Cristina só perde se houver uma catástrofe

A duas semanas das eleições no país das pampas, o Expresso entrevistou Andrés Malamud, investigador auxiliar do Instituto de Ciências Sociais de Lisboa. Para este argentino de 39 anos, Cristina Kirchner sucederá facilmente ao marido


Cristina Fernández de Kirchner, A 20 de dezembro de 2007, dez dias após ter tomado posse PRESIDÊNCIA DA ARGENTINA / WIKIMEDIA COMMONS

Como caracteriza os Kirchner?
É difícil entender este casal sem entender o peronismo. Este casal não funcionaria noutro partido. O peronismo é um fenómeno que nasce na Argentina em 1945 e tem uma identificação social mais do que política. As pessoas definem-se como peronistas assim como na Tunísia definem-se como muçulmanas e em Portugal como católicas. Nascem assim e permanecem assim. Mas o casal Cristina-Kirchner funciona de uma forma diferente do casal Evita-Péron. Evita era a mulher do Péron, enquanto Cristina tem autonomia política. Ela é um quadro político, tem mais formação política do que o marido. O que ela não tem é experiência de gestão. Ele foi governador e agora é Presidente, ela foi sempre deputada e senadora. A sua experiência política é legislativa. Tem mais experiência em debater e negociar do que em decidir e executar. Mas a personalidade de Cristina é claramente executiva.

Néstor Kirchner tinha as sondagens a seu favor. Porque é que ele abdicou de se apresentar à reeleição? 
Na Argentina, o Presidente governa durante quatro anos, apresenta-se à reeleição e se ganhar governa só durante mais quatro anos. Depois só pode voltar a candidatar-se mais tarde. (Nos Estados Unidos, é Presidente durante oito anos e depois vai para casa). A partir do sexto ano, como se sabe que ele não pode recandidatar-se, os políticos da oposição começam a agir já a pensar no próximo Presidente. O Presidente Kirchner quis evitar esse efeito. Ele sabe que depois dele, será Presidente a sua mulher e depois dela poderá vir ele novamente.

Essa sucessão dinástica foi pacífica entre os argentinos? 
Foi pacífica dentro do peronismo, onde vigora o chamado “princípio do líder” segundo o qual quem governa o país manda no partido. Kirchner diz: ‘Eu sou o Presidente, sou o chefe, digo quem me sucede’. Isto não é necessariamente pacífico, mas dentro do peronismo ninguém protesta em voz alta, com a excepção de dois governadores que estão mais ou menos marginalizados.

Que percentagem da sociedade argentina é peronista? 
Há uma frase de Péron elucidativa. Uma vez perguntaram-lhe como é que os argentinos se dividiam politicamente. Ele respondeu: “Há 20% de conservadores, 30% de socialistas e 50% de radicais”. E quantos são os peronistas? “Ah, peronistas são todos”, disse Péron. Hoje não é bem assim, mas há um limiar de 40%. Desde 1983 (fim da ditadura de Jorge Videla e eleição do Presidente Raúl Alfonsin), só por uma vez o peronismo obteve menos de 40% dos votos.

Os argentinos conheciam Cristina Kirchner? 
Quando Kirchner governava Santa Cruz (1991-2003) — a segunda província argentina mais pequena, com 200 mil habitantes — já Cristina era uma senadora com muito peso, não por conseguir que as votações no Senado fossem no sentido que ela queria, mas porque era a única que, por vezes, se opunha ao Presidente Carlos Menem. Ela fazia muito barulho, tinha muito mais autoridade do que o marido. Cristina sempre foi conhecida por mérito próprio.

Cristina evoca frequentemente a figura de Eva Péron. Há semelhanças? 
Há, desde logo o facto de ser esposa do Presidente, embora ela já fosse conhecida antes do marido tornar-se Presidente, o que não aconteceu com Eva. Cristina tem formação intelectual e política, mais do que Eva e do que o próprio marido. Ela identifica-se com a ‘Eva do punho erguido’. A diferença é que Eva ia, com peles e jóias, distribuir bens pelos pobres e a Cristina não é essa Eva que presta assistência, mas antes a Eva lutadora. Ela gosta dessa imagem.

Mas Cristina é genuína nessa colagem à figura e ao discurso de Eva Péron? 
Há muita coisa artificial nela: as extensões no cabelo, o botox… Mas politicamente, ela é genuína, acredita naquilo que diz e tem uma formação ideológica superior à média dos políticos argentinos. Não é tonta nem fanática.

Há quem atribua ao casal Kirchner tendências autocráticas. Concorda? 
É o peronismo que é autocrático e não o casal, que é simplesmente peronista. Eles agem como agiria qualquer peronista no seu lugar. O poder não é para partilhar, é para exercer.

Acha que eles estão próximos de Hugo Chávez? 
Estão próximos de Hugo Chávez financeiramente, mas não ideologicamente. A Argentina ainda tem dificuldades financeiras. Há um quarto da dívida externa que ainda não foi renegociado e o país não tem condições para aceder ao mercado internacional de crédito. Então, pede a Chávez, que tem uma disponibilidade financeira imensa. Kirchner não concorda muito com Chávez, mas Cristina concorda ainda menos, mas dão-se bem pessoalmente e sobretudo necessitam do dinheiro da Venezuela.

Há algum candidato que pode derrotar Cristina Kirchner nas eleições de 28 de Outubro? 
Ninguém a pode derrotar. O sistema eleitoral argentino indica que quem atingir 45% ganha à primeira volta; se tiver 40% e o segundo candidato não atingir 30% ganha igualmente à primeira volta. É pouco provável que a Cristina não atinja os 40%. Tinha de acontecer uma catástrofe.

Não há um candidato forte que a ameace? 
Não. Roberto Lavagna, um antigo ministro da Economia de Kirchner e de Duhalde, é um candidato muito bom mas não tem carisma e provavelmente não terá mais de 20%. Há também Elisa Carrió, uma candidata mais de esquerda, mais messiânica e diligente, mas pouco pragmática e que dificilmente terá 30%.

Quais deverão ser as prioridades do próximo Presidente? 
O combate à inflação. Neste momento, a inflação está entre 10 e 15% e a história indica que quando a inflação supera os 20% vai para a hiper-inflação, ou seja, para três dígitos. Economicamente, é catastrófico. É possível que este governo ou o próximo consigam impedir os três dígitos de inflação, mas para isso têm que tomar muitas medidas impopulares. Se a Cristina ganhar, será o governo do marido a tomar essas medidas. Kirchner pagará esse custo político e Cristina começará a governar fresca.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de outubro de 2007. Pode ser consultado aqui. Uma versão curta da entrevista foi publicada no Expresso, a 13 de outubro de 2007

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