Dia Internacional da Educação: Em Gaza, os livros são usados para acender fogueiras onde as pessoas cozinham e se aquecem

Na Faixa de Gaza, não há razões para celebrar o Dia Internacional da Educação, que se assinala esta sexta-feira. Escolas e universidades são alvos de guerra e, pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano. Asma Mustafa, uma professora de inglês que já se deslocou oito vezes, tenta contrariar as adversidades

Asma Mustafa é professora de inglês na Faixa de Gaza desde 2008 CORTESIA ASMA MUSTAFA

A guerra está a tornar a escola uma memória cada vez mais longínqua para centenas de milhares de jovens da Faixa de Gaza. Pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano.

A esmagadora maioria das escolas e universidades foram arrasadas e as que se aguentaram de pé deixaram de ser centros de estudo e transformaram-se em abrigos para deslocados.

Na ausência de educação formal, o conhecimento continua a transmitir-se graças a pessoas determinadas como Asma Mustafa. Esta professora de inglês de 38 anos, que até ao início da guerra trabalhava numa escola pública para raparigas, no norte de Gaza, desenvolveu uma iniciativa ao estilo de “primeiros socorros educativos”.

“A educação parou desde o 7 de Outubro e ninguém se preocupou mais com as crianças de Gaza. Fiquei muito inquieta pelo facto de os alunos ficarem sem aulas pelo segundo ano consecutivo. É algo muito difícil de aceitar para uma mãe e professora”, diz ao Expresso Asma Mustafa, mãe de duas meninas pequenas.

“Ao mesmo tempo, comecei a olhar à minha volta, nos abrigos e nos acampamentos de deslocados… As crianças estavam perdidas. Segui o meu coração e o meu dever, enquanto professora e mãe para com as crianças deslocadas que me rodeiam, e decidi tornar-me a escola delas”, partilha. “Assumi a responsabilidade de começar a ensiná-las de forma espontânea.”

A professora improvisa salas de aula em todos os locais para onde é deslocada
CORTESIA ASMA MUSTAFA

Cerca de um mês após o início da guerra, a professora empreendeu uma iniciativa educativa a que chamou “Uma História Por Dia”.

“Conto histórias às crianças, histórias com uma lição de vida ou uma mensagem. Histórias que lhes deem força e transmitam ensinamentos sobre a vida. Quero que essas histórias as levem a ter melhores comportamentos e a saber como solucionar problemas. Foco-me muito na resolução de problemas e nas competências para a vida.”

Além das histórias, Asma transmite-lhes conhecimentos básicos de inglês, árabe e matemática. Cria jogos, põe-nas a pintar e a desenhar, organiza atividades de grupo, dá-lhes dicas de higiene pessoal (quando doenças se espalham pelos acampamentos) e promove brincadeiras, para que as crianças façam alguma descarga emocional e lidem menos mal com a sua condição de deslocados.

“Às vezes, reúno-as à volta do meu leitor de MP3. Fico feliz quando elas saltam e começam a bater palmas. Sinto os seus batimentos cardíacos”, diz. Asma ensina-as a dançar a Dabkha, a dança tradicional palestiniana, inscrita, em 2023, na lista da UNESCO de Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Tudo contribui para as ajudar a lidar com o trauma da guerra. “Elas ficam felizes por encontrar alguém que as possa ajudar, alguém que é líder, como um professor. Elas acreditam nos professores.”

As sessões são importantes para alhear as crianças do som das bombas, do zumbido dos drones, da omnipresença da guerra, dia e noite. Permitem também que convivam entre si, criem uma rotina e alimentem a esperança de que um dia possam voltar à escola.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

“Nas sessões, também as escuto”, acrescenta a professora. “Os meus alunos estão cheios de histórias e, nas tendas, os pais não têm tempo para os ouvir”, ocupados que estão a arranjar meios de sobrevivência.

As próprias crianças não são poupadas às tarefas de emergência. As horas que deviam passar na escola, são usadas a procurar lenha para as fogueiras, a carregar jerricãs de água ou à espera de comida em pontos de distribuição.

Muitas ficaram órfãs e passam a ser ‘mãe ou pai’ de irmãos mais novos. São obrigadas a tornarem-se adultos à força.

As “turmas” de Asma são compostas por crianças que vivem nas tendas em redor da sua. À semelhança da esmagadora maioria dos habitantes de Gaza, também ela teve de fugir da casa onde vivia, no norte do território. Fala ao Expresso a partir do campo de refugiados de Nuseirat, no centro de Gaza.

“Já me desloquei por oito vezes: duas para abrigos e seis para tendas. Já me desloquei quatro vezes dentro da mesma zona humanitária, como lhe chama Israel”, diz. “Já testemunhei sete guerras antes desta, mas nunca antes tive de sair de casa, a não ser no dia 7 de outubro de 2023.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

A cada nova etapa rumo ao desconhecido, Asma leva, junto com os pertences, o material educativo que consegue arranjar, por vezes comprado a preços elevados. Chegada a um novo destino, monta “a sua escola”.

“A vida é miserável. Perdemos as casas, perdemos tudo. Agora, para cozinhar, usamos lenha, papéis, tudo o que se consegue arranjar. Povos do mundo, acordem, em Gaza cozinhamos com fogo! Os livros que havia em Gaza foram queimados para as pessoas fazerem fogueiras e poderem cozinhar alimentos”, alerta a professora.

“Mas o mais importante para mim é continuar com as crianças à minha volta. Enquanto for viva, irei ensinar, haja ou não quadro, giz, papel ou lápis. O professor é a escola. O professor é o livro. O professor é a caneta.”

Os números da destruição

Segundo o último relatório do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), com data de 14 de janeiro, este é, até ao momento, o impacto da guerra no sector da educação:

  • 658 mil alunos não têm educação formal;
  • 12.241 estudantes e 503 funcionários educativos, incluindo professores, foram mortos;
  • 88% dos edifícios escolares (496 de um total de 564) foram destruídos ou parcialmente danificados;
  • 51 edifícios universitários foram destruídos e 57 danificados.

A 18 de abril de 2024, 25 relatores especiais das Nações Unidas expressaram grande preocupação com o padrão dos ataques a escolas, universidades, professores e estudantes, o que parecia configurar, nas suas palavras, “a destruição sistémica do sistema educativo palestiniano”.

Israel sempre rejeitou as acusações, acusando o Hamas de usar os estabelecimentos de ensino para atividades terroristas e a população estudantil como refém.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

Quaisquer que sejam as adversidades, e em Gaza são muitas, Asma Mustafa mantém um compromisso diário com a educação, por meio de métodos de ensino originais e inovadores.

No seu website, por exemplo, ela disponibiliza “45 estratégias inovadoras de ensino de inglês como língua estrangeira”. Nos tempos da pandemia de covid-19, promoveu a iniciativa “Teachers Behind Screens” (Professores atrás de ecrãs), para treinar professores para o ensino de forma virtual.

Com o projeto “I Believe I Can Fly” (Acredito que posso voar), pôs os alunos em contacto com dezenas de países. “As crianças não estão autorizadas a viajar devido ao cerco imposto a Gaza. Estão a perder a comunicação com todo o mundo.”

Em 2020, esta professora foi distinguida com o Global Teacher Award, atribuído pela organização privada indiana AKS (Alert Knowledge Services), que se dedica ao reconhecimento de “educadores excecionais pela eminência e eficácia do seu ensino, pela sua liderança especializada e pelo seu envolvimento com a comunidade”. Em 2022 foi considerada a melhor docente na Palestina.

Formada pela Universidade Islâmica de Gaza, Asma entrou para os quadros do Ministério da Educação em 2008, quando o Hamas já controlava o território.

“Dediquei-me a ensinar as crianças por meio de uma aprendizagem ativa. Quero ajudá-las a pensar de forma crítica e profunda e não apenas a receber informação dos professores, como acontecia comigo quando estudava. Achei que precisava de mudar o método tradicional com que recebi educação. Adoro ensinar com recurso a jogos e acredito nesse tipo de ensino. Quero que os cérebros dos meus alunos estejam frescos e capazes de pensar e repensar.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

O contexto em que se vive em Gaza nos últimos anos — sob bloqueio desde 2007 e, desde então, sob intensos bombardeamentos de Israel, por várias ocasiões —, condena as crianças e jovens a uma carência particular. “Há uma necessidade massiva dos alunos terem mais um amigo do que um professor”, diz Asma. “Decidi ser amiga deles. Em Gaza, as crianças acreditam nos professores.”

No ano em que Asma começou a trabalhar como professora, em 2008, Gaza passou por uma guerra com Israel. “Eu era jovem, tinha 21 anos e era muito próxima dos meus alunos. Após 21 dias de guerra, voltámos às escolas e foi pedido aos professores que se dedicassem à descarga emocional dos alunos. Jogamos, brincamos, deixamos as crianças fazer desenhos e contar as suas histórias para expressarem os sentimentos.”

A mesma tarefa parece agora ser mais difícil de concretizar. “Eu não esperava que a guerra durasse 15 meses. Ninguém esperava”, admite. Por todo o mundo, crises mostram que quanto mais tempo as crianças ficam fora da escola, maior é o risco de não regressarem.

Estima-se que, na Faixa de Gaza, mais de 40% da população tenha até 14 anos. Se continuarem privados de educação, um grande segmento da sociedade fica com o futuro em risco. “Deixar de estudar durante algum tempo torna-se um grande problema. Se a guerra continuar, também o futuro da Palestina ficará perdido.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Mundo ansioso à espera de um mestre na arte de agitar águas

Donald Trump tem à espera problemas herdados e outros criados por si após ser eleito

Donald Trump venceu as eleições há mais de dois meses e, apesar de só na segunda-feira se tornar o 47º Presidente dos Estados Unidos, parece estar em funções há muito tempo. O cessante Joe Biden já pouco se ouve e muito do que Trump diz assume importância de Estado.

A imprevisibilidade com que governou entre 2017 e 2021 — que o levou a aproximar-se da Coreia do Norte, mas também a ameaçar desproteger aliados da NATO — gera agora ansiedade, potenciada pela sua tendência para simplificar a abordagem de problemas complexos. Da invasão russa da Ucrânia à cobiça do Canal do Panamá, tem-se revelado um mestre na arte de agitar águas à custa de argumentos pouco consistentes, que ele vai adaptando ao sabor da maré.

UCRÂNIA

Em março de 2023 Trump começou a dar sinais de que tencionava voltar à Casa Branca e escolheu a guerra na Ucrânia para puxar dos galões. Em entrevista à Fox News disse que resolveria o conflito “em 24 horas”, sem revelar como. Garantiu também que as negociações com Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky seriam “fáceis”. A 7 de janeiro, numa conferência de imprensa em Mar-a-Lago, refez o calendário: “Espero ter… seis meses.” A determinação em acabar com a guerra mantém-se, o que obrigou Zelensky a mudar de discurso. Se o seu Plano de Paz de 10 Pontos omitia qualquer negociação, com Trump em cena o ucraniano passou a admitir a necessidade de “meios diplomáticos” para alcançar “uma paz duradoura”. Em Moscovo, a 19 de dezembro, na sessão anual com jornalistas e cidadãos, Putin disse estar disposto a reunir-se com Trump: “Estamos prontos, mas o outro lado precisa de estar pronto para negociar e para um compromisso.”

GAZA

Com o anúncio do cessar-fogo entre Israel e o Hamas (ver texto nesta edição), Trump averbou uma vitória antes mesmo de entrar na Casa Branca. Depois de ganhar as eleições, ameaçara fazer “rebentar o inferno no Médio Oriente” se os reféns não fossem libertados antes da tomada de posse. O acordo deveria entrar em vigor na véspera. Nas negociações em Doha, no Catar, além da equipa de Biden, participou Steve Witkoff, empresário judeu que Trump nomeou enviado especial para o Médio Oriente. Foi ele quem voou de Doha até Jerusalém e forçou Benjamin Netanyahu a quebrar o shabbat para discutir o acordo. A imprensa israelita diz que a conversa foi “tensa”.

CHINA

O primeiro Governo de Trump foi marcado por uma guerra comercial e tecnológica com a China. A disputa foi tal que durante a pandemia Trump substituiu “coronavírus” por “vírus da China”. O convite a Xi Jinping para a tomada de posse (não estará) pode indiciar predisposição diferente, apesar de Trump ter escolhido um forte crítico de Pequim, Marco Rubio, para chefe da diplomacia. Em campanha, prometeu impor taxas de 10% a 60% sobre os produtos chineses. Questionado sobre o que faria se a China invadisse Taiwan, descartou a resposta militar: “Diria: se forem para Taiwan, peço desculpa, mas vou tributar-vos entre 150% e 200%.”

MÉXICO

Dos mais de 11 milhões de migrantes em situação irregular nos Estados Unidos, uma larga fatia vem do México. Após um primeiro mandato marcado pela questão do muro na fronteira sul, Trump volta à carga e promete castigar o vizinho com mais taxas aduaneiras se não apresentar serviço a conter os fluxos de migrantes e de drogas. Mas não só: “Vamos mudar o nome do golfo do México para golfo da América. É um anel lindo e cobre muito território”, propôs Trump. Há cerca de 100 dias no poder, a Presidente, Claudia Sheinbaum, respondeu sugerindo que o continente passasse a designar-se “América Mexicana”, como consta num documento antigo. “O México é um país livre, independente e soberano. Coordenámos, colaborámos, mas nunca nos subordinámos.”

CANADÁ

Trump repetiu a fórmula com o vizinho do Norte e ameaçou taxar em 25% todos os produtos importados do Canadá. “Esta tarifa permanecerá em vigor até que as drogas, em particular o fentanilo, e todos os estrangeiros ilegais deixem de invadir o nosso país!”, justificou. Justin Trudeau, o demissionário primeiro-ministro canadiano, retaliou: “Nenhum americano quer pagar mais 25% pela eletricidade, petróleo e gás vindos do Canadá.” Trump sugeriu que “a linha traçada artificialmente” na fronteira desaparecesse e o Canadá se tornasse o 51º estado da federação. Retorquiu Trudeau: “Os canadianos são extraordinariamente orgulhosos de ser canadianos. Uma das formas mais fáceis de nos definirmos é: ‘Não somos americanos’.”

IRÃO

Em 2018, Trump rasgou o acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão. Questionado sobre um putativo ataque preventivo às instalações nucleares irania­nas, respondeu: “Não falo sobre isso, é estratégia militar. Só uma pessoa estúpida responderia.” Volta ao poder numa altura em que dois pivôs regionais do Irão estão enfraquecidos: o palestiniano Hamas e o libanês Hezbollah. “Espero que Trump conduza a região e o mundo à paz e não contribua para o derramamento de sangue ou a guerra”, disse à NBC, esta semana, o Presidente iraniano, Masoud Pezeshkian. “Vamos reagir a qualquer ação. Não tememos a guerra, mas não a procuramos.”

NATO

“Há anos, quando comecei com isto, não sabia muito sobre a NATO, mas acertei. Disse que eles estavam a aproveitar-se”, recordou Trump recentemente. O magnata sempre se insurgiu contra os membros que não gastavam 2% do PIB em defesa. Chegou a dizer que encorajaria a Rússia a atacar os incumpridores. Há dias, defendeu que a percentagem deveria ser de 5% (ver texto nestas páginas).

PANAMÁ

“É uma vergonha o que aconteceu no Canal do Panamá. Jimmy Carter deu-lho por 1 dólar e eles deveriam tratar-nos bem”, acusou Trump. “A China está nas duas extremidades do Canal do Panamá. A China está a gerir o Canal do Panamá.” Para o Panamá, esta via de cerca de 80 km é o seu principal ativo económico. José Raúl Mulino, na presidência desde 2024, não quer reagir até Trump ser investido. Com sorte, este contentar-se-á com um tratamento mais favorável para os seus navios.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de janeiro de 2025, e no “Expresso”, a 17 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Marco Rubio, o latino que vai liderar a diplomacia dos Estados Unidos e tratar do “quintal da América”

Esta quarta-feira, Marco Rubio tem presença marcada no Comité de Relações Externas do Senado dos Estados Unidos para ser confirmado secretário de Estado. Pela primeira vez, a pasta será entregue a um latino, filho de imigrantes cubanos e casado com uma filha de colombianos. “A América Latina será certamente uma prioridade maior do que foi para Biden devido à obsessão de Trump com a imigração”, defende um estudioso da política norte-americana para a região

Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, o secretário de Estado será um latino. Marco Rubio, o escolhido por Donald Trump para chefiar a diplomacia do país, nasceu em Miami, no seio de um casal de imigrantes cubanos.

Mario e Oriales abandonaram a ilha em 1956, três anos antes da revolução que colocou Fidel Castro no poder em Havana. El Comandante ficou no cargo 47 anos, seguidos de mais 12 com o seu irmão Raul ao leme do país.

Os Rubio continuaram pelos EUA e obtiveram a cidadania norte-americana em 1975. Mario trabalhou sobretudo como barman e Oriales como empregada de hotel. Tiveram quatro filhos — Marco foi o terceiro a nascer, a 28 de maio de 1971.

O ódio ao comunismo

Marco cresceu no seio de uma comunidade de centenas de milhares de migrantes, exilados e dissidentes políticos, obcecada com a ideia de usar todo o poder dos EUA para punir o regime castrista, nomeadamente através do voto. Nesse contexto, também ele desenvolveu um ódio ao comunismo.

Formou-se em Direito, casou com Jeanette Dousdebes, filha de imigrantes colombianos, e teve quatro filhos. Coroou o sonho americano ao entrar para o Congresso como senador, pela primeira vez em 2010, pelo estado da Florida. O seu livro de memórias tem como título “An American Son” (Um Filho Americano).

Desde a primeira eleição para o Congresso, Rubio tem merecido a confiança ininterrupta dos eleitores, em especial da comunidade cubana de Miami. Esta quarta-feira, comparecerá diante do Comité de Relações Externas do Senado para responder a perguntas dos seus pares visando a sua confirmação como secretário de Estado.

“Sob a liderança do Presidente Trump, conseguiremos a paz através da força e colocaremos sempre os interesses dos americanos e da América acima de tudo”, afirmou Rubio, a 13 de novembro, numa reação à notícia da sua nomeação em tudo consentânea com a forma egocêntrica como Trump posiciona a América no mundo.

As principais prioridades de Trump ao nível da política externa não serão muito diferentes das de Joe Biden — as guerras na Ucrânia e Gaza, e a ascensão da China — porque são questões centrais para os interesses dos EUA”, diz ao Expresso William LeoGrande, professor na Universidade Americana, em Washington DC.

“E se Rubio quiser ser candidato a Presidente em 2028, não pode ser visto como o secretário de Estado para a América Latina”, acrescentou este especialista em política externa norte-americana para a região. “Porém, a América Latina será certamente uma prioridade maior do que foi para Biden devido à obsessão de Trump com a imigração.”

“Vamos ter a maior deportação. Não temos escolha”

Donald Trump, a 18 de junho de 2024, num comício em Racine, no estado de Wisconsin

Estima-se que, atualmente, vivam nos EUA mais de 11 milhões de migrantes em situação irregular — 3% da população total. A maioria é oriunda do México e do chamado Triângulo Norte da América Central (El Salvador, Guatemala e Honduras). Uma larga fatia vive no país há pelo menos uma década.

Para concretizar o plano de expulsão de milhões de latino-americanos, a futura Administração Trump precisa da colaboração dos países de destino, numa região politicamente fragmentada onde muitos líderes encaram com reservas o lema America First (a América primeiro) do 48.º Presidente.

Os migrantes mexicanos “enviam 65 mil milhões de dólares [63,2 mil milhões de euros] para as suas famílias no México, mas contribuem mais para os Estados Unidos porque esse valor é apenas 20% do que ali deixam, em consumo, poupança e impostos”, alertou Claudia Sheinbaum, a Presidente do México, num discurso comemorativo dos seus 100 dias no poder, assinalados a 9 de janeiro.

“Estaremos sempre de cabeça erguida. O México é um país livre, independente e soberano. Coordenámos, colaborámos, mas nunca nos subordinámos”, acrescentou a governante, que é judia e pertence ao Movimento Regeneração Nacional, de esquerda.

Se o primeiro governo de Trump, no que ao México diz respeito, ficou marcado pela questão do muro na fronteira entre os dois países, agora, além da deportação massiva de imigrantes, Washington ameaça castigar com a aplicação de tarifas alfandegárias e ações em nome do combate aos cartéis do crime.

“Enquanto os EUA continuam a enfrentar uma crise sem precedentes de fentanil e de migração ilegal, espero que a Presidente eleita [Claudia] Sheinbaum enfrente estes desafios à segurança e democracia”, reagiu Marco Rubio à vitória eleitoral da mexicana, em junho de 2024.

Há uma semana, Trump agitou as águas entre os dois países ao dizer: “Vamos mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América. É um anel lindo e cobre muito território. Golfo da América, que lindo nome, é apropriado”.

A chefe de Estado mexicana respondeu no mesmo tom e, numa das suas conferências de imprensa diárias, diante de um mapa-mundo, sugeriu que o continente americano passasse a designar-se “América Mexicana”, citando um termo que consta de um documento de 1814, anterior à Constituição mexicana.

Entre os líderes latino-americanos com quem será mais fácil Marco Rubio estabelecer comunicação está o Presidente da Argentina, Javier Milei, que o norte-americano descreveu como “uma lufada de ar fresco” quando o visitou em Buenos Aires, em fevereiro passado.

Autodenominado “anarcocapitalista”, Milei é dono de um estilo muitas vezes comparado a Donald Trump: são antigas figuras da televisão, chegaram à política com estatuto de outsider, têm uma retórica populista e um estilo não convencional e provocador.

Mal entrou na Casa Rosada, uma das primeiras medidas de Milei foi retirar o seu país da rota de adesão aos BRICS, onde está o vizinho Brasil. A Argentina tinha entrada prevista no grupo a 1 de janeiro de 2024.

Outro líder latino-americano que já mereceu elogios de Rubio é Nayib Bukele, o Presidente de El Salvador que professa o “Bukelismo”, uma combinação de populismo, pragmatismo económico, autoritarismo e centralização de poder.

Na sua primeira visita oficial ao país, em março de 2023, Rubio destacou o combate de Bukele contra a violência dos gangues e do crime organizado, um problema na origem do êxodo de milhares de salvadorenhos para os EUA.

“Sob a presidência de Nayib Bukele, um dos países mais perigosos do mundo tornou-se um dos mais seguros e promissores da região, tudo numa questão de meses”, disse Rubio. Bukele, de 43 anos, está no poder desde 1 de junho de 2019.

Em contraponto aos países apreciados por Rubio está a “troika da tirania”, como os designou o ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos John Bolton, durante o primeiro governo Trump, referindo-se a Cuba, Venezuela e Nicarágua.

Na primeira Administração Trump, Washington inverteu a aproximação a Cuba que vinha sendo desbravada por iniciativa do Presidente antecessor, Barack Obama, que fez uma visita histórica à ilha dos antepassados de Marco Rubio. Este nunca se deixou levar pelas emoções, sempre pugnou pela aplicação de sanções à ilha e considerou qualquer tentativa de aproximação diplomática a Cuba um ato de ingenuidade.

“A decisão [de Obama] recompensar o regime de Castro e iniciar o caminho na direção da normalização das relações com Cuba é inexplicável”, acusou. “Cuba, tal como Síria, Irão e Sudão, continua a ser um Estado que patrocina o terrorismo.”

Igualmente, na primeira passagem de Trump pela Casa Branca, Washington reconheceu (sem sucesso) Juan Guaidó, autoproclamado Presidente da Venezuela, como líder legítimo do país. Na terminologia de Rubio, a Venezuela é a “narco-ditadura de Maduro” à qual a única resposta possível é a “pressão máxima” das sanções.

Assim que foi anunciada a escolha de Rubio para secretário de Estado, a opositora venezuelana María Corina Machado saudou a nomeação: “São excelentes notícias para toda a América Latina”, escreveu na rede social X. “O senador tem uma profunda compreensão das ameaças que regimes como os de Cuba, Nicarágua e Venezuela representam para todo o hemisfério.”

A 23 de abril de 2024, num artigo na revista conservadora “The National Interest”, Marco Rubio defendeu: “A nossa região atravessa atualmente pelo menos seis grandes crises. Vão de uma migração em massa sem precedentes na fronteira sul dos EUA, ao colapso completo da ordem social no Haiti e à aceleração da opressão estatal em Cuba, na Nicarágua e na Venezuela”.

Um terceiro grupo de países protagonizou, nos últimos anos, uma “onda vermelha” no continente. Foi o caso do Chile, onde Gabriel Boric, um ex-líder estudantil, é Presidente desde 2022. Rubio, fortemente pró-Israel, defendeu que “sob a presidência de Boric, o Chile tem sido uma das principais vozes anti-Israel na América Latina, mesmo antes do 7 de Outubro” e também um porto seguro para financiadores do grupo xiita libanês Hezbollah.

Outro líder incómodo em Washington é Gustavo Petro, um antigo guerrilheiro do grupo M-19, eleito Presidente da Colômbia em 2022. Rubio considerou tratar-se de uma escolha “muito perigosa” para um país que os EUA veem como um aliado no combate ao narcotráfico.

A 1 de março próximo, o Uruguai consumará outra viragem à esquerda na América Latina, com a tomada de posse de Yamandú Orsi, que venceu as presidenciais de 24 de novembro. Esse escrutínio registou uma taxa de afluência às urnas de 89,36%.

Ao longo de 2025, quatro países realizarão eleições presidenciais: Equador (9 de fevereiro), Bolívia (17 de agosto), Chile (16 de novembro) e Honduras (30 de novembro).

No passado, as políticas intervencionistas dos Estados Unidos na região levaram a que os países latino-americanos fossem genericamente designados — de forma depreciativa — “o quintal da América”.

À primeira passagem pela Casa Branca, entre 2017 e 2021 — quando os EUA tiveram como secretários de Estado Rex Tillerson, um ex-CEO da petrolífera ExxonMobil, e Mike Pompeo, ex-diretor da CIA —, Trump não realizou uma única visita oficial à América Latina, nem mesmo quando o Peru acolheu a oitava Cimeira das Américas, em 2018.

Agora, antes mesmo de assumir formalmente a presidência, já revelou interesse pela América Latina ainda que não de forma cordial. Além de prometer uma mega deportação de migrantes e de propor a mudança de nome do Golfo do México, partilhou a cobiça pelo Canal do Panamá, a via marítima artificial de 82 quilómetros que liga o Atlântico e o Pacífico.

“O Canal do Panamá é vital para o nosso país. Está a ser operado pela China. China! E nós demos o Canal do Panamá ao Panamá, não o demos à China. E eles abusaram disso. Abusaram deste presente”

Donald Trump, numa conferência de imprensa em Mar-a-Lago, a 7 de janeiro

“Trump parece ter uma visão do Hemisfério Ocidental de final do século XIX”, conclui William LeoGrande, “em que a diplomacia do canhão e a coerção económica são utilizadas para assegurar o domínio dos Estados Unidos, a fim de garantir rotas marítimas (Panamá) e minerais estratégicos (Gronelândia)”.

Para o Panamá, o Canal é o seu principal ativo económico. José Raúl Mulino, na presidência desde 1 de julho de 2024, não comentou as palavras de Trump.“Não lhe responderei até que seja Presidente”, disse.

Para concretizar o que defende, Donald Trump terá de se dedicar à América Latina como não o fez da primeira vez. Terá a seu lado Marco Rubio, atento àquilo que de positivo existe na região. Defendeu ele em abril passado: “Mesmo reconhecendo os horrores que ocorrem não muito longe das nossas costas — e fazendo o nosso melhor para os combater — devemos inspirar-nos na nova geração de líderes potencialmente pró-América no Hemisfério Ocidental”.

(IMAGEM Marco Rubio, secretário de Estado dos EUA EXECUTIVEGOV)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Perseguidos, mas não esquecidos

Por todo o mundo, o exercício da fé cristã chega a ganhar contornos de crime. Seja porque os crentes vivem sob a alçada de regimes que admitem uma religião só, seja devido à intolerância de sociedades nacionalistas, seja porque “califados oportunistas” substituem-se aos Estados, não faltam exemplos de perseguição aos cristãos

ILUSTRAÇÃO Cristiano Salgado

Aquele 8 de abril de 2021 tinha tudo para ser um dia normal no Hospital Civil de Faisalabad, na província paquistanesa do Punjab. Como muitas outras vezes, as enfermeiras Mariam Lal, de 54 anos, e Nawish Arooj, de 21, estavam de serviço na ala psiquiátrica. A descida aos infernos destas paquistanesas começou quando um paciente lhes deu para a mão um autocolante rasgado que tinha arrancado de um armário de medicamentos. O papel tinha impressa uma passagem do Alcorão. Na manhã seguinte, um grupo de pessoas em fúria confrontou as duas enfermeiras e acusou-as de blasfémia. Mariam e Nawish eram cristãs e aquele autocolante rasgado era a prova de um ato de “profanação do Alcorão”.

INFOGRAFIAS Carlos Esteves

No Paquistão, acusações de blasfémia, muitas vezes falsas, motivam atos de vingança e manifestações de ódio que, amiúde, resultam em linchamentos. Um número desproporcionalmente elevado de casos envolve cristãos. Das 1550 pessoas acusadas de blasfémia desde 1986, quando o código penal foi alterado para incluir o crime de “profanação do Alcorão”, os cristãos surgem implicados em cerca de 15% dos casos, ainda que correspondam a menos de 2% da população.

A partir do seu esconderijo, Mariam e Nawish partilharam a sua história com a fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), que destacou o caso no relatório “Perseguidos e Esquecidos?”, divulgado em novembro passado. Esta instituição pontifícia, com sede na Alemanha e representação em Portugal, trabalha com base em dados que são do domínio público e, em especial, informações recolhidas junto da Igreja local.

As duas mulheres foram levadas e colocadas sob proteção policial. Numa decisão sem precedentes no Paquistão, dado os casos de blasfémia serem, frequentemente, punidos com pena de prisão, ambas foram libertadas sob fiança. É uma liberdade relativa, já que Mariam e Nawish passaram a viver em local secreto, temendo pela vida o tempo todo.

O relatório, que se publica desde 2004, conclui que hoje os cristãos são “vítimas de assédio por motivos religiosos, desde abusos verbais a assassínios, em mais países do que nunca”, lê-se. “Em muitos casos, se não na maioria, esta deterioração não afetou todo o país, mas apenas regiões específicas”, onde a presença de cristãos é expressiva.

Na última edição, pela primeira vez, o relatório destaca a situação na Nicarágua, onde o regime liderado por Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, tem visado a Igreja Católica, seja expulsando membros do clero do país, obrigando ao encerramento de organizações geridas pela Igreja ou restringindo atividades religiosas, como impedir padres de entrarem em hospitais, mesmo que a pedido de doentes, para dar o sacramento da unção.

A 11 de fevereiro de 2023, D. Rolando Álvarez, o bispo de Matagalpa, foi destituído da cidadania e condenado, sem julgamento, a 26 anos de prisão, por um tribunal de Manágua, que o considerou “traidor à pátria”. O bispo é uma voz crítica do regime e nunca cedeu às pressões para se exilar. Acabou por ser expulso para o Vaticano, em janeiro de 2024, juntamente com outro bispo, 15 sacerdotes e dois seminaristas. Seguiu-se a anulação do estatuto jurídico de inúmeras instituições ligadas à Igreja e o confisco de bens. A pedido das autoridades de Manágua, a Santa Sé encerrou a sua representação diplomática na Nicarágua, na sequência da expulsão do país do núncio apostólico.

Califados oportunistas

Noutras latitudes, os cristãos sofrem às mãos dos chamados “califados oportunistas” que se tornaram uma grande preocupação, em particular na região do Sahel. As tradicionais estratégias de grupos jiadistas de matança e pilhagem deram lugar a uma tendência de imposição de sistemas fiscais e comerciais ilegais ao estilo de ‘um Estado dentro do Estado’ que, muitas vezes, visa as populações cristãs.

Nos últimos anos, em especial após o autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh) ter sido derrotado no Iraque e na Síria, o epicentro da violência militante islamita deslocou-se do Médio Oriente para África. Na Nigéria, na véspera de Natal de 2023, mais de 300 cristãos foram mortos após extremistas da etnia fulani (muçulmana) invadirem mais de 30 aldeias, no estado de Plateau (centro). Dispararam armas de fogo, incendiaram localidades inteiras e destruíram reservas de alimentos. Jalang Mandong, que perdeu dez familiares no massacre, relatou à AIS que os ataques tiveram por objetivo “perturbar a celebração do Natal” e roubar terras às comunidades.

Os cristãos representam quase metade da população da Nigéria. Em especial no norte do país, onde continuam ativos grupos terroristas como o Boko Haram e o autoproclamado “Estado Islâmico da Província da África Ocidental”, são muitas vezes objeto de discriminação e acusações de blasfémia decorrentes da imposição da sharia (lei islâmica) em pelo menos 12 dos 36 Estados do país.

Na mesma área geográfica, o Burquina Fasso é um caso recente de agravamento da perseguição aos cristãos, que são minoritários no país. Um dos primeiros episódios que fez soar os alarmes aconteceu em outubro de 2023, quando, na região de Débé, dois escuteiros foram executados no interior de uma igreja por extremistas islâmicos — um em frente ao altar, o outro junto à estátua da Virgem Maria. Os jovens tinham por hábito escoltar crianças até uma escola na localidade vizinha de Tougan, onde estava estacionado o exército burquinense. Os terroristas tinham encerrado as escolas nas zonas onde estavam. Após este incidente, mais de 340 cristãos receberam um ultimato de 72 horas para abandonar as suas aldeias.

Os limites do Irão

“Os ataques de grupos islamitas afetaram vários grupos religiosos, incluindo os muçulmanos tradicionais”, lê-se no relatório, que cita o bispo burquinense Justin Kientega, de Ouahigouya, segundo o qual os cristãos são mais visados pelos jiadistas e enfrentam um controlo mais rigoroso e punições mais severas do que os seus vizinhos muçulmanos. “Não há liberdade de culto. Em algumas aldeias, [os jiadistas] permitem que as pessoas rezem, mas proíbem o catecismo; noutros locais, dizem aos cristãos para não se reunirem na igreja para rezar.”

A predominância da lei islâmica é fator de discriminação também no Irão, um Estado teocrático que tem um “grande ayatollah” no topo da pirâmide do poder. Nos últimos anos, os cristãos têm sofrido na pele a mão de ferro do regime que silenciou os gigantescos protestos populares que se seguiram ao “caso Mahsa Amini”, a muçulmana que foi detida e mortalmente agredida, em 2022, pela polícia de costumes, que fiscaliza nas ruas se a indumentária dos cidadãos respeita os preceitos da República Islâmica. No caso de Mahsa, consideraram que não levava o véu na cabeça, de uso obrigatório para as mulheres, corretamente colocado.

Os cristãos também não escapam. A 13 de fevereiro de 2024, Laleh Saati, uma iraniana de 46 anos convertida ao cristianismo, foi levada de casa dos pais, nos arredores de Teerão. Durante o interrogatório, na prisão de Evin, foi confrontada com fotografias e vídeos da sua participação em eventos cristãos na Malásia, onde viveu anos antes e onde foi batizada. Levada a um tribunal revolucionário, foi-lhe perguntado porque tinha regressado se tinha “feito essas coisas fora do Irão”. Foi condenada a dois anos de prisão, acrescidos de mais dois de proibição de viajar.

Os cristãos detidos no Irão aumentaram de 59, em 2021, para 166, em 2023. “As autoridades têm cada vez mais como alvo pessoas que distribuem Bíblias”, diz o relatório da AIS. As confissões cristãs são reconhecidas, oficialmente, mas a leitura da Bíblia em língua farsi não é permitida.

Na Índia, onde o nacionalismo hindu tem originado perseguições às minorias cristã e, sobretudo, muçulmana, pelo menos 12 estados adotaram leis anticonversão. Essas medidas potenciam atos de hostilidade, como negar aos cristãos o acesso à água de um poço, o enterro de um ente querido ou atos de vandalismo, agressões ou assassínios. A 24 de junho, Bindu Sodi, de 32 anos, foi morta à machadada e à pedrada por um tio, na aldeia de Toylanka, no estado de Chhattisgarh, no centro do país. Duas semanas antes, o homem e um filho tinham invadido terrenos pertencentes à família de Bindu e cultivado uma parcela. O tio defendia que aquela família não tinha direito às terras porque se tinha convertido ao cristianismo. Foi apresentada queixa na polícia, mas antes que se apurasse de que lado estava a lei, Bindu pagou com a vida a intolerância do tio.

A incógnita síria

O ano de 2024 terminou com uma grande incógnita no mapa-mundo. O fim da era dos Assad na Síria colocou no poder um grupo sunita salafita jiadista (Hayat Tahrir al-Sham) liderado por um antigo aliado da Al-Qaeda. Os receios relativamente à perseguição de minorias religiosas (e mesmo de outras sensibilidades dentro do Islão além dos sunitas) manifestam-se perante episódios como o ocorrido a 23 de dezembro, na região de Hama (centro).

Na localidade de Suqaylabiyah, de maioria cristã, um grupo de homens encapuzados deitou fogo a uma grande árvore de Natal, montada numa praça. No dia seguinte, véspera de Natal, centenas de pessoas saíram à rua nas zonas cristãs de Damasco em protesto contra o ataque. Nesse mesmo dia, quando decorreram as cerimónias natalícias na Igreja da Senhora de Damasco (católica), havia no exterior pickups com homens afetos ao grupo islamita no poder… a garantir segurança. O tempo dirá se a nova Síria será tolerante em matéria de religião.

Artigo publicado no “Expresso E”, a 10 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui e aqui

Neste país, em vez de boletins em papel, usa-se berlindes para votar: um sistema colonial que o povo quer manter

A Gâmbia tem um sistema de votação único no mundo. Em vez de boletins em papel, os eleitores votam com recurso a berlindes. O sistema não é perfeito, mas é altamente popular. Porém, à medida que a democracia se consolida neste país da África Ocidental, após 22 anos de ditadura, organizar eleições torna-se um crescente pesadelo logístico

Na Gâmbia, as ‘urnas de voto’ são bidões personalizados para cada candidato SALLY HAYDEN / GETTY IMAGES

Na esmagadora maioria dos países, um berlinde é um objeto recreativo, usado tanto em jogos tradicionais como em brincadeiras de criança. Na Gâmbia, porém, é um assunto de Estado.

É com berlindes que os cidadãos votam nas eleições. Em vez de usarem boletins de voto em papel ou terminais para voto eletrónico, os gambianos colocam berlindes em bidões metálicos personificados para cada candidato.

É assim há mais de 60 anos, “para todo o tipo de eleições, até mesmo referendos”, diz ao Expresso Sait Matty Jaw, professor de Ciência Política na Universidade da Gâmbia. “É um sistema altamente fiável e bem compreendido pelas pessoas, por isso utilizamo-lo para todas as eleições.”

Eleitores esperam para votar, numa assembleia em Banjul, a capital da Gâmbia SALLY HAYDEN / GETTY IMAGES

Concebido para facilitar a vida às pessoas analfabetas no exercício dos seus direitos democráticos, este sistema de votação remonta aos tempos coloniais. “Foi introduzido pelos britânicos em 1962. A Gâmbia estava dividida entre uma colónia e um protetorado”, entre 1821 e 1965, quando obteve a independência, acrescenta o académico gambiano.

“De um lado, havia pessoas formadas, mas a maioria da população que vivia no protetorado não tinha formação. Portanto, precisávamos de um sistema que as pessoas pudessem compreender facilmente e depois votar. Criou-se uma plataforma igual para todos.”

Como se vota na Gâmbia?

Em cada assembleia de voto, são colocados bidões que funcionam como ‘urna de voto’. Cada recipiente tem colados a fotografia e o nome de um candidato e o logótipo do seu partido. O bidão é pintado com a cor do partido em causa para facilitar a identificação.

O bidão está fechado com um tampo, o qual está perfurado por um pequeno tubo com um buraco. As latas são colocadas num compartimento (‘a cabine de voto’) para garantir a privacidade do ato eleitoral.

Depois de validar a elegibilidade do eleitor, a mesa entrega-lhe um berlinde. Ele dirige-se à cabine de voto e, escolhido o candidato, insere a pequena esfera pelo buraco aberto no tubo inserido no tampo.

No final da jornada eleitoral, os bidões e o tubo no tampo são selados YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

No interior do latão, há um mecanismo equipado com um pequeno sino, que toca assim que é atingido pelo berlinde. O som assemelha-se ao toque da campainha de bicicleta e é audível não só para o eleitor como para quem está de serviço na mesa de voto.

Para não haver barulhos a interferir com o som do sino, no fundo dos bidões é colocada areia ou serragem. E, no dia das eleições, não é autorizada a circulação de bicicletas nas imediações dos locais de voto.

O tilintar do sino indica à assembleia que mais um voto foi depositado. Para o eleitor, aquele “tlim” assegura-lhe que o seu voto entrou. É também uma garantia de segurança para os escrutinadores já que, na eventualidade de alguém, à socapa, tentar inserir vários berlindes no latão, é de imediato descoberto.

Uma desvantagem deste sistema é não permitir que os eleitores votem em branco sem que seja do conhecimento público. Ou seja, se o sino não se ouvir, indica regra geral a quem espera no exterior que quem está dentro não escolheu qualquer candidato.

Outro senão deste sistema é não conseguir impedir a tempo que um eleitor mal intencionado tente destruir os selos do bidão, na privacidade do gabinete de voto.

Concluída a votação, funcionários da Comissão Eleitoral Independente preparam-se para contar os berlindes (votos) YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

“Terminada a votação, os votos são contados na hora, no local. Os berlindes são despejados para tabuleiros [personalizados para o efeito] e todos podem ficar de pé a assistir à contagem. Por isso, é muito difícil roubar”, diz Sait Matty Jaw.

Contar berlindes é mais rápido do que escrutinar votos em papel. O risco de erro é menor, como menores são os custos da organização, uma vez que, ao contrário dos boletins em papel, os berlindes são aproveitados de umas eleições para as outras. Ao gerar menos lixo, o escrutínio com berlindes é também mais amigo do ambiente.

Terminada a contagem, os berlindes voltam para dentro do bidão, não vá haver necessidade de recontagem. Depois, lata e tubo são selados.

Tabuleiro usado na contagem de votos YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

“Desde 1962, isto faz parte da nossa cultura política, da evolução política do país e, por isso, há um apego a este sistema com berlindes. As pessoas estão habituadas e sabem que é único, por isso a maioria dos gambianos quer mantê-lo, apesar da origem colonial”, diz Sait Matty Jaw, que é também diretor executivo do Center for Research and Policy Development (CRPD).

Este think tank gambiano foi fundado em 2018, para responder à crescente necessidade de investigação, advocacia e formação, num contexto pós-autoritário. “Focamo-nos na governação democrática, nos direitos humanos e na justiça social”, lê-se no site da organização.

“As pessoas sentem-se confortáveis com este sistema. É altamente fiável porque o país usa-o desde 1962. E não importa se o eleitor tem formação ou não, toda a gente pega num berlinde e coloca-o no barril. Tem algum tipo de significado cultural para as pessoas, uma vez que é aquilo a que estão habituadas.”

Nas instalações da Comissão Eleitoral Independente, em Serekunda, um funcionário pinta os bidões YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

Em determinados círculos gambianos, discute-se, no entanto, a hipótese de se substituir este sistema pelo mais universal voto em papel. “Tem havido discussões. Penso que serão defendidas sobretudo pela Comissão Eleitoral Independente (CEI), para quem o sistema de berlindes é um pesadelo em termos logísticos, dada a quantidade de bidões necessários”, explica o professor da Universidade da Gâmbia.

“Mas não é só uma questão logística. O país está a abrir-se, a democracia está a fazer o seu caminho e há cada vez mais pessoas a participar na política. Por exemplo, nas últimas eleições presidenciais [a 4 de dezembro de 2021], tivemos seis candidatos. E temos atualmente cerca de 20 partidos políticos. Então, imagine se todos estes partidos políticos apresentarem candidatos às eleições…”, diz.

Os preparativos são um grande fardo. Por isso, tanto a CEI como um grande número de partidos políticos são a favor dos boletins de voto em papel. Mas resta saber como se convence as pessoas de que os boletins são mais seguros… Para já, elas preferem o sistema de berlindes.”

À medida que mais candidatos participam nas eleições, a logística torna-se mais complicada YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

A democracia na Gâmbia foi restabelecida em 2016, após 22 anos de ditadura. Nesse ano, Yahya Jammeh, o líder autoritário, sujeitou-se a eleições e perdeu para Adama Barrow, o atual Presidente (reconduzido pelas eleições de 2021), num desfecho que a BBC qualificou de “resultado eleitoral chocante”. Neste país, o Presidente é eleito à primeira para um mandato de cinco anos.

O ditador Jammeh recusou aceitar o resultado e acabou por seguir para o exílio na Guiné Equatorial, onde Teodoro Obiang, que tem 82 anos, é Presidente há 45. Desde então, a Gâmbia tem pela frente o desafio da consolidação democrática.

“Estamos a fazer a transição de 22 anos de ditadura para a democracia”, conclui Sait Matty Jaw. “Já passaram oito anos e ainda não conseguimos uma nova Constituição. Existe um projeto no Parlamento, mas tem havido problemas em chegar a acordo. Isso está a criar problemas à nossa transição efetiva para a democracia.”

Neste contexto, uma reforma eleitoral está longe de ser uma prioridade. “Agora que vamos a caminho das eleições presidenciais de 2026, não creio que vá haver qualquer medida para mudar o sistema de voto. No futuro próximo, ainda teremos o berlinde.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui