Os ucranianos votam domingo nas eleições presidenciais. O favorito é um ator que já fez de Presidente

Qualquer semelhança entre a ficção e a realidade não será pura coincidência. Será apenas a vontade de muitos ucranianos que querem voltar uma página da história do seu país da qual se sentem excluídos. A Ucrânia vota, domingo, na segunda volta das eleições presidenciais e o candidato que lidera — destacado — as sondagens é um humorista de 41 anos chamado Volodymyr Zelensky.
Há quatro anos protagonizou uma sátira política na televisão sobre a improvável caminhada de um modesto professor que, com um discurso anticorrupção, chega a Presidente do país. A série chamava-se “Servo do Povo”, exatamente o nome do partido político criado há pouco mais de um ano que tem transportado o ator na direção da mais alta cadeira do poder em Kiev.
“A razão para a vitória de Volodymyr Zelensky reside principalmente no desejo da sociedade ucraniana de mudanças drásticas ao nível das elites governantes”, explica ao Expresso Igor Tyshkevitch, do Instituto Ucraniano para o Futuro, de Kiev. “Essas exigências não foram satisfeitas após a Revolução da Dignidade”, as manifestações centradas na Praça Maidan, no centro de Kiev, em 2013 e 2014. Maidan pediu que o sistema político fosse reformado e que as rédeas do país fossem colocadas nas mãos de sangue novo. Em vão.
Quase 40 candidatos
“Para entendermos o que se passa há que olhar para a história ucraniana. Entre 1997 e 1999, o então Presidente Leonid Kuchma trocou a anterior liderança ‘vermelha’ [soviética] por uma nova elite política baseada em oligarcas”, continua Igor Tyshkevitch. Vinte anos passados, “nestas eleições, quase todos os candidatos à presidência [na primeira volta participaram 39 candidatos!] são pessoas que entraram na política nesse período.”
É o caso de Petro Poroshenko, de 53 anos, o adversário de Zelensky na segunda volta de domingo. O atual Presidente — um dos homens mais ricos da Ucrânia — debutou na política em 1998, ano em que foi eleito deputado ao Parlamento. Na presidência desde 2014 (eleito à primeira volta com quase 55%), após as manifestações da Praça Maidan terem forçado o afastamento do chefe de Estado pró-russo Viktor Yanukovytch. Poroshenko vê agora a sua reeleição altamente comprometida por um outsider.
Uma sondagem divulgada ontem atribui a Zelensky 57,9% das intenções de voto e a Poroshenko 21,7%. Na primeira volta (31 de março), tiveram 30,2% e 15,9%, respetivamente.
“A sociologia de 2018 mostra que mais de metade da sociedade ucraniana quer que o país seja liderado por pessoas absolutamente novas. Isto levou quase todos os candidatos presidenciais a tentarem ganhar votos junto da parte minoritária da sociedade que prefere que o país seja liderado por alguém experiente”, diz Igor Tyshkevitch. “Ou seja, Zelensky tornou-se o único a poder ganhar facilmente 40 a 45%. Mesmo que ele não fizesse nada, passaria à segunda volta das eleições.”
À parte a imagem de um candidato novo e diferente, Zelensky não é alguém que cative pelo seu pensamento político (que a maioria dos ucranianos desconhece). Numa lógica antissistema, o ator ignorou a forma tradicional de fazer campanha, não fazendo comícios, dando poucas entrevistas e privilegiando a comunicação através das redes sociais.
Esta semana, faltou a um debate com Poroshenko marcado para o Estádio Olímpico de Kiev, deixando o rival sozinho no pódio perante milhares de pessoas. Ao não se desgastar na exposição pública, alimenta a imagem de um ‘Presidente do povo’ que, à semelhança da sua personagem televisiva, vai para o trabalho de bicicleta.
Tensão chega à Eurovisão
Desde a desintegração da União Soviética (1991), estas serão das eleições na Ucrânia onde a Rússia tem menor ascendente sobre algum dos candidatos. Isto apesar de a situação no terreno: em 2014, Moscovo anexou a península da Crimeia e não poupou no apoio aos separatistas do leste da Ucrânia.
“Para a Rússia, não interessa quem vai ser o novo Presidente da Ucrânia”, conclui Tyshkevitch. “Os russos trabalham para enfraquecer a instituição da presidência aos olhos do povo. Querem que a Ucrânia tenha um Presidente fraco e um Parlamento menos controlável. De tempos em tempos, apoiam um lado e o outro lado, o que cria incerteza no país.”
Ucrânia e Rússia vivem uma tensão transversal. Há dois meses, sem grandes justificações, Kiev retirou-se da Eurovisão, marcada para maio em Israel. Não gostou que a cantora escolhida para representar o país, de nome artístico MARUV, se recusasse a cancelar os concertos que já tinha agendados… na Rússia.
PERFIS
PETRO POROSHENKO
O atual Presidente da Ucrânia é um dos homens mais ricos do país. Nascido em 1965, em Bolgrad (sudoeste), licenciou-se em Economia. Logo se lançou no mundo dos negócios começando a vender grãos de cacau à indústria soviética. Hoje, o império empresarial do “rei do chocolate” inclui um estaleiro naval e um canal de televisão. Em 1998, entrou na política, ao ser eleito deputado. Tem quatro filhos.
VOLODYMYR ZELENSKY
Estudou Direito, mas deixou-se seduzir pela representação. Nascido em 1978, a carreira política deste comediante confunde-se com o seu percurso na ficção. Em 2015, desempenhou o papel de Presidente da Ucrânia na série “Servo do Povo”. É membro do partido Servo do Povo, fundado há um ano. Apoiou os protestos pró-Europa da Praça Maidan, em 2013/14. Tem dois filhos e é filho de judeus.
Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de abril de 2019. Pode ser consultado aqui
