Após três eleições inconclusivas, foi anunciado um Governo de emergência nacional. Será o maior de sempre
“Este é um acordo muito difícil de digerir. Quando o li, deu-me a volta ao estômago. Não quero com isto dizer que preferia que fôssemos para as quartas eleições. Mas é um acordo com pouca substância programática e muitos mecanismos de partilha de poder e de veto.” A reação é de Yohanan Plesner, presidente do Instituto para a Democracia de Israel, durante um briefing online à imprensa a partir de Jerusalém, a que o Expresso assistiu.
“É um Governo desenhado para beneficiar de uma ampla base parlamentar e lidar de forma eficaz com a crise do coronavírus, sobretudo do ponto de vista económico.” Em Israel, a pandemia já infetou 14.882 pessoas e matou 193. A partir de hoje, pequenas lojas, barbeiros e salões de beleza têm ordem para reabrir portas.
Após mais de um ano de impasse político e de três idas às urnas inconclusivas, Israel anunciou esta semana um “Governo de emergência nacional”. Os signatários do acordo são Benjamin Netanyahu (“Bibi”), que detém o recorde do israelita que mais tempo serviu como primeiro-ministro, e Benjamin (“Benny”) Gantz, o general que em janeiro de 2019 fundou o Partido da Resiliência de Israel para… tirar Netanyahu no poder.
Durante 18 meses, Netanyahu será primeiro-ministro e Gantz “primeiro-ministro substituto”. Em novembro de 2021, trocam de posições durante igual período. Fica assim provado que as notícias sobre a morte (política) de “Bibi” eram manifestamente exageradas.
Pouca confiança em “Bibi”
Uma sondagem da televisão Channel 13 revelou que 62% dos inquiridos aprovam o novo Governo, mas apenas 31% acreditam que Netanyahu vá honrar o compromisso e passar o testemunho a Gantz dentro de ano e meio. Da mesma forma, 48% têm a perceção de que “Benny” fez mais cedências do que “Bibi” e só 23% pensam o oposto.
Durante 18 meses, Netanyahu será primeiro-ministro e Benny Gantz “primeiro-ministro substituto”. Depois trocam de cargo durante igual período. Só 31% creem que “Bibi” honre o compromisso
“Este não é um acordo de partilha de poder — é um contrato. Netanyahu não tem em Gantz um parceiro; contratou um guarda-costas que estará ligado a si durante os próximos três anos, pelo menos”, defendeu no diário “Haaretz“ Anshel Pfeffel, autor do livro “Bibi — The Turbulent Life and Times of Benjamin Netanyahu” (2018).
“Impedimos as quartas eleições. Vamos proteger a democracia. Vamos combater o coronavírus e tratar de todos os cidadãos de Israel”, resumiu Gantz no Twitter, após a assinatura do acordo. Na mesma rede social, Netanyahu publicou apenas a bandeira de Israel.
Ao mudar de posição em relação a Netanyahu — passando de opositor a aliado —, Gantz perdeu a confiança dos seus parceiros da aliança Kahol Lavan (Azul e Branco, de centro), com quem foi a votos. Mas os deputados que o partido de “Benny” elegeu são suficientes para dar a “Bibi” uma maioria confortável no Parlamento (Knesset, 120 membros).
O dilema de Gantz
“Gantz teve de optar entre ir para as quartas eleições, com uma alta probabilidade de Netanyahu vencer com maioria absoluta e ficar em condições de concluir toda a sua agenda, incluindo em matéria de Estado de direito — uma agenda destrutiva, do ponto de vista democrático — ou fazer algum tipo de compromisso, em que não consegue tudo o que queria, mas pelo menos pode defender as instituições e os princípios do Estado de direito.”
Yohanan Plesner calcula que a maioria parlamentar de apoio ao Executivo possa ficar entre os 72 e os 78 deputados. Além do seu Likud (direita) e do partido de Gantz (centro), Netanyahu tem o apoio dos partidos religiosos ultraortodoxos (Shas e Judaísmo da Torá Unida), da extrema-direita (Yamina), de Orly Levy-Abekasis, deputada que desertou do Gesher (centro-esquerda) e… do Partido Trabalhista (esquerda). Este partido histórico, que esteve na fundação do país e hoje não vai além de três deputados, aderiu ao Governo mediante a promessa de reformas sociais.
“Um aspeto problemático do acordo é o enfraquecimento da oposição. Vai ser pequena, fraca e muito diversificada”, diz Plesner. Poderá incluir extrema-direita, ultranacionalistas laicos (Avigdor Lieberman), os partidos árabes, alguma esquerda e as fações saídas do Azul e Branco após o volte-face de Gantz. “Será uma oposição que terá dificuldades para criar algum tipo de coesão.”
Quem controla a justiça?
O acordo é complexo, cheio de freios e contrapesos, para que nem o Likud de Netanyahu nem o Kahol Lavan de Gantz possam aprovar legislação sem o assentimento do outro. O Executivo começará a funcionar com 32 ministérios, repartidos em partes iguais pelas duas forças. “A mensagem que se transmite ao povo é que, na altura em que temos a maior taxa de desemprego da história [mais de 25%], criamos o maior Governo de sempre: cerca de 45 ministros e vice-ministros em 120 deputados. É desnecessário, dispendioso e imoral”, critica Plesner.
Gantz teve de optar entre ir para as quartas eleições, com alta probabilidade de Netanyahu vencer com maioria absoluta, ou fazer algum tipo de compromisso em que possa defender o Estado de direito
Na primeira metade do mandato, Gantz, antigo chefe das Forças Armadas, atuará como ministro da Defesa. O seu partido controlará também os ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Justiça. O Likud fica com as pastas das Finanças e Segurança Pública e com a presidência do Knesset. Para Plesner, este Governo representa um “cessar-fogo democrático”, no sentido em que “significa que a onda de legislação populista anticonstitucional que vimos no Knesset anterior, entre 2015 e 2019 está agora fora da mesa”.
Um exemplo era a chamada Cláusula de Substituição, que permitiria que o Parlamento revertesse leis consideradas anticonstitucionais pelo Supremo Tribunal. “Netanyahu não irá controlar diretamente o Ministério da Justiça, como estava habituado nos últimos meses.”
É com esta ampla cobertura política que Netanyahu começará a ser julgado, a 24 de maio, por suborno, fraude e quebra de confiança. “Pela primeira vez em Israel, um primeiro-ministro que também é réu num processo criminal vai continuar em funções”, conclui Plesner. “Este acordo representa um retrocesso no capítulo do combate à corrupção.”
(FOTO Encontro em Jerusalém entre Benjamin Netanyahu e Benny Gantz, na presença do Presidente Reuven Rivlin WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso”, a 25 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui