Aos 77 anos, Aung San Suu Kyi tem pela frente (pelo menos) 33 de prisão. Que hipótese há de sair em liberdade?

Desde que regressou à sua Birmânia natal, Aung San Suu Kyi já viveu sensivelmente tanto tempo em liberdade como presa. Detida pela última vez na sequência do golpe militar de 1 de fevereiro de 2021, enfrenta uma maratona de julgamentos que pode levar a que nunca mais saia em liberdade. “Foi tudo planeado para desacreditar Suu Kyi e garantir que não haja retorno político”, comenta um analista. “Todo o processo visa acabar com as aspirações dela à liderança nacional.”

Quando, aos 43 anos de vida, Aung San Suu Kyi decidiu voltar ao país onde nascera, e de onde saíra com 15, encontrou uma Birmânia (hoje Myanmar) em ebulição. Corria o ano de 1988 e, nas ruas, gigantescas manifestações populares desafiavam a autoridade da junta militar, no poder.

Suu Kyi regressara por razões do coração, motivada pela vontade de acompanhar os últimos tempos de vida da mãe, que sofrera um grave acidente vascular cerebral. Mas o seu ADN político não a deixou indiferente em relação à agitação interna.

Filha do general Aung San, o herói da independência da Birmânia e considerado o pai das forças armadas do país (Tatmadaw), assassinado quando ela tinha apenas dois anos, Suu Kyi tornou-se um ativo do movimento pró-democracia. Ajudou a fundar a Liga Nacional pela Democracia (LND) e proferiu um discurso memorável em frente ao pagode Shwedagon, em Rangum, para meio milhão de pessoas. Com isto tornou-se alvo dos generais.

A 20 de julho de 1989, cerca de um ano após voltar à Birmânia, Suu Kyi foi colocada em prisão domiciliária pela primeira vez. Hoje, cumpre o quarto período de detenção.

Nobel da Paz em clausura

Dos cerca de 35 anos que Suu Kyi viveu em Myanmar, mais de 17 foram passados em clausura: 1989-1995, 2000-2002, 2003-2010 e desde 2021. Foi durante um destes períodos, em 1991, que recebeu o prémio Nobel da Paz “pela sua luta não violenta pela democracia e os direitos humanos”. Na cerimónia em Oslo, representaram-na o marido e os dois filhos.

Aung San Suu Kyi proferiu o seu discurso de aceitação do Nobel da Paz, em Oslo, 21 anos após ter sido galardoada DANIEL SANNUM-LAUTEN / AFP / GETTY IMAGES

Aung San Suu Kyi foi detida pela última vez a 1 de fevereiro de 2021, na sequência de um golpe militar que depôs o Governo que liderava. Desde então, a sua vida transformou-se numa maratona de julgamentos que já lhe valeram um cúmulo jurídico de 33 anos de prisão. Pela frente, enfrenta outras acusações que podem valer-lhe novas sentenças.

A última pena foi-lhe atribuída a 30 de dezembro passado: sete anos de prisão por delitos relacionados com o uso de um helicóptero quando era líder de facto do país.

“Esta sentença final de condenação pela compra de um helicóptero sinaliza o culminar de um julgamento brutalmente ridículo desde o golpe de 2021. Foi tudo planeado para desacreditar Suu Kyi e garantir que não haja retorno político”, diz ao Expresso David Scott Mathieson, analista independente em Chiang Mai (Tailândia), que viveu oito anos em Rangum.

Nos últimos dois anos, sucessivas penas de prisão foram aplicadas a Suu Kyi por incitamento, violação das restrições justificadas com a covid-19, posse ilegal de equipamentos de rádio, violação de uma lei de segredos de Estado da época colonial, corrupção e tentativa de influência de funcionários eleitorais.

Aung San Suu Kyi, no n.º 54 da University Avenue, uma casa de estilo colonial ribeirinha ao lago Inya, onde ela viveu anos em prisão domiciliária CHRISTOPHE LOVINY / GETTY IMAGES

Aung San Suu Kyi é o principal alvo de uma campanha de repressão política levada a cabo pelo regime dos generais contra líderes políticos, ativistas e todos quantos questionem o golpe que terminou com a experiência democrática birmanesa ensaiada a partir de 8 de novembro de 2015, quando o partido de Suu Kyi venceu as eleições legislativas por expressivos 58% dos votos.

Segundo a Associação de Assistência aos Presos Políticos, desde o golpe de 1 de fevereiro de 2021 e até esta segunda-feira:

  • 17.041 pessoas foram detidas
  • 13.321 estão ainda detidas
  • 2711 foram mortas pela junta militar
  • 3696 foram libertadas

Hoje, aos 77 anos, a perspetiva de Suu Kyi passar mais 33 na prisão equivale, na prática, a uma sentença de prisão perpétua. “Quer [os generais] a mantenham encarcerada ou a troquem por concessões e forneçam uma amnistia, todo o processo visa acabar com as aspirações dela à liderança nacional”, diz Mathieson.

Acordo é pouco provável

“Há pouca probabilidade de qualquer tipo de governação compartilhada. Se os militares tentarem usar Suu Kyi como moeda de troca para debelar a violência por todo o país, a realidade vai além disso”, acrescenta o antigo investigador da Human Rights Watch.

A 13 de fevereiro de 2015, envolta numa multidão de apoiantes, na cidade de Natmauk, após uma cerimónia do 100º aniversário do nascimento do seu pai YE AUNG THU / AFP / GETTY IMAGES

“Duvido que muitos dos novos grupos a escutassem se ela tentasse fazer um acordo com o Conselho de Administração do Estado [nome formal da junta militar]. Mesmo que o regime quisesse um acordo, eles não são fiáveis, e muitos dos grupos armados que nunca viram Suu Kyi como sua líder não vão receber ordens dela.”

Guerras étnicas

A atual Constituição de Myanmar, de 2008, dividiu o país em sete estados étnicos e reconhece a existência de 135 grupos étnicos — que não os rohingya, a minoria muçulmana do país, perseguida pelo regime.

Vários desses grupos étnicos estão envolvidos numa luta armada com o poder central, que deixa Myanmar, com frequência, à beira de um precipício de violência. No último dia de 2022, a junta prorrogou o acordo de cessar-fogo com os grupos armados até ao fim de 2023. Desde 21 de dezembro de 2018, essa trégua já foi prolongada 21 vezes.

“Os militares calcularam mal o seu golpe e agitaram todo o país contra eles”, diz Mathieson. “Provocaram uma geração mais jovem a lutar contra o regime repressivo. Muitos desses jovens não ouviriam Suu Kyi se ela tentasse liderá-los quando fosse libertada. O país mudou drasticamente.”

Dirigente democrática foi criticada

Aung San Suu Kyi não é uma personalidade imune a críticas. Se a atribuição do Nobel da Paz foi um reconhecimento unânime, o seu silêncio em relação à repressão aos rohingya colocou-a sob fogo. Em 2019, diante do Tribunal Penal Internacional, em Haia, defendeu os militares birmaneses das acusações de genocídio contra os rohingya (palavra que ela nunca usou).

A imagem de Aung San Suu Kyi e a data do golpe militar tatuadas nos braços de birmaneses a viver na Tailândia. A saudação de três dedos é um gesto pró-democracia PEERAPON BOONYAKIAT / GETTY IMAGES

Várias vozes defenderem que o Nobel lhe fosse retirado e algumas organizações recuaram no reconhecimento público que lhe tinham prestado. Em 2018, a Amnistia Internacional revogou o Prémio Embaixador de Consciência que lhe fora atribuído em 2009. E em 2020, Suu Kyi foi excluída da comunidade de laureados com o Prémio Sakharov dos Direitos Humanos por causa “da gravidade e escala da violação dos direitos humanos” que os rohingya enfrentam na Birmânia.

“Apesar das suas muitas falhas, Suu Kyi é inocente de todas essas acusações ridículas [pelas quais está a ser julgada] e é uma refém política”, conclui Mathieson. “O mundo deve exigir a sua libertação imediata e incondicional, juntamente com a dos outros 13 mil presos políticos.”

(FOTO Aung San Suu Kyi, na sede da Liga Nacional pela Democracia, a 8 de dezembro de 2010, dias após ser libertada do seu terceiro período de detenção GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui

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