Santo Sepulcro: o local mais sagrado para os cristãos abriga seis igrejas e é guardado por muçulmanos

O templo construído sobre os lugares que simbolizam a crucificação, o túmulo e a ressurreição de Jesus é um dos locais mais sensíveis à face da Terra. Dentro do Santo Sepulcro, vivem em permanência monges de diferentes ritos cristãos. A sã convivência entre todos depende do cumprimento de um conjunto de regras estabelecidas no século XIX e ao zelo de duas famílias muçulmanas

Na época da Páscoa, a cidade de Jerusalém recua mais de 2000 anos no tempo. No Domingo de Ramos, uma procissão no Monte das Oliveiras recria a entrada triunfal de Cristo na cidade, com os fiéis a empunharem folhas de palmeira.

Na Sexta-Feira Santa, o cortejo da Via Sacra, que reconstitui o trajeto de Cristo a carregar a cruz até ao Calvário, percorre as ruas estreitas da Via Dolorosa, através dos bairros muçulmano e cristão da Cidade Velha. No domingo de Páscoa, o Santo Sepulcro — construído no século IV no local onde se crê que Jesus foi crucificado, sepultado e depois ressuscitou — torna-se o centro da cristandade.

Ano após ano, as cerimónias realizam-se com a devoção de sempre, mas nesta Páscoa, em particular, os peregrinos estão ausentes. “Não há turistas em Jerusalém, por causa da guerra. À última hora, muitas viagens começaram a ser canceladas. Só me lembro da cidade assim vazia no tempo da pandemia”, diz ao Expresso Adeeb Jawad Joudeh Alhusseini, um palestiniano muçulmano que tem um cargo único no Santo Sepulcro.

Adeeb ostenta o título de “Depositário das Chaves do Santo Sepulcro e Titular do Selo do Túmulo Sagrado”. É ele que tem a responsabilidade de guardar a chave que abre a porta do templo que abriga o túmulo de Jesus. Fá-lo no cumprimento de uma tradição — e obrigação — familiar que dura há mais de oito séculos. “Este é um trabalho honorário. Não recebemos dinheiro por fazê-lo. É um trabalho que estimamos e do qual nos orgulhamos como família”, diz.

Adeeb Joudeh Alhusseini segura a chave do Santo Sepulcro enquanto dá explicações a William, durante a visita do príncipe britânico, em 2018 GALI TIBBON / AFP / GETTY IMAGES

Os Joudeh AlHusseini são uma das famílias mais antigas de Jerusalém. Receberam a chave do Santo Sepulcro em 1187 após Saladino ter reconquistado aos cruzados aquela que é uma cidade santa para judeus, cristãos e muçulmanos.

Este líder muçulmano garantiu que o Santo Sepulcro mantivesse o seu caráter cristão, recusou transformá-lo numa mesquita e facilitou o acesso de peregrinos. Mas temendo que, entre os fiéis que rumassem à Terra Santa, pudessem estar soldados infiltrados com a intenção de tomar a igreja, ele ordenou que a chave do Santo Sepulcro fosse dada a uma família nobre muçulmana.

“Se eu tivesse rezado na igreja, ela estaria perdida para vocês, uma fez que os crentes [muçulmanos] ter-se-iam apropriado dela dizendo: ‘Omar rezou aqui’.”

Califa Omar para Modesto, patriarca de Jerusalém, na década de 630, após se ter recusado entrar no Santo Sepulcro

A honraria atribuída aos Joudeh AlHusseini consta de firmões (decretos) emitidos por sucessivos sultões que governaram Jerusalém, atualmente guardados nos arquivos otomanos, na Turquia, e que atestam a história desta família.

Hoje com 59 anos, Adeeb tinha oito quando o pai lhe confiou as chaves do Santo Sepulcro pela primeira vez. Jawad, o seu filho mais velho, atualmente com 26 anos, será o seu sucessor nesta missão famíliar. A segurança da chave não lhe causa particular ansiedade: “Tenho um cofre em casa”, revela.

O momento de abertura da porta do Santo Sepulcro atrai muitas atenções HAZEM BADER / AFP / GETTY IMAGES

Com algumas exceções, a alta e pesada porta do Santo Sepulcro abre, diariamente, às 4h. Esse momento obedece a um ritual coreográfico que atrai muitos curiosos. Em representação dos Joudeh AlHusseini, Adeeb traz a chave e entrega-a a um membro de outra família muçulmana — os Nusseibeh —, que são basicamente os porteiros do Santo Sepulcro.

Wajeh Nusseibeh bate na aldraba, sinalizando para dentro do Santo Sepulcro que é hora de abrir a porta. Do interior, alguém faz passar uma escada para o exterior, através de uma pequena janela rasgada na porta. Nusseibeh sobe a escada até à altura da fechadura e destranca-a. Depois desce a escada, destrava a fechadura inferior e devolve a chave a Adeeb AlHusseini que a guarda até ao dia seguinte.

Às 21h, quando o Santo Sepulcro encerra, só o porteiro intervém já que a chave não é necessária. Todo o cerimonial de abertura pode ser visto no vídeo abaixo.

Quando o templo está fechado, há vida no interior. “Dentro do espaço de Santo Sepulcro, há três comunidades que vivem lá, fazem a sua vivência religiosa, as suas expressões cultuais”, explica ao Expresso João Lourenço, Professor catedrático emérito da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.

As igrejas que têm monges em permanência dentro do Santo Sepulcro são os ortodoxos gregos, os católicos latinos (franciscanos) e os ortodoxos arménios.

“Procuram conviver dentro daquilo que significa expressões culturais convergentes e, ao mesmo tempo, matrizes de expressão diferentes que resultam muito do acumular de questões históricas e locais da proveniência dos próprios crentes desses ritos”, acrescenta este padre franciscano.

“Cada comunidade religiosa pode receber visitantes”, explica Adeeb AlHusseini. “Os monges e seus convidados fazem orações noturnas até de madrugada. Eu chego às 4h, abro a porta e as orações continuam até as 8h.”

O Santo Sepulcro é visitado por fiéis de vários ritos cristãos LATIFEH ABDELLATIF / AFP / GETTY IMAGES

Além das igrejas que vivem dentro do Santo Sepulcro, outras três confissões cristãs estão presentes no complexo desta igreja: os coptas egípcios, os ortodoxos etíopes e os ortodoxos siríacos. Vivem nas redondezas da basílica e têm direitos limitados no acesso a determinadas zonas do mausoléu.

“Tudo isto é um acumular de tradições, de vivências, de expressões culturais de séculos”, acrescenta João Lourenço. “E é um pouco na diferença entre o objetivo comum que todos têm e as tradições que todos e cada um acumulam que se encontra o sentido para a existência de um decreto que tenta regulamentar as convivências” — o Status Quo, firmado em 1852.

Este decreto estabelece orientações que levem a um equilíbrio, a uma situação de justiça e a uma convivência sã e ordenada entre as diferentes confissões cristãs na Terra Santa. E reflete-se na vida dentro de lugares religiosos de significado histórico como o Santo Sepulcro, em Jerusalém, ou a Igreja da Natividade, em Belém.

O Status Quo detalha a divisão do espaço físico (capelas, túneis, grutas), coordena os serviços litúrgicos, os horários das orações, os direitos de circulação através das várias secções, as áreas partilhadas e as que são de uso exclusivo.

Contribui, em teoria, para criar harmonia e reduzir o potencial de conflito entre as várias igrejas. Nenhuma pode fazer alterações dentro do Santo Sepulcro — fazer obras ou mudar o horário de uma procissão, por exemplo — sem a concordância das outras.

Em 1852, quando este decreto foi firmado, o mundo estava tomado pela tensão entre o Império Russo e o Império Otomano que levaria à Guerra da Crimeia (1853-1856).

“Nessa guerra, as confissões cristãs orientais tomaram partido. A Rússia protegia muito os ortodoxos russos na Terra Santa, o que nem sempre ia ao sabor dos ortodoxos gregos”, explica João Lourenço, doutorado pela Pontifícia Universidade Antonianum, de Jerusalém, onde estudou no início da década de 1980. “Perante esse acentuar das tensões, o Império Turco procurou regulamentar essa vivência interna para que não houvesse conflitos latentes.”

A “escada imóvel” é o que melhor simboliza o Status Quo. Está colocada na fachada do edifício desde a primeira metade do século XVIII. Não se sabe quem a pôs ali e ninguém lhe toca para não criar fricções ALBERTO PIZZOLI / AFP / GETTY IMAGES

Na prática, a convivência nem sempre é tão clara como no papel. A 9 de novembro de 2009, a polícia israelita teve de entrar no Santo Sepulcro para sanar confrontos físicos entre ortodoxos gregos e arménios, durante uma procissão dos últimos junto a Edícula (túmulo de Jesus). Os gregos exigiam a presença de um dos seus monges temendo que os arménios usassem a procissão para subverter os termos acordados de acesso ao local.

Na atualidade, há uma disputa declarada em torno de uma pequena igreja localizada no telhado do Santo Sepulcro — Deir al-Sultan —, reclamada pelos ortodoxos etíopes e pelos coptas egípcios. No verão de 2002, num dia particularmente quente, um religioso egípcio (copta) moveu a cadeira colocada junto à entrada do telhado uns centímetros para fugir do sol, o que foi interpretado como um ato hostil e uma violação dos limites acordado. Sete monges etíopes e quatro egípcios foram hospitalizados na sequência de confrontos.

O Expresso pergunta a Adeeb se já testemunhou conflitos entre as diferentes igrejas. “Essa é uma pergunta embaraçosa para mim, que não gosto de interferir na privacidade dos outros. Perdoe-me, as comunidades estão autorizadas a responder, mas estou fora desse assunto”, respondeu, assumindo uma posição neutral entre as várias denominações cristãs.

A pluralidade religiosa na Terra Santa e, em particular, a complexidade cristã “é fruto de muita história acumulada”, conclui o padre João Lourenço. O modelo de coexistência praticado numa região tão vulnerável a tensões e disputas tem evitado males maiores.

(FOTO Procissão de Domingo de Ramos, junto à Edícula, que abriga o túmulo de Jesus, no interior da Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém MOSTAFA ALKHAROUF / ANADOLU / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de março de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui e aqui

Nowruz Mubarak! O novo ano persa começou esta quinta-feira: seguem-se 13 dias de fogueiras, piqueniques e mesas com ‘sete ésses’

Para milhões de pessoas de cultura persa, a chegada da primavera coincide com a entrada num novo ano. É altura de celebrar o Nowruz, festividade de 13 dias que celebra a natureza e o que dela cada um pode extrair para viver o novo ano com otimismo e positividade. Sete curiosidades sobre o Nowruz

Um iraniano participa na festa do fogo, em Teerão, um dos rituais do Nowruz ABEDIN TAHERKENAREH / EPA

Em várias regiões do globo, centenas de milhões de pessoas de cultura persa aperaltam-se, esta quinta-feira, para entrar num novo ano. Pelo calendário persa (solar), começa hoje o ano 1404.

O início das festividades — a que chamam Nowruz (“novo dia”, em língua farsi) — coincide com o equinócio da primavera. Durante 13 dias, famílias e comunidades celebrarão o recomeço (representado pela entrada num novo ano) e o renascimento (simbolizado pelo ciclo de renovação da natureza que a primavera representa).

A cada pessoa, individualmente, o Nowruz convida à reflexão e proporciona uma oportunidade para recarregar energias.

ASSIM FALOU ZARATUSTRA

As raízes do Nowruz remontam ao Zoroastrismo, religião muito antiga que o Império Persa (550 a.C.-651 d.C.) — de que a República Islâmica do Irão é herdeira — tornou religião oficial. Esse credo foi fundado por Zoroastro, profeta também conhecido como Zaratustra, que terá vivido ainda antes de o império se afirmar.

No Zoroastrismo, o Nowruz tem um significado profundamente espiritual e cósmico. Segundo a tradição, a festividade significa o regresso a um espírito que esteve ausente durante os meses do inverno e simboliza o triunfo do bem sobre o mal, da alegria sobre a tristeza, da luz sobre a escuridão.

DA TURQUIA AO AFEGANISTÃO

Nowruz é celebrado por grupos étnicos que habitam territórios ao longo da antiga Rota da Seda. É o caso de iranianos, paquistaneses, afegãos, turcos, tajiques, curdos e também os tártaros da Crimeia, território ucraniano que a Rússia invadiu e anexou em 2014.

Nalguns países da Ásia Central, Médio Oriente, Cáucaso e Balcãs, é feriado nacional. Naturalmente, o Nowruz é também assinalado um pouco por todo o mundo no seio das comunidades de origem persa na diáspora.

Quando esteve na Casa Branca, Barack Obama assinalou a data, anualmente, com uma mensagem dirigida ao povo e às autoridades do Irão. Nesta, em 2013, mostrou-se esperançoso de que Estados Unidos e Irão pudessem “ir além das tensões” e “ultrapassar décadas de desconfiança”.

‘ABANAR A CASA’

Apesar de o tiro de partida para os 13 dias de festa ser dado apenas pelo equinócio, os preparativos começam com semanas de antecedência.

Para entrar no novo ano com o pé direito, há que ter a consciência limpa e a casa num brinco, pelo que uma das tarefas prioritárias é uma limpeza a fundo — um ritual chamado Khane-takani, que significa “abanar a casa”.

Na prática, são feitas intervenções não tão quotidianas como lavar os tapetes, limpar o quintal, arrumar o sótão, livrar-se de tralha e até pintar a casa.

Tudo contribui para criar a sensação de um recomeço limpo e fresco. E as casas ficam asseadas para receber familiares, como também é tradição no Nowruz.

A MESA DOS SETE ‘S’

Nas casas, o convívio familiar faz-se à volta de mesas fartas e decoradas a preceito. Uma das principais tradições do Nowruz passa por compor uma mesa com sete objetos, todos com nomes começados pela letra S — os haft sin (sete ésses, em farsi). Cada um deles representa desejos para o novo ano.

  • Sabzeh (rebentos de trigo, cevada ou lentilhas cultivados num prato uma ou duas semanas antes do Nowruz) simboliza o renascimento e o crescimento.
  • Samanu (pudim doce feito de trigo) representa a doçura e a fertilidade.
  • Senjed (fruta seca de oleastro) visa despertar o amor.
  • Seer (alho) simboliza a medicina e a saúde.
  • Seeb (maçã) invoca a beleza.
  • Somagh (sumagre) simboliza o nascer do sol e o recomeço.
  • Serkeh (vinagre) simboliza a idade e a paciência.

A composição da mesa pode diferir de região para região e, frequentemente, há outros objetos: espelho (autoconhecimento e reflexão), moedas (riqueza), relógio (tempo), ovos pintados (fertilidade, criação e renovação da vida), peixes dourados (vida e movimento), velas (luz, sabedoria e esperança), jacintos (chegada da primavera) e um livro de sabedoria, geralmente o Alcorão, mas também pode ser um livro de poesia.

Este ano, o Nowruz coincide com o mês sagrado do Ramadão, pelo que as refeições têm de esperar pelo pôr do sol.

NOITE DAS FOGUEIRAS

Na última quarta-feira do ano que finda, realiza-se o Charshanbeh Suri ou noite da fogueira. Trata-se de uma celebração comunitária em que as pessoas saltam por cima de fogueiras acesas em praças públicas para purgar as negatividades do ano que fica para trás.

À volta das fogueiras, interpretam-se canções tradicionais e realizam-se danças. No ar, há fogo de artifício. Há também quem vá de porta em porta pedir iguarias, recebendo geralmente frutos secos.

O fogo é um elemento importante no Zoroastrismo, que considera que o deus do bem é adorado mediante o fogo sagrado mantido aceso pelos sacerdotes nos templos. Por essa razão, a cremação não é permitida para que esse elemento natural não seja contaminado.

Neste dia, há famílias que aproveitam para reabastecer o seu domicílio de água, num gesto associado à ideia de purificação e à saúde.

FIROUZ, O ENTERNAINER

Na época do Nowruz, sai à rua Haji Firouz, uma personagem imaginária do folclore iraniano. Veste-se com roupas vermelhas brilhantes e um chapéu de feltro e tem o rosto coberto de fuligem. Entretém os transeuntes com cânticos tradicionais, danças e a tocar pandeiretas, em troca de algumas moedas.

PIQUENIQUES NA NATUREZA

O 13.º e último dia do Nowruz é dedicado à natureza (Sizdah Bedar). Tradicionalmente, as pessoas passam o dia fora de casa, em parques, nas margens de rios ou em campos, para desfrutar do meio ambiente, ouvir música, jogar ou simplesmente passar o tempo à conversa com familiares e amigos.

Este dia é também aproveitado para atirar aos cursos de água o sabzeh, os rebentos plantados num prato e colocados na ‘mesa dos sete ésses’. Acredita-se que estas plantações absorveram as agruras do ano que termina pelo que, com este gesto simbólico de as atirar à água corrente, afastam a má fortuna do novo ano.

No Irão, em alturas de manifestações populares e tensões com as autoridades, estes momentos relaxados ao ar livre são aproveitados para atitudes de desafio às regras conservadoras impostas pelos ayatollahs. Não raras vezes, homens e mulheres dançam uns com os outros. E os lenços (hijabs) de muitas mulheres, de uso obrigatório no país, descaem da cabeça para os ombros e deixam os cabelos à mostra.

No Irão, o Nowruz é uma celebração secular que resiste ao espartilho social e cultural que decorre da Revolução Islâmica de 1979. Os seus rituais estão firmemente enraizados na cultura iraniana e são cumpridos por cidadãos de todas as religiões e origens étnicas. Trata-se de uma celebração nacional e não religiosa, que o regime teocrático aceita como feriado oficial.

A Organização das Nações Unidas reconheceu o poder do Nowruz como cimento cultural da resiliência e sustentabilidade das sociedades e inscreveu-o na Lista de Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO.

“Nestes tempos de grandes desafios, o Nowruz promove o diálogo, a boa vizinhança e a reconciliação”, defendeu o secretário-geral da ONU, António Guterres.

A 21 de março de cada ano, é celebrado o Dia Internacional do NowruzNowruz Mubarak!

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de março de 2025. Pode ser consultado aqui