Uma acendalha num barril de pólvora

Para Pequim, a ilha simboliza a dificuldade de estender a revolução maoista a todo o território chinês. Para os EUA, é uma forma de fragilizar a China

INFOGRAFIAS DE JAIME FIGUEIREDO

Há países ‘minúsculos’ que têm a capacidade de se agigantar perante vizinhos poderosos, numa espécie de versão geopolítica do episódio bíblico de David contra Golias. Taiwan é um deles. Situada a cerca de 180 quilómetros da costa da República Popular da China, a ilha tem pouco mais de um terço do território de Portugal, embora mais do dobro da população. Reconhecido como Estado independente por apenas 15 países, Taiwan tem enorme potencial para incendiar a região e, por arrasto, todo o mundo, por implicar na definição do seu futuro a China e os Estados Unidos.

“Para a República Popular da China, Taiwan simboliza a dificuldade de implantar a revolução maoista em todo o território chinês. Não devemos esquecer que foi a República da China de Taiwan que ganhou assento como país fundador da ONU, mantendo-se nessa posição até 23 de novembro de 1971. Para a China, Taiwan representa um projeto político alternativo, que é uma ameaça putativa ao sistema político de Pequim”, explica ao Expresso Tiago André Lopes, docente na Universidade Portucalense. “Para os Estados Unidos, a instrumentalização de Taiwan é forma de fragilizar a China, num momento de expansão e projeção de poder no Pacífico onde Washington tem interesse estratégico.”

Ameaças de invasão

Taiwan sempre foi uma questão central na relação entre a China e os EUA, desde 1949. Fruto da guerra civil, a República da China dividiu-se em duas: a República Popular da China (também designada China continental ou comunista) e a República da China (Taiwan, Formosa ou China nacionalista).

“A República Popular da China há muito que ameaça invadir Taiwan”, diz ao Expresso Ming-sho Ho, professor no Departamento de Sociologia da Universidade Nacional de Taiwan, que identifica três razões para a mais recente tensão em torno da ilha: “Agravamento das relações China-EUA em muitas frentes, como guerra comercial e Hong Kong; chegada ao poder, em Taiwan, do Partido Democrático Progressista, em 2016, que se inclina para a independência; e intrusão recente e cada vez mais frequente de caças chineses no espaço aéreo taiwanês.”

Na próxima semana, a Cimeira pela Democracia corre o rico de atiçar ainda mais a fogueira. Convocada por Joe Biden, decorrerá de forma virtual, quinta e sexta-feira, com representantes de 111 países, entre eles Portugal. As intervenções far-se-ão em torno de três eixos: rejeição do autoritarismo, luta contra a corrupção e respeito pelos direitos humanos.

Taiwan foi convidada para a cimeira, mas não a China nem a Rússia. Num artigo conjunto, publicado a 26 de novembro no sítio do jornal conservador norte-americano “The National Interest”, os embaixadores chinês e russo nos EUA, Qin Gang e Anatoly Antonov, respetivamente, defenderam que a iniciativa é “produto evidente da mentalidade de Guerra Fria” de Washington, que “vai estimular o confronto ideológico e uma fenda no mundo, criando novas ‘linhas divisórias’”.

A ironia de Biden

Tiago André Lopes constata uma “ironia” na forma como o Presidente americano estende a mão a Taiwan. “É curioso notar que os EUA só passaram a reconhecer a China continental em detrimento de Taiwan em dezembro de 1978, com o Presidente Jimmy Carter, do Partido Democrata. Existe alguma ironia histórica em ser o Presidente Joe Biden, do mesmo partido, a olhar de novo para Taiwan como alavanca da sua ação política.”

A 15 de novembro, Biden e Xi Jinping reuniram-se pela primeira vez, numa cimeira virtual. Taiwan veio à baila e as diferenças de abordagem ficaram expostas. Segundo a Casa Branca, Biden reafirmou o apoio de longa data dos EUA à política da “China Única”, segundo a qual há apenas um Estado soberano que é a China e Taiwan faz parte dele, e a oposição aos esforços unilaterais para mudar o statu quo ou minar a paz em torno do estreito de Taiwan. Já a agência estatal chinesa Xinhua noticiou que Xi defendera que quem busca a independência em Taiwan, e aqueles que os apoiam nos EUA, estão “a brincar com o fogo”.

“Suspeito que Biden preferisse que Taiwan não fosse nada importante para os EUA”, diz ao Expresso Alan Bairner, professor na Universidade de Loughborough (Reino Unido). “No entanto, a posição americana contém em si uma contradição fundamental que não é fácil de resolver. A vontade de defender Taiwan, em conjunto com a aceitação da política da China Única, pura e simplesmente não pode ser sustentada em circunstâncias em que a China ameace invadir ou assumir o controlo de Taiwan por outros meios.”

Olhando para o planisfério, o estreito de Taiwan surge como putativa acendalha numa região percorrida por aparatosos dispositivos militares, tornando o Pacífico um cenário de jogos de guerra. Uma interrogação persiste nas análises ao potencial de conflito da zona: estará a China disposta a recorrer à guerra para submeter a sua província rebelde?

“Os especialistas estão divididos”, diz Ming-sho Ho. “Alguns acham que a República Popular está apenas a fazer bluff, enquanto outros acham que é um cenário cada vez mais provável.” “É impossível prever”, acrescenta Alan Bairner. “Diria que é improvável, mas não totalmente implausível.”

A paciência das elites chinesas

“Em política tudo é impossível até se tornar possível”, sugere Tiago André Lopes. “A ameaça de uma invasão militar pela China, se Taiwan avançar com reivindicações de soberania política, não é nova e culmina na famosa Lei Antissecessão de 2005, que materializa juridicamente essa possibilidade.” O diploma prevê o uso da força contra Taiwan se falharem os meios pacíficos para a reunificação, como aconteceu com Hong Kong e Macau.

“Contudo, Pequim está consciente de que qualquer intervenção musculada em Taiwan abriria portas a que a comunidade internacional se sentisse legitimada em usar a força contra a China”, continua o académico português. “Ou seja, o ganho de assimilar Taiwan por via bélica é menor do que a manutenção do statu quo e a expectativa de que, a longo prazo, as novas gerações de Taiwan venham a ser progressivamente menos nacionalistas e pró-soberanistas. Não podemos olhar para as escolhas políticas da China no curto prazo: as elites políticas chinesas sabem ser pacientes.”

A estratégia de Pequim passa também por apertar o cerco a países que invistam na relação com Taiwan. O alvo mais recente foi a Lituânia, onde a ilha abriu recentemente uma missão diplomática. A 21 de novembro, a China reduziu a categoria do seu representante em Vilnius de embaixador para encarregado de negócios e fez dois bombardeiros com capacidade nuclear sobrevoar o sul de Taiwan, numa clara ação de intimidação, destinada a exercer pressão.

“É provável que a maioria das pessoas em Taiwan esteja disposta a aceitar a continuação do entendimento atual. Sabem, no entanto, que depende do Partido Comunista Chinês aceitar o estatuto de quase independência de Taiwan, que concede à ilha um reconhecimento internacional muito limitado”, diz Alan Bairner. “Nos corações, muitos preferem a independência formal e um assento na ONU, mas não vejo como é que isso pode acontecer nas atuais circunstâncias. A única esperança seria convencer mais países a reconhecer Taiwan e, assim, pressionar a China para que desistisse da sua reivindicação. Mas por enquanto, demasiados Estados estão dependentes da China para que isso aconteça.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

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