“Se Joe Biden ganhar tem de agradecer aos republicanos conservadores”

A campanha eleitoral nos Estados Unidos chega ao fim esta segunda-feira com as sondagens a preverem a vitória de Joe Biden e os comícios de última hora a mostrarem um Donald Trump fresco e combativo. Ao Expresso, um consultor de comunicação analisa as campanhas democrata e republicana e identifica qual foi a novidade desta corrida em termos de comunicação política

Republicanos (à esquerda) e democratas IMAGEM

Donald Trump e Joe Biden cumprem esta segunda-feira o seu último dia de campanha. Chega ao fim uma corrida atípica, marcada pela pandemia que atingiu os Estados Unidos como nenhum outro país e também tensa, pela incerteza do resultado final e pelos receios em relação ao que se seguirá numa América profundamente dividida e radicalizada.

Se Joe Biden, nesta reta final, tem contado com o apoio do “irmão” Barack Obama — um dos Presidentes mais populares de sempre, com quem Biden fez dupla na Casa Branca entre 2009 e 2017 —, Donald Trump surge como um homem cada vez mais só. Com sondagens adversas, o 45º Presidente tem-se mostrado enérgico e combativo, mas em palco surge sem a companhia das grandes figuras do Partido Republicano, rodeado apenas pela família.

“Trump está como sempre foi. A organização de toda a sua equipa, de toda a gente que o rodeia, tem uma lógica um pouco mafiosa, não no sentido criminoso da palavra, mas no sentido da importância que a família assume. Se olharmos para estes quatro anos de mandato, quais são os elementos estáveis dentro do seu círculo de confiança? A família”, comenta ao Expresso Alexandre Guerra, mestre em Ciência Política e assessor de imprensa de Pedro Santana Lopes entre 2010 e 2017.

“No círculo de poder de um político, nomeadamente do Presidente dos EUA, há cargos que têm particular importância pela confiança de proximidade e pelo acesso que têm ao Presidente: o diretor de comunicação, o assessor de imprensa, o chefe de gabinete e assessores próximos. Estas pessoas são sempre muito próximas do líder político.”

Em relação ao diretor de comunicação, por exemplo, Trump vai no oitavo em quatro anos, enquanto Barack Obama teve cinco em dois mandatos e George W. Bush quatro. Ao nível do porta-voz da Casa Branca, já teve quatro, enquanto Obama teve cinco em dois mandatos e George W. Bush quatro.

“Trump é daqueles políticos que não fomentam a estabilidade de equipa. É um líder que, naturalmente, começa só e acaba só”, continua Alexandra Guerra, que é ainda autor do livro “A política e o homem pós-Humano” (Alêtheia, 2016) (atualmente é assessor de imprensa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa). “Isso é revelador da sua própria incapacidade em desenvolver relações de trabalho e criar relações de lealdade com os assessores mais próximos.”

Não por acaso, o 45º Presidente escolheu e privilegiou como canal preferencial de comunicação com o povo norte-americano o Twitter, onde tem mais de 87 milhões de seguidores. Ao disparar tweets “contorna todo aquele staff que existe para proteger o Presidente em tempos normais mas que ele nunca considerou”, aponta Alexandre Guerra.

Com Trump a atuar fora dos cânones da comunicação política tradicional, à semelhança do que já fizera na campanha de 2016, Alexandre Guerra considera que a grande novidade desta campanha aconteceu… fora das duas candidaturas.

“Em termos de comunicação política, não se retira muito de novo desta campanha”, diz. “Barack Obama trouxe sobretudo o contacto direto com os eleitores: os SMS, as redes sociais. Trump, em 2016, trouxe o seu estilo, que desafiava os cânones instituídos e os métodos e dinâmicas de trabalho entre aquilo que é uma equipa de comunicação política e o Presidente, por um lado, e entre o Presidente e os canais tradicionais de comunicação política, por outro”.

O que a corrida de 2020 traz de inédito é o facto de “haver republicanos, muitos deles antigos estrategos do Partido, que de uma forma muito afirmativa e assumida estão a fazer campanha pelo candidato democrata”, destaca. “O verdadeiro republicano conservador, que faz aquilo que acha que é melhor para a América, gosta de Ronald Reagan, não gosta de Donald Trump.”

Alexandre Guerra destaca duas iniciativas: o Lincoln Project (Projeto Lincoln) e o movimento Republican Voters Against Trump (Eleitores Republicanos Contra Trump). “Estes dois projetos são uma novidade. A comunicação é extremamente bem feita, por profissionais com experiência na área da comunicação política, muitos deles com anos de campanhas no campo republicano. Conseguiram criar uma dinâmica.”

O Projeto Lincoln inspira-se na figura do 16º Presidente, Abraham Lincoln, que liderou o país durante os anos mais sangrentos e desunidos da História dos EUA — os da guerra civil (1861-1865). Foi elaborado por autodenominados “americanos dedicados” que querem “proteger a democracia”: “Os fundadores do projeto Lincoln passaram mais de 200 anos a eleger republicanos. Mas agora desencadearam um movimento nacional com uma única missão: derrotar Donald Trump e o Trumpismo”, declaram no sítio na Internet do projeto.

Na mesma linha, os Eleitores Republicanos Contra Trump assumem-se como um movimento que representa “republicanos, ex-republicanos, conservadores e ex-eleitores de Trump que não podem apoiar Trump para Presidente neste outono”.

“Não há memória de isto ter acontecido anteriormente de forma tão sistematizada e organizada”, comenta Alexandre Guerra. “Há vários movimentos republicanos que se organizaram para salvar o Partido Republicano e salvar aquilo que são os valores da América – e ao fazerem-no acabaram por se colocar ao serviço do candidato democrata. É uma coisa totalmente inédita”, diz.

“Estes republicanos assumem claramente que não votam Trump. Vão fazer um voto patriótico em Joe Biden. Se Biden ganhar tem de agradecer aos republicanos conservadores.”

Analisando a estratégia democrata, o consultor de comunicação não se mostra particularmente impressionado com a campanha de Joe Biden e Kamala Harris. “Não tem sido muito entusiasmante. Faltaram pesos-pesados à equipa de candidatura que pensassem política e comunicação política e delineassem uma campanha que, desde o início, atacasse forte Donald Trump. Faltou um James Carville (que trabalhou com Bill Clinton), um David Axelrod (que ajudou Barack Obama), um Karl Rove (que assistiu George W. Bush), um Alastair Campbell (que foi o estratego de Tony Blair, no Reino Unido)”, recorda.

Alexandre Guerra enumera mesmo alguns “erros de principiante” que acharia impossível de acontecer numa campanha presidencial norte-americana. “No primeiro debate, Biden chamou ‘palhaço’ ao Presidente dos EUA. Também a forma como ele foi vestido: ele é branco, tem cabelo branco e levou uma gravata branca e preta, o que lhe deu um ar abatido e envelhecido. E levou um lenço do lado esquerdo do fato, que é algo que muito eleitorado que ele tem de conquistar, mais rural e menos sofisticado, acha presunçoso e um tique de aristocrata.”

Porém, escaldados com a campanha de há quatro anos, que não impediu a vitória do inexperiente Trump contra a superpreparada Hillary Clinton, os democratas tentaram agora aprender com os erros. “Perceberam que tinham de lutar até ao fim, até ao último dia, independentemente das sondagens”, diz Alexandre Guerra.

“Esta preocupação foi expressa num memorando enviado [no mês passado] pela diretora de campanha, Jennifer O’Malley Dillon, a apoiantes e doadores do Partido Democrata, onde dizia claramente: ‘Não se fiem no que dizem as sondagens e os analistas. Este é um combate até ao fim. Não subestimem o adversário’. Foi um memo muito certeiro e revelador da preocupação que existe na campanha de Biden para que não se cometam os mesmos erros da campanha de Hillary, que ganhou o voto popular mas não ganhou nos sítios certos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui

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