Há exatamente dez anos, o Presidente tunisino fugia do país, acossado por 28 dias de protestos populares. O investigador Álvaro de Vasconcelos, que acompanhou de perto o processo de transição democrática que se seguiu, celebra a existência de um país democrático no mundo árabe. Mas alerta também para os perigos populistas que brotam na cena política tunisina

Dez anos após a Primavera Árabe, movimento de contestação popular que tomou as ruas de vários países árabes, a Tunísia é apontada como o único caso de sucesso, no sentido em que foi o único país que conseguiu pôr em marcha um processo de transição de um regime autocrático para uma democracia. Esta é, pelo menos, a avaliação que se faz fora de portas, porque dentro do país a sensação é outra.
“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, diz ao Expresso a politóloga Khadija Mohsen-Finan, que acaba de lançar o livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Democratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos, a democracia tornou-se um obstáculo à mudança e não é essencial, dadas as suas dificuldades diárias.”
Aquela que foi designada de “revolução de jasmim” trouxe liberdades várias — o multipartidarismo, uma nova Constituição (em 2014), direitos para as mulheres, liberdade de imprensa —, mas não trouxe mais emprego nem uma melhor qualidade de vida. O país tornou-se mais desigual, o desemprego é maior do que antes da revolução, afetando em especial os jovens, a corrupção aumenta de forma desenfreada e há grandes disparidades regionais. É flagrante o contraste entre a riqueza da costa e a pobreza do interior.
“As zonas do interior do país, fronteiriças à Argélia, são extremamente pobres. Continua a haver revoltas constantes, como as que levaram à revolução. A situação é grave, mas ao mesmo tempo este é um momento que deve ser festejado — há um país democrático no mundo árabe”, comenta ao Expresso Álvaro de Vasconcelos, fundador do Fórum Demos, dedicado à discussão dos temas da democracia e das transições democráticas.
Faz esta quinta-feira dez anos que o ditador Zine El Abidine Ben Ali fugiu do país para um exílio dourado na Arábia Saudita, encurralado por 28 dias de manifestações populares. A contestação fora desencadeada pelo ato desesperado de Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante que se imolou pelo fogo em protesto contra a apreensão da sua banca de frutas e legumes.
Ao derrubarem o muro do medo, os tunisinos incentivaram outros povos à revolta contra poderes autocráticos, em especial no Egito, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain — num movimento a que se convencionou chamar “Primavera Árabe”. Em quatro deles, os ditadores tombaram, mas só na Tunísia a democracia floresceu.
“A Tunísia é o que nos resta em termos de consolidação democrática das revoluções de 2011. É um regime constitucional, com uma Constituição extremamente avançada e um país onde existe uma sociedade civil muito ativa e onde a liberdade de expressão está garantida por lei”, enumera Vasconcelos. “Se compararmos com os regimes autocráticos da região, é um progresso extraordinário.”
Quatro fatores cruciais
País pequeno, com uma população homogénea (de quase 12 milhões) — sem o sectarismo da Síria ou o tribalismo da Líbia —, a Tunísia reuniu um conjunto de condições que possibilitaram que a transição democrática fosse desbravando terreno.
1. A MODERAÇÃO DOS ISLAMITAS. Após a revolução, o partido islamita Ennahda — fundado e liderado por Rached Ghannouchi, crítico de Ben Ali regressado do exílio em Londres após a queda do ditador — foi o vencedor das primeiras eleições democráticas livres, para a Assembleia Constituinte (2011). Ainda assim, aceitou repartir o poder com duas outras forças políticas numa tróica.
“O Ennahda optou por um processo democrático, por fazer pontes para os outros partidos, o que não aconteceu, por exemplo, no Egito, onde a Irmandade Muçulmana não fez pontes com os liberais.” Para realçar esse compromisso, em 2016, o Ennahda anunciou o abandono da sua agenda religiosa. Hoje, é o partido mais representado no Parlamento, presidido pelo seu líder, Ghannouchi. O Ennahda tem 52 deputados, num total de 217.
“Saímos do islão político para entrar na democracia muçulmana”
Rached Ghannouchi
fundador e líder do partido islamita Ennahda
A integração do Ennahda na cena política tunisina decorre muito da aprendizagem que os tunisinos fizeram do caso português. Ao longo da transição democrática, a experiência pós-revolucionária portuguesa foi um caso de estudo na Tunísia.
“Houve muitos seminários sobre a transição portuguesa, eu próprio organizei vários quando era diretor do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia [2007-2012] e levei variadíssimos políticos portugueses, o Presidente Jorge Sampaio esteve muito presente”, recorda Álvaro de Vasconcelos.
“Discutiam muito que atitude tomar em relação aos partidos que alguns consideravam fora do sistema. A experiência portuguesa de integração de todas as forças políticas era muito referida, bem como o princípio de que a participação no processo democrático tornava os partidos mais respeitadores da Constituição, menos antissistema.”
2. O DINAMISMO DA SOCIEDADE CIVIL. O protagonismo da sociedade civil em todo o processo foi coroado com a atribuição do prémio Nobel da Paz 2015 ao Quarteto para o Diálogo Nacional, composto por quatro organizações da sociedade civil: uma central sindical, a Confederação da Indústria, a Liga dos Direitos Humanos e a Ordem dos Advogados.
“A sociedade civil é muito forte, teve um papel motor na revolução e impôs os acordos aos partidos”, diz Vasconcelos, autor do livro “As Vozes da Diferença — A Vaga Democrática Árabe” (2012). “Teve um papel extremamente ativo para impedir que acontecesse na Tunísia aquilo que aconteceu no Egito — a criação de uma frente islamita tal que levasse ao poder uma coligação autoritária.”
3. A NÃO-INTERFERÊNCIA DOS MILITARES. Desde a primeira hora “os militares tunisinos recusaram-se totalmente a apoiar Ben Ali. Foram eles que lhe disseram para se ir embora. E nunca mais intervieram na vida política. Na Tunísia, eu falava com muitos sectores e nunca ninguém me disse: ‘Os militares pensam isto ou aquilo’, como se ouvia constantemente no Egito. Isso é um garante de que eventualmente os militares não apoiarão um golpe”.
4. A POUCA IMPORTÂNCIA GEOPOLÍTICA. Contrariamente ao que aconteceu no Egito — peso-pesado da geopolítica do Médio Oriente —, o processo de transição tunisino decorreu sem interferências externas. Mas essa discrição teve um senão: “Fez com que, por exemplo, a Administração Obama, que começou por apoiar as transições democráticas nos países árabes, nunca desse muita atenção à Tunísia”, diz o investigador.
“E a União Europeia também parece mais preocupada com as questões da imigração, da luta contra o terrorismo, do que na consolidação da democracia na Tunísia, apesar de ter sido bastante importante ao não tomar partido contra os islamitas.”
Estes quatro fatores foram cruciais para tornar a revolução possível e concretizar um virar de página no país. Dez anos depois, todavia, o sistema político — descredibilizado por pelo menos dez grandes mudanças a nível governamental — enfrenta novos desafios, como o do populismo, entre islamitas e anti-islamitas, que se manifesta de múltiplas formas.
- Desde 23 de outubro de 2019, a Tunísia tem um Presidente — Kais Saied — sem partido político. “Foi eleito como um homem só e gostaria de concentrar poderes a partir de um apelo ao povo”, comenta Álvaro de Vasconcelos.
- Paralelamente, existe um partido salafita, apoiado pelos Emirados Árabes Unidos e pela Arábia Saudita, que contesta o islamismo democrático do Ennahda. “Faz uma campanha identitária e extremamente violenta contra os direitos das mulheres, contra a laicidade, contra a França e contra o Ennahda.”
- Restam antigos membros do regime, que reclamam o legado de Habib Bourghiba (Presidente entre 1957 e 1987) mas estão associados a Ben Ali (falecido em 2019). Estes saudosistas de tempos passados alimentam a tentação por um Presidente forte.
“Neste momento, as sondagens na Tunísia são lideradas pelo Partido Destoriano Livre, que defende o regresso ao presidencialismo e a concentração do poder numa figura, que depois pode, por referendos diversos, ir acabando com a democracia”, analisa Vasconcelos.
“O problema agora não são os golpes militares, é aquilo a que podemos chamar golpes constitucionais. É pela via eleitoral que os iliberais chegam ao poder e é a partir do poder que vão desconstruindo o regime democrático. Esse é que é o risco na Tunísia.”
Descrentes nas instituições políticas, frustrados pelas dificuldades económicas e fatigados por dez anos de uma esperança que tarda em concretizar-se, os tunisinos revelam, porém, grande resiliência. Mesmo em tempos de pandemia, os protestos não param, como o revelam as fotos que acompanham este texto, todas referentes a manifestações realizadas no mês passado.
Uma guerra ali ao lado
Há porém um fator mais difícil de contrariar nas ruas: a guerra na vizinha Líbia, que divide a classe política tunisina. O Presidente do país apoia o general Haftar e a sua rebelião a partir do leste da Líbia (apoiada por Arábia Saudita, Egito e Emirados, que são ferozmente anti-islamismo democrático, pela ameaça que constitui ao poder nos seus países). Já o Ennahda coloca-se ao lado do Governo de Tripoli, apoiado pela Turquia, Qatar e comunidade internacional (ainda que não pela França, que apoia o general rebelde).
“O contexto da guerra líbia é também um fator de divisão profunda e perigosa na Tunísia”, conclui Vasconcelos. “Costumo dizer que a fronteira da Líbia com a Tunísia devia ser a nossa fronteira da União Europeia.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui