados Unidos no reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, durante a Administração Trump, tendo decidido mudar a embaixada de Telavive para a cidade santa. Recentemente, o Presidente israelita, Isaac Herzog, convidou o homólogo paraguaio, Santiago Peña, para realizar uma visita de Estado a Israel, coincidente com a viagem do paraguaio para inaugurar a embaixada em Jerusalém.
Como se posicionam os europeus?
Todos os 27 membros da União Europeia (UE) são Estados signatários do TPI. Além da estrondosa reação da Hungria, as posições dos europeus oscilam entre países que acolhem a decisão do TPI e garantem que a vão cumprir e outros que denunciam o que dizem tratar-se de uma posição política, sem concretizar como vão atuar.
‘Cumprimos o mandado e vamos prender’
Nos PAÍSES BAIXOS, onde recentemente houve incidentes envolvendo grupos pró-Palestina e adeptos de um clube israelita, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Caspar Veldkamp, defendeu, diante do Parlamento, que o país irá atuar em conformidade com os mandados. “Os Países Baixos respeitam, obviamente, a independência do TPI. Somos obrigados a cooperar com o TPI e o fá-lo-emos.” Veldkamp tinha uma visita a Israel prevista para esta semana, que foi cancelada, após conversa telefónica com o homólogo israelita, Gideon Sa’ar, que lhe comunicou desilusão pela posição de Amesterdão.
Também a vizinha BÉLGICA defendeu que “os responsáveis pelos crimes cometidos em Israel e Gaza devem ser processados ao mais alto nível, independentemente de quem os cometeu”, via Ministério dos Negócios Estrangeiros. Petra De Sutter, vice-primeira-ministra, subiu a fasquia e afirmou que “a Europa deve cumprir” os mandados, instando as nações europeias a imporem sanções económicas e a suspenderem os acordos comerciais com Israel. “Os crimes de guerra e os crimes contra a Humanidade não podem ficar impunes.”
PORTUGAL integra o grupo dos países que comunicaram a sua posição de forma clara. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, disse que o país está “vinculado” às decisões do TPI, enquanto seu Estado-membro, e garantiu que Portugal vai cumprir as suas “obrigações internacionais”, caso haja necessidade.
‘Cumprimos o mandado, mas a decisão é má’
Um conjunto de países tem posição híbrida, afirmando o seu compromisso com o TPI, mas criticando a equiparação entre Israel e o Hamas. É exemplo a ÁUSTRIA, onde o ministro dos Negócios Estrangeiros, Alexander Schallenberg, considerou a deliberação “totalmente incompreensível” e os mandados contra os governantes israelitas “ridículos”. Viena diz-se, porém, forçada a efetuar detenções se Netanyahu e Gallant puserem pé no seu território. “O Direito Internacional não é negociável e aplica-se em todo o lado, em todos os momentos. Mas esta decisão é um mau serviço à credibilidade do Tribunal.”
Petr Fiala, primeiro-ministro da REPÚBLICA CHECA, disse que “a infeliz decisão do TPI mina a autoridade noutros casos, ao equiparar os representantes eleitos de um Estado democrático aos líderes de uma organização terrorista islâmica”. Concordando com as críticas de Fiala, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jan Lipavsky, disse que a Chéquia “defenderá sempre a adesão ao direito internacional”.
A posição da ITÁLIA pode encaixar-se nesta categoria, mas depende de quem fala. O ministro da Defesa, Guido Crosetto, defendeu que, embora Roma considere a decisão do TPI “errada” ao colocar “ao mesmo nível” os líderes de “uma organização terrorista criminosa” e os do país “que tenta erradicá-la”, a Itália é obrigada a prender Netanyahu e Gallant. “Ao aderir ao tribunal, devemos aplicar as suas decisões”, disse. “Todos os Estados que aderirem são obrigados — a única forma de não o aplicar será retirar-se do tratado.”
Já o ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, Antonio Tajani, reiterou apoio ao TPI, “lembrando sempre que o tribunal deve desempenhar um papel jurídico e não político”, disse. “Avaliaremos em conjunto com os nossos aliados o que fazer e como interpretar esta decisão.” Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro, instalou a confusão ao expressar total apoio a Netanyahu. “Ele é bem-vindo” a Itália. “Os criminosos de guerra são outros.”
‘Cumprimos o mandado, pela Palestina’
No decurso da guerra em Gaza, dois membros da UE reconheceram o Estado da Palestina. Um deles foi ESPANHA, que “cumprirá com os seus compromissos e obrigações”, disse o Governo de Pedro Sánchez.
“Estas acusações [do TPI] não podiam ser mais graves”, afirmou o primeiro-ministro da IRLANDA. Simon Harris considerou a situação no território palestiniano “uma afronta à Humanidade” e acrescentou: “Quem quer que esteja em condições de ajudar o TPI a realizar o seu trabalho vital deve agora fazê-lo com urgência”.
‘Estamos vinculados, mas vamos analisar’
Acusando a sensibilidade do caso, quer Berlim quer Paris expressaram hesitações. Annalena Baerbock, ministra dos Negócios Estrangeiros da ALEMANHA, disse que o seu país está “vinculado” ao TPI e respeita o direito internacional. Porém, se Netanyahu e Gallant serão ou não detidos no país é, por enquanto, uma questão “teórica” que a Alemanha irá “examinar”.
Já em Paris, um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Christophe Lemoine, afirmou que FRANÇA reagirá “em linha com o Estatuto do TPI”, mas recusou-se a dizer se o país tenciona prender os governantes israelitas. “É algo legalmente complexo, por isso não vou comentar hoje.”
A 21 de maio, quando o procurador-geral do TPI, Karim Khan, anunciou que ia solicitar mandados de detenção para os dois governantes israelitas e três dirigentes do Hamas, o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês emitiu um comunicado: “A França apoia o TPI, a sua independência e a luta contra a impunidade em todas as situações.”
No REINO UNIDO, que Netanyahu visitou no ano passado, o discurso é de “respeito pela independência do TPI, que é a principal instituição internacional para investigar e processar os crimes mais graves de interesse internacional”. Um porta-voz do primeiro-ministro Keir Starmer disse que o país “cumprirá as suas obrigações legais” e, questionado se o Governo irá executar os mandados, acrescentou: “Não vamos entrar em suposições”.
Emily Thornberry, presidente (trabalhista) da comissão de Negócios Estrangeiros do Parlamento britânico, foi mais esclarecedora. “Se Netanyahu vier à Grã-Bretanha, a nossa obrigação ao abrigo da Convenção de Roma será prendê-lo conforme o mandado do TPI”, disse. “Não é bem uma questão de dever, somos obrigados a fazê-lo porque somos membros do TPI.”
Estados Unidos de portas escancaradas
Seja Joe Biden ou Donald Trump o inquilino da Casa Branca, Netanyahu será sempre bem-vindo em Washington. Israel tem uma aliança de décadas com os Estados Unidos o que lhe garante amigos nas fileiras dos dois grandes partidos norte-americanos. A 24 de julho passado, o primeiro-ministro israelita ultrapassou Winston Churchill e tornou-se o líder mundial a discursar mais vezes no Congresso dos Estados Unidos.
Os ESTADOS UNIDOS, que não são membros do TPI, arrasaram a deliberação da justiça internacional. “A emissão de mandados de detenção pelo TPI contra os líderes israelitas é ultrajante”, defendeu Biden. “Deixem-me ser claro mais uma vez: seja o que for que o TPI possa implicar, não há equivalência — nenhuma — entre Israel e o Hamas. Estaremos sempre ao lado de Israel contra as ameaças à sua segurança.”
Em maio passado, quando o procurador-geral do TPI solicitou os mandados, Washington opôs-se e afirmou que não tinha sido dada aos israelitas a possibilidade de investigarem, eles próprios, as acusações que lhe faziam. Agora, uma das reações mais inflamadas partiu de Lindsey Graham, senador há mais de 20 anos pelo Partido Republicano, que ameaçou os países aliados com sanções se executarem o mandado do TPI.
“A qualquer aliado, Canadá, Grã-Bretanha, Alemanha, França, se tentarem ajudar o TPI, iremos sancionar-vos”, disse, à Fox News. “Se ajudarem o TPI como nação e forçarem o mandado de captura contra Bibi [Netanyahu] e Gallant, o ex-ministro da Defesa, vou impor-vos sanções como nação”, disse. “Terão de escolher entre o TPI desonesto ou a América.”
O CANADÁ, precisamente um dos países ameaçados por Graham, foi inequívoco no apoio à decisão do TPI. “Sempre disse que é muito importante que todos cumpram o direito internacional”, disse o primeiro-ministro, Justin Trudeau. “Defendemos o direito internacional e cumpriremos todos os regulamentos e decisões dos tribunais internacionais.”
Uma das reações mais simbólicas em relação a esta questão foi a da ÁFRICA DO SUL, que é membro do TPI e está na origem de um processo contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça, o órgão jurisdicional da ONU. Pretória considerou a deliberação “um passo significativo na direção da justiça para os crimes contra a Humanidade e os crimes de guerra na Palestina”.
O Governo sul-africano declarou “o seu compromisso com o direito internacional” e apelou à comunidade internacional “que defenda o Estado de Direito e garanta a responsabilização por violações dos direitos humanos”. Esta posição tem, porém, uma fragilidade…
Em 2015, a África do Sul optou por não prender o então Presidente do Sudão, Omar al-Bashir, acusado de crimes de guerra na região do Darfur e alvo de um mandado do TPI. Mais tarde, o Supremo Tribunal de Recurso da África do Sul decidiu que a não detenção de Bashir fora ilegal.
Entre os países árabes e muçulmanos que se pronunciaram, há unanimidade em relação à urgência em sentar Israel no banco dos réus. A JORDÂNIA, que tem um tratado de paz com Israel há 30 anos, defendeu que a decisão do TPI “deve ser respeitada e aplicada sem seletividade”. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, acrescentou que a decisão do tribunal é “uma mensagem para toda a comunidade internacional, que enfatiza a necessidade de travar os massacres contra o povo palestiniano”.
O vizinho IRAQUE valorizou “a postura corajosa e justa assumida pelo TPI”, disse o porta-voz do governo, Basim al-Awadi. “Esta decisão histórica afirma que, por mais opressão que persista e tente prevalecer, a justiça e a verdade irão enfrentá-la e impedir que domine o mundo.”
Do Magrebe, a ARGÉLIA descreveu o veredicto do TPI como “passo importante e avanço tangível para acabar com décadas de impunidade e a evasão de responsabilização e punição por parte da ocupação israelita”.
Durante os meses de guerra em Gaza, o Presidente da TURQUIA — que várias vezes abriu as portas ao Hamas — tem sido das vozes mais críticas de Israel, ao ponto de comparar Netanyahu a Hitler. Recep Tayyip Erdogan elogiou a “decisão corajosa” do TPI e disse que os mandados de detenção “renovam a confiança da humanidade no sistema internacional”.
“Emitir um mandado de detenção não é suficiente”, reagiu o Líder Supremo do IRÃO, o ayatollah Ali Khamenei. “Deveria ser emitida uma sentença de morte para Netanyahu.”
Texto escrito com Mara Tribuna.
(FOTO Edifício do Tribunal Penal Internacional, em Haia, Países Baixos PETER DEJONG / AP)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de novembro de 2024. Pode ser consultado aqui