Um grito em nome de Alepo

Esteve quase quatro anos em missão na Síria e foi testemunha de uma “convivência única” entre populações muçulmanas e cristãs. Hoje, a irmã argentina Maria de Guadalupe sente que é seu dever partilhar a sua experiência para alertar, sobretudo, para a situação em Alepo. Falámos com ela, aprendemos com ela, sofremos com ela

Na era da comunicação global e das grandes conquistas tecnológicas, nem sempre a verdade está à distância de um clique. E o conflito na Síria é um exemplo disso. “Estamos na era da comunicação, mas é lamentável que não se saiba a verdade sobre o que se passa em Alepo.

O que se vende no Ocidente é uma mentira, baseada em muita desinformação e ignorância”, acusa a irmã Maria de Guadalupe, de 43 anos, em entrevista ao Expresso. E concretiza: “A perseguição aos cristãos é desconhecida do resto do mundo”.

Missionária da Família Religiosa do Verbo Encarnado, congregação sediada em Buenos Aires — cidade onde nasceu o Papa Francisco —, Guadalupe esteve quase quatro anos em missão em Alepo, a segunda maior cidade síria e que hoje se encontra praticamente dizimada pela guerra. “Em termos humanos, Alepo foi a pior situação que alguma vez presenciei. Mas foi também, sem dúvida alguma, a minha melhor missão. Se voltasse atrás no tempo, pediria para ir para a Síria.”

Em Alepo, antes da guerra rebentar, a irmã testemunhou uma convivência entre muçulmanos e cristãos como nunca antes vira na região. “Nunca vi nada igual em 15 anos de missões no Médio Oriente.” A Síria era um país excecional, tinha um Estado laico e “Alepo era uma cidade desenvolvida, muito próspera, com um excelente nível académico — era uma cidade empresarial”, que rivalizava com Damasco, a capital. Pessoas de diferentes religiões eram colegas de trabalho e amigos.

Dirigindo um coro infantil na Catedral do Menino Jesus, no bairro de Shahba, onde vivem e trabalham os missionários da congregação da irmã Guadalupe FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO

Maria de Guadalupe chegou a Alepo em inícios de 2011, quando as manifestações populares da Primavera Árabe ainda não tinham saído às ruas da Síria e ninguém antevia a guerra sangrenta que se seguiria. Antes, tinha estado dois anos na cidade palestiniana de Belém (Cisjordânia) e 12 em Alexandria, no Egito.

Durante esse período, deslocou-se a vários países na região (Jordânia, Síria, Iraque e Tunísia) para trabalhar junto das comunidades cristãs locais. Quando lhe foi proposto que escolhesse o seu próximo destino, a missionária escolheu Alepo, pensando que iria poder desfrutar de um período mais calmo do que aquele que vivera no Egito.

“Nunca pensei estar preparada para permanecer num país em guerra, mas eu já lá estava quando a guerra começou. Apercebi-me que tinha de ficar, pois Deus mo pedia. O meu superior sempre disse que temos de ir para onde ninguém queira ir. Esse lugar é Alepo”, cidade que está, desde há anos, a ser disputada pelo exército nacional, forças rebeldes laicas e jihadistas.

Guadalupe vivia na parte ocidental da cidade, controlada pelas tropas do Presidente Bashar al-Assad. “É um erro dizer que a Síria está a sofrer uma guerra civil. O país foi invadido por grupos armados estrangeiros, terroristas, que desde o início perseguem abertamente os cristãos e qualquer outro grupo que não corresponda ao seu fundamentalismo.”

Acusa o Ocidente de defender a liberdade, a democracia e os direitos humanos e, ao mesmo tempo, de financiar o terrorismo em nome de interesses económicos.

Além do trabalho pastoral na catedral, a congregação tem uma residência para estudantes universitárias oriundas de fora de Alepo FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO

Quando o Daesh se fez anunciar na Síria — estabelecendo em Raqqa a sua capital —, a missionária ainda estava no país. Mas nunca o enfrentou diretamente. “Se tivesse tido algum contacto com o Daesh não estaria cá hoje para contar”, diz, fazendo o gesto de quem corta a garganta. “Não há maneira de conversar com esta gente. O Daesh pratica uma intolerância total para com os cristãos. O sequestro ou a morte são inevitáveis.”

A irmã garante que apesar da devastação e das atrocidades cometidas em Alepo e noutras cidades da Síria, as populações resistem o mais possível a deixar as suas casas ou o país. Fugir é sempre a última opção, “o êxodo é forçado”. É resultado do desespero. Estima-se que, desde março de 2011, cerca de 11 milhões de sírios tenham fugido de casa. Muitos saíram mesmo do país.

Guadalupe saiu da Síria em finais de 2014. Hoje, sente que, de certa forma, a sua missão em Alepo ainda não terminou. Viaja por vários países, dando o seu testemunho para que os cristãos perseguidos, com quem se preocupa em especial, tenham uma voz que os defenda. Uma gota no oceano, mas uma gota necessária.

Chegou a Portugal no passado dia 18, a convite da fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre. Esteve no Porto, no Estoril, em Lisboa e esta quinta-feira à noite dará o seu testemunho em Almada, na Igreja Paroquial de São Tiago, pelas 21h15.

Na quarta-feira, a irmã Guadalupe deu o seu testemunho no Colégio de São Tomás, em Lisboa FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO

Para quem não a irá ouvir, ela apela: “Não podemos ser indiferentes ao que se passa em Alepo. Temos de rezar por eles e pela paz. E temos de cooperar, contribuindo para a paz com o nosso próprio comportamento. Somos seres humanos e vivemos em comunidade. Se eu faço o bem, isso repercute-se na sociedade e contribui para a paz. Se eu vivo em pecado, vício, egoísmo, isso repercute-se na sociedade e contribui para a guerra. O nosso comportamento não é indiferente. Através dele, cooperamos com a guerra ou com a paz.”

(Foto principal: A irmã Maria de Guadalupe esteve em missões no Médio Oriente durante 15 anos FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO)

Artigo escrito em conjunto com Flor Lança de Morais e publicado no “Expresso Diário”, a 24 de novembro de 2016 e republicado no Expresso Online, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

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