Golpes na democracia

O retrocesso democrático sob a liderança de Narendra Modi faz temer a transformação do país numa autocracia

os meandros das relações internacionais, a referência à “maior democracia do mundo” não carece de explicação, já que se tornou sinónimo de Índia. Mas se “maior” é adjetivo incontestável para o caso, dada a dimensão do país onde vive quase um quinto da população mundial (1300 milhões) e onde cada ato eleitoral dura vários dias, já o carácter democrático do seu sistema de governo é cada vez mais questionável.

A perceção de uma certa degradação acentua-se perante casos como o que envolveu Disha Ravi, ativista de 22 anos detida, faz amanhã duas semanas, após ter divulgado um “kit para protestos” publicado na rede social Twitter pela ambientalista sueca Greta Thunberg. O documento alertava para a luta dos agricultores indianos, há meses em pé de guerra com o Governo devido a três novas leis que os farão perder rendimentos em detrimento das grandes empresas. Ravi sugeria formas de luta.

A vaidade ferida do governo

Neta de agricultores, a ativista conheceu desde o berço as dificuldades de quem vive da terra, agravadas ano após ano pelas alterações climáticas que danificavam as colheitas com secas ou chuvas abundantes. Levada pela polícia da casa onde vive com a mãe, em Bangalore, Ravi — que trabalhava num restaurante vegan e esteve na origem da versão indiana das Sextas-Feiras pelo Futuro iniciadas por Thunberg — foi acusada de sedição.

Quando são criticadas por terem políticas discriminatórias, as autoridades optam por punir os críticos

Terça-feira passada, um tribunal de Nova Deli libertou-a após considerar haver “provas escassas e incompletas” de sedição nas suas ações. O juiz criticou também a atuação das autoridades, por serem ágeis a deter quem discorda das políticas governamentais. “Mesmo os nossos pais fundadores concederam o devido respeito à divergência de opinião, reconhecendo a liberdade de expressão como direito fundamental inviolável”, disse o magistrado Dharmender Rana. “O direito à dissidência está firmemente consagrado no artigo 19 da Constituição da Índia.” O juiz acrescentou que “a sedição não pode ser invocada para servir a vaidade ferida do governo”.

Dissidentes como terroristas

“A repressão da dissidência pacífica é extremamente preocupante”, comenta ao Expresso Meenakshi Ganguly, diretora para a Ásia do Sul da Human Rights Watch. “As autoridades indianas estão a fazer acusações contra críticos ao abrigo de leis draconianas de contraterrorismo ou antissedição.”

Casos como o de Ravi expõem ameaças quotidianas às liberdades civis, como a criminalização da dissidência e da liberdade de expressão, que têm levado a Índia a perder posições nas classificações internacionais que avaliam a qualidade da democracia no mundo. Divulgado há três semanas, o último Índice da Democracia elaborado pela The Economist Intelligence Unit coloca a Índia no 53º lugar. Em 2014, quando Narendra Modi foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez, o país estava na 27ª posição.

“As normas democráticas estão sob pressão desde 2015”, diz o relatório, que justifica a queda consistente com “um retrocesso democrático sob a liderança de Narendra Modi”, apologista do nacionalismo hindu. “A crescente influência da religião sob o Governo de Modi, cujas políticas fomentaram o sentimento antimuçulmano e os conflitos religiosos, prejudicou o tecido político do país.”

Minoria de quase 200 milhões

Uma medida que incendiou as sensibilidades e gerou confrontos violentos foi a aprovação de uma emenda à Lei da Cidadania, a 10 de dezembro de 2019, que facilita a obtenção da cidadania indiana a pessoas oriundas de um conjunto de países e que professem determinadas religiões, mas não a muçulmana. Na Índia, os muçulmanos são uma minoria de quase 200 milhões, visados pela nova lei e pela atitude discriminatória e o discurso de ódio que ela normalizou. Em fevereiro de 2020, confrontos entre hindus e muçulmanos em Nova Deli provocaram 53 mortos.

“É a agenda política do partido nacionalista hindu [Bharatiya Janata], no poder, que muitas vezes demoniza as minorias religiosas”, denuncia Meenakshi Ganguly. “Quando são criticadas por terem políticas discriminatórias ou por causa de ataques violentos realizados por apoiantes do Governo, infelizmente, as autoridades optam por punir os críticos. Vemos um padrão de preconceito na atuação contra o discurso dos críticos do Governo, acusando-os de serem antipatriotas ou de causarem inimizade entre as comunidades, enquanto os apoiantes do Governo que incitam abertamente ao ódio e à violência são protegidos.”

Há duas semanas o jornal norte-americano “The Washington Post” recuperou um caso com três anos que mancha a credibilidade da Índia enquanto Estado de direito. Era 1 de janeiro de 2018 e na aldeia de Bhima Koregaon, no ocidente da Índia, comemorava-se o 200º aniversário da batalha com o mesmo nome, que os dalits (“intocáveis”, a casta mais baixa da sociedade indiana) sentem como vitória sobre um adversário de casta superior. A celebração originou atos violentos entre hindus e dalits e levou à detenção de ativistas defensores dos mais desprivilegiados, acusados de conspirar para derrubar o Governo de Modi.

Segundo a investigação do jornal americano, os ativistas — alguns dos quais estão presos há mais de dois anos sem julgamento, ao abrigo de legislação antiterrorista — foram incriminados por informação colocada no portátil de um deles durante um ciberataque. A descoberta foi feita por uma empresa digital forense dos Estados Unidos, que analisou uma cópia do computador a pedido do advogado do ativista. Solicitado pelo jornal, as conclusões foram depois revistas por três peritos em malware, que as validaram.

Casos como este tornam as conclusões de outro barómetro internacional da democracia pouco surpreendentes. Segundo o Instituto Variedades de Democracia (V-Dem), da Suécia, a Índia integra o top 10 das democracias que mais depressa se estão a transformar em autocracias.

OPINIÃO

Três revoluções em curso

Ademocracia indiana está em contínuo desenvolvimento com múltiplos desafios, como todas as outras, incluindo a portuguesa e a americana. Mas ao contrário das democracias ocidentais, a indiana é bem mais jovem. Em termos formais, comemora 75 anos em 2022, marcando o fim do colonialismo britânico em 1947. Na prática, a democracia indiana é um processo revolucionário em curso, marcado por três ruturas desde os anos 90: uma revolução demográfica, com a maior população jovem do mundo e uma média de idades de 27 anos, naturalmente ambiciosa e impaciente; uma revolução económica, com a abertura do mercado e aceleração das reformas a reduzirem drasticamente a pobreza; e uma revolução social e política, com a ascensão de castas e classes tradicionalmente marginalizadas por via das quotas e outras garantias constitucionais. No seu conjunto, esta transição puxa para dois sentidos opostos: uma Índia menos anglófona e elitista com a expansão da participação democrática, por via da mobilização hindu, nacionalista e identitária, o que coloca crescente pressão sobre instituições, minorias e liberdades. O paradoxo é que a Índia está mais jovem e democrática do que nunca, mas também menos liberal e cosmopolita.

Constantino Xavier, investigador no Centro para o Progresso Social e Económico, de Nova Deli

(ILUSTRAÇÃO DEVIANTART)

Artigo publicado no “Expresso”, a 26 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

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