A Guernica da Palestina

Planeados para durar 45 dias, os protestos na Faixa de Gaza vão a meio. O número de mortos não esmorece um protestos que os palestinianos consideram justo e moral

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Na Faixa de Gaza, a Grande Marcha do Regresso vai sensivelmente a meio caminho. Iniciados a 30 de março e com fim previsto para 15 de maio, os protestos massivos junto à fronteira com Israel pelo direito de retorno dos refugiados palestinianos às terras de onde foram expulsos após a criação do Estado judeu cumpriram, esta sexta-feira, a sua 22º jornada. Pelo caminho já tombaram mortos 37 palestinianos, quatro deles nos protestos desta sexta-feira.

Uma das vítimas é Yaser Murtaja, um fotojornalista de 31 anos. Morreu há uma semana, atingido a tiro por um “sniper” israelita quando se preparava para continuar a disparar… fotografias. Na cabeça tinha um capacete protetor e no corpo um colete que o identificava com a palavra “press”. “Foi abatido a sangue frio apenas porque segurava uma câmara, com a qual transmitia imagens para o mundo”, diz ao Expresso Asad Abu Sharkh, de 65 anos, professor universitário na área de Linguísticas e porta-voz da Grande Marcha. “São as ordens que eles têm do chefe de Estado-Maior, Gadi Eizenkot: atirar a matar contra quem se aproximar da cerca. Matar o maior número possível de palestinianos para intimidar. Sentem-se apoiados pela política de ‘dois pesos’ dos países ocidentais e estão protegidos pelo veto dos Estados Unidos” nas Nações Unidas.

Nascido em Ashkelon (atual território de Israel), Asad é um dos milhões de palestinianos que sonham com o regresso à terra onde nasceram. Um tio seu foi o último presidente da Câmara da cidade, até 1948, ano da criação de Israel. “Esta Marcha é um grito para o mundo exterior. Um apelo à comunidade internacional para que aplique as resoluções adotadas na ONU em defesa dos refugiados palestinianos” — como a resolução 194, sobre o direito de regresso e de repatriamento.

“Não podemos esperar mais, sentimo-nos desumanizados, perseguidos. Israel está a fazer uma guerra genocida contra o povo da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Nega os nossos direitos e ignora as resoluções internacionais relativas à questão palestiniana. Intimida os palestinianos para forçá-los a abandonar as terras e traz judeus de todo o mundo para as ocupar. Isto é uma limpeza étnica.”

Asad Abu Sharkh, no uso da palavra, durante uma palestra sobre “formas de resistência popular”, numa das “tendas do regresso”, em Gaza HAIDAR EID

Os protestos em Gaza tornam-se notícia à sexta-feira — o “domingo” dos muçulmanos, dia em que estão mais disponíveis para ações de intervenção social, muitas vezes incentivados pela oração do meio-dia, nas mesquitas, a principal da semana. Mas a iniciativa “vive” durante toda a semana, especialmente no interior das tendas montadas próximo da fronteira.

Na quarta-feira, no interior de uma delas, Asad participou numa palestra intitulada “A Grande Marcha do Regresso e o Movimento BDS: Formas principais de resistência popular”. BDS significa “Boicote, Desinvestimento e Sanções” e alude a uma campanha internacional que visa isolar Israel a todos os níveis, sobretudo académico e cultural.

No dia seguinte, o movimento assinalaria uma vitória importante. Galardoada com o Prémio Genesis, que reconhece “pessoas extraordinárias que inspiram a próxima geração de judeus”, a atriz norte-americana e israelita Natalie Portman — nascida em Jerusalém, em 1981 — anunciou que não iria a Israel receber a distinção devido a “acontecimento recentes” no país. A cerimónia, marcada para junho, foi cancelada.

“Batalha” dos panfletos

Em antecipação a mais uma jornada forte de protestos, na quinta-feira, as Forças de Defesa de Israel (IDF) “bombardearam” Gaza com panfletos: “Residentes de Gaza: Vocês estão a participar em atos de violência. O Hamas usa-vos para os seus objetivos extremistas. As IDF estão preparadas para tudo”. A mensagem aconselhava os locais a não se aproximarem da cerca e a manterem-se “longe de terroristas que praticam atos de violência. As nossas forças de defesa farão tudo o que for necessário para travar qualquer ataque ou assalto”.

O Expresso perguntou a Asad Abu Sharkh se os manifestantes irão tentar derrubar a cerca. “Os palestinianos estão muito determinados em continuar com os protestos de forma pacífica, de forma pacífica”, repete, “sem violência”, realça, “usando meios e métodos legais nos termos do direito internacional e das resoluções da ONU”.

Os factos dizem que, desde o início da Grande Marcha, nenhum “rocket” foi disparado desde a Faixa de Gaza contra território israelita, como muitas vezes acontece em contextos de agitação.

Ao estilo de uma “guerra psicológica”, o Hamas divulgou panfletos em árabe e hebraico destinados aos israelitas: “Sionistas: Vocês não têm lugar na Palestina. Regressem ao lugar de onde vieram. Não respondam aos vossos líderes. Eles estão a enviar-vos para a morte”. A mensagem atravessou a fronteira em papagaios de papel.

Na quinta-feira, as chamadas “tendas do regresso” receberam ordem para avançar 50 metros no terreno, sentido da fronteira. A medida foi “uma mensagem de persistência por parte do nosso povo para o mundo de que estamos a movimentar-nos na direção dos nossos objetivos legítimos”, anunciou o comité organizador. As tendas estão agora entre 500 e 700 metros de distância de Israel.

Interior de uma “tenda do regresso”, montada próximo da fronteira, onde se assiste a uma conferencia sobre a questão palestiniana HAIDAR EID

Habitantes de um retângulo de território de 41 quilómetros de comprido por seis a doze de largura, cerca de dois milhões de pessoas vivem em Gaza ao estilo de “uma prisão a céu aberto”, diz Asad Abu Sharkh.

Se, no passado, Israel chegou a adotar uma política de assassinatos seletivos para “eliminar” alvos concretos — como o “sheikh” Ahmed Yassin, líder espiritual do Hamas, alvejado por um helicóptero da Força Aérea israelita na sua cadeira de rodas, em 2004 —, hoje a estratégia em Gaza passa por uma “punição coletiva”.

O bloqueio israelita e egípcio asfixia o território e condena a sua população ao desespero. O único posto de fronteira que permite a saída de pessoas de Gaza — Rafah, no sul, que dá para a Península do Sinai — tem estado quase sempre fechado: em 2016 abriu 42 dias e em 2017 apenas 36.

E, no domínio da política palestiniana, o interminável braço de ferro constante entre o Hamas (que controla a Faixa de Gaza) e a Fatah (a fação dominante na Autoridade Palestiniana) mina a tão desejada reconciliação nacional.

Nascido no campo de refugiados de Nusairat (centro da Faixa de Gaza), Haidar Eid cresceu sob ocupação israelita. A família é originária da aldeia de Zarnuqa, área de Ramla (centro de Israel), cidade com uma população predominante judia, mas onde ainda vive uma minoria de árabes. Na sua página no Facebook, Haidar tem como imagem principal a famosa pintura de Pablo Picasso que alude ao sofrimento humano em contexto de violência. Diz ao Expresso: “Gaza é a Guernica da Palestina”.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 20 de abril de 2018. Pode ser consultado aqui

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