Dos quatro países da “primavera árabe” onde os protestos populares derrubaram ditadores, o Iémen foi o último, efetivamente, a punir o seu. O desaparecimento de Ali Abdullah Saleh, assassinado por quem se aliara até à véspera, não significa, porém, o fim da guerra
Já lá vão sete anos, cumprem-se exatamente este domingo. Num ato desesperado, Mohamed Bouazizi, um vendedor ambulante tunisino, auto-imolou-se pelo fogo em protesto contra a apreensão, pela polícia, da sua banca de fruta. A indignação popular tomou conta das ruas da Tunísia e motivou outros árabes a revoltarem-se contra quem os governava de forma quase absoluta.
Quatro ditadores sucumbiram à chamada “primavera árabe”: o tunisino Zine El Abidine Ben Ali (exilado na Arábia Saudita), o egípcio Hosni Mubarak (preso, julgado e, entretanto, libertado), o líbio Muammar Kadhafi e o iemenita Ali Abdullah Saleh. De todos, Kadhafi foi, à época, aquele que teve o fim mais inglório — capturado por uma milícia e executado como um vulgar criminoso, com as imagens do seu cadáver, captadas por telemóvel, a circularem pelas redes sociais.
Em sentido oposto, Saleh foi o único que conseguiu sair do poder pelo próprio pé. No âmbito de um acordo assinado a 23 de novembro de 2011, e mediado pelo Conselho de Cooperação do Golfo, transferiu o poder para o seu vice-presidente, Abdu-Rabbo Mansur al-Hadi, em troca de imunidade.
Mas Saleh — que fora Presidente do Iémen durante 33 anos — não resistiu à tentação do poder. A viver em Sana e com a sua influência intacta junto de sectores da sociedade iemenita, ajudou, em setembro de 2014, os rebeldes huthis a conquistar a capital e a depor o governo de Hadi. Mais de três anos depois, há precisamente 15 dias, seria assassinado por esses mesmos aliados. Como acontecera com Kadhafi, imagens do seu cadáver chegaram às redes sociais, num ato final de humilhação.
“As tensões entre Saleh e os huthis vinham a aumentar há algum tempo, não aconteceram de um dia para o outro”, comenta ao Expresso Noha Aboueldahab, investigadora do Brookings Institution (EUA) e autora do livro “Transitional Justice and the Prosecution of Political Leaders in the Arab Region: A comparative study of Egypt, Libya, Tunisia and Yemen” (2017).
A rutura final aconteceu a 2 de dezembro quando Saleh, na televisão, anunciou o fim da aliança com os huthis e mostrou-se aberto ao diálogo com a Arábia Saudita. Esta tem em curso uma operação militar no país visando derrotar os huthis (que são apoiados pelo arqui-inimigo Irão) e devolver o poder ao Presidente deposto, Hadi.
Saleh sobreviveria dois dias a essa cambalhota política. “Ele interpretou mal as tensões com os huthis e pensou que podia confiar no apoio dos sauditas para ficar à cabeça do jogo político no Iémen”, diz Noha Aboueldahab. “Errou ao não prever a reação dos huthis quando anunciou a sua aliança com os sauditas. E dado que estes não estão ‘no terreno’ no Iémen [apenas efetuam bombardeamentos aéreos], Saleh e quem lhe era leal ficaram à mercê no confronto com os huthis, e não foram bem sucedidos.”
“Governar o Iémen é como dançar sobre cabeças de serpentes”, disse, em 2009, Ali Abdullah Saleh, numa entrevista ao jornal “Al-Hayat”. “A mudança de alianças que Saleh promoveu é uma estratégia política que lhe permitiu a permanência no poder durante quase quatro décadas”, diz a investigadora. “Mas levou também à sua morte” — uma espécie de vitória tardia, para os partidários da “primavera iemenita”.
No Iémen, Saleh sempre foi um protagonista, mesmo quando não estava no poder. “Foi certamente um obstáculo a um acordo de paz no Iémen, mas não era o único. Infelizmente, atores internacionais — nomeadamente o Conselho de Cooperação do Golfo, os Estados Unidos, a União Europeia e as Nações Unidas — também foram obstáculos a um acordo de transição efetivo no Iémen”, defende Noha Aboueldahab, para quem o destino do país foi traçado em 2011.
“O acordo de transição assinado em Riade há seis anos e as conversações para a Conferência para o Diálogo Nacional que se seguiram tinham falhas graves. Foram estruturadas para manter Saleh — ou pelo menos o seu partido Congresso Geral do Povo — no poder dando a impressão de que partidos da oposição e outros atores também teriam uma palavra a dizer à mesa das conversações. Não foi o que aconteceu, e contribuiu para a carnificina que se seguiu no Iémen desde 2011.”
Mais derramamento de sangue
À semelhança do que aconteceu na Síria, a “primavera iemenita” evoluiu para uma guerra civil sangrenta de que resultou uma grande tragédia humana. Hoje, para além das balas e bombas, morre-se também de fome e de doenças há muito erradicadas na maioria do planeta, como a difteria e a cólera.
O desaparecimento de Saleh não ditará o fim dessa grande tragédia, prevê Noha Aboueldahab. “Agora que morreu, sauditas e emiratis ficam sem o seu poderoso jogador iemenita com quem contavam voltar a fazer uma aliança para acabar com a guerra, ditando os termos” da paz. “Enquanto Riade e Abu Dabi têm outras opções para onde se virarem, a morte de Saleh vai significar mais combates, mais derramamento de sangue.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui