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Luta pela vida no fim do mundo

Luta pela vida no fim do Mundo foi o grande desafio que Jerri Nielsen, de 46 anos, enfrentou em 1999 na base polar Amundsen-Scott, na Antárctida. Única médica responsável pelos ocupantes da base, que fica durante meses isolada do Mundo, ficou ela própria gravemente doente. Regressada mais tarde aos Estados Unidos, onde recuperou, acaba de publicar um livro no qual relata a sua dramática experiência e do qual o Expresso publica alguns excertos, num exclusivo da Talk Miramax Books

Excertos de «Ice Bound» (Fronteira de Gelo) de Jerri Nielsen *

Depois da minha vida ter entrado numa espiral descontrolada, procurei refúgio no Pólo Sul. Encontrei aventura, uma beleza indescritível e grande consolação. Foi então que descobri um cancro no peito direito… (Jerri Nielsen)

Para: Mãe e Pai
Data: 21 de Novembro 1998 11:24:45
Assunto: Cheguei
Queridos Pais,
Cheguei ao Pólo Sul. É estranho e belo. O sol brilha como um maçarico de soldar às 3 da manhã. Conduzem bulldozers pelo meio da casa. Não há nada que se pareça com isto à superfície da Terra. Estou demasiado cansada para continuar a escrever, mas queria que (… falta texto…) aqui. O Verão polar é uma estação de luz fria e incessante e o Inverno é uma estação de escuridão ainda mais fria e também incessante. O tempo é praticamente irrelevante.

Para Jerri Nielsen, a Antárctida surgia como o refúgio ideal para exorcizar os fantasmas de um passado recente que não paravam de a atormentar. Aos 46 anos, tinha acabado de sair de um divórcio traumático, que pusera fim a um casamento infeliz de 23 anos, reduzira os seus índices de confiança a zero e a afastara dos três filhos. De volta a casa dos pais, no seu Ohio natal, Jerri procura dar um novo rumo à vida. Um dia, entre um golo de chá e o folhear desinteressado de uma revista médica deixada ao acaso sobre a mesa da cozinha, pára num anúncio pedindo um médico, por um ano, para a base Amundsen-Scott, na Antárctida.

«Li e reli as palavras, e o meu coração destroçado disse-me que isso era o que eu procurava, sem o saber», afirmaria, em entrevista ao jornal britânico «The Times». Em 1977, tinha-se formado em Emergência Médica, mas há muito que se fartara da rotina dos hospitais do
Ohio. Na Antárctida nada seria monótono e não seriam
as gélidas temperaturas que a impediriam de conquistar uma nova vida.

Estava a exagerar quando disse que tinha vestido dez camadas de roupa. São cinco, no máximo.
Will faz o que lhe é possível para me preparar sobre o que me espera. Infecções respiratórias e ferimentos são coisas frequentes. As frieiras são tão comuns que ninguém deixa de trabalhar por causa disso nem se quer se abriga do frio. Os artigos comuns de primeiros socorros, como fita adesiva, são inúteis aqui: não colam. As hemorragias nasais são um verdadeiro problema devido à altitude e à baixa humidade.

O FRIO É TÃO PROFUNDO E ABSOLUTO QUE PARECE SOBRENATURAL. AO RESPIRAR, SINTO A GARGANTA ARDER E OS PULMÕES GELAR

Durante os primeiros dias no pólo, eu e o Will recebemos doentes. Will não pode deixar de rir quando digo a alguém sem pensar: «A enfermeira irá ter consigo dentro de alguns minutos». A enfermeira mais próxima fica a 1500 quilómetros de distância. Rapidamente aprendi a guardar a cabeça do estetoscópio no «soutien» para evitar causar frieiras nos doentes quando lhes levanto as suas três a cinco camadas de roupa.
(…)
Estamos agora em Fevereiro e o mundo está a mudar — posso sentir isso no ar e vê-lo nas sombras que se alongam sobre o gelo. Lentamente, o sol inicia a sua espiral descendente depois de ter atingido o zénite de Verão, de 23 graus acima da linha do horizonte.
(…)
Andamos todos a vasculhar os mantimentos que nos restam e a fazer listas daquilo que precisamos que nos seja trazido pelos últimos voos da temporada. A estação deverá fechar a 15 de Fevereiro, antes que as baixas temperaturas e as tempestades imobilizem todos os aviões de carga.

De: Jerri Nielsen
Para: Família e amigos
Data: 27 de Fevereiro 1999
Assunto: Os últimos dias do Outono
Nunca fui tão feliz nem nunca me senti mais viva. Não tenho medo de nada, pois passo os dias com amigos. Aqui ninguém tem medo de morrer, embora seja coisa certa se fizermos um longo passeio lá fora. É engraçado!
Com muito amor,
Doc Holliday

Jerri irradiava felicidade em cada e-mail que enviava. O isolamento físico a que, anualmente, a Antárctida está obrigada reforçara a coesão do grupo de 41 aventureiros — entre investigadores e pessoal auxiliar — e teve em Jerri um curioso efeito psicológico, que ela descreveu na entrevista que deu ao «The Times»: «Por uma vez na vida eu estava num local onde me sentia completa. Estava numa comunidade perfeita e era julgada pelo que podia dar e isso agradava-me: eu gostava da dependência dos seres humanos. Eu, verdadeiramente, precisava de todos e todos precisavam de mim».

AQUI, NESTE SOLITÁRIO POSTO AVANÇADO, RODEADA PELO VAZIO, ENCONTREI O LAR MAIS FELIZ QUE PODIA IMAGINAR. NÃO ME QUERO IR EMBORA

Todos os anos, a Antárctida torna-se inacessível ao resto do mundo de Fevereiro a Outubro. O frio é mais que muito e os fortes ventos levantam a neve, tornando praticamente nula a visibilidade e impossibilitando a aterragem de aviões, sob pena do sistema hidráulico do aparelho congelar. Além disso, durante seis meses do ano é noite cerrada, realçando o carácter inóspito do ecossistema que o neozelandês Bob Thomson, um cientista polar com 78 visitas à Antárctida no currículo, comparou a «um grande animal à espera de nos comer, o sítio mais hostil à face da Terra».
A estação fechou há cerca de duas semanas e estou a ler um livro na cama, esfregando distraidamente a parte de cima do peito, quando os meus dedos param sobre um pequeno caroço duro. Está perto da superfície do meu seio direito, na vertical. Apalpo-o tentando determinar o seu tamanho e possível significado. Tenho seios fibro-císticos e já antes tinha encontrado pequenos caroços. Estavam sempre relacionados com o meu ciclo menstrual e desapareciam passado algumas semanas. A minha mamografia era negativa ainda há seis meses, por isso não fico muito preocupada. Decido ficar atenta a este caroço e aguardar um mês para ver se há alterações.
(…)
Passou um mês desde que descobri o caroço no peito. Esperava que desaparecesse depois do período, como das outras vezes. Mas este continua lá e cresceu mesmo um pouco e de forma irregular. Decido esperar mais algum tempo antes de falar com alguém, até porque não posso fazer nada relativamente a isto. Se for maligno, não tenho qualquer possibilidade de iniciar um tratamento nos próximos sete meses. Isto quer dizer que ou morrerei no gelo ou pouco tempo depois de partir.

De: Jerri Nielsen
Para: Jurgen Lehman
Data: 4ª feira, 28 de Abril 1999 07:37:05 +1200
Assunto: Olá
Caro J.,
Nada acontece por aqui. Hoje atendi dois doentes, por problemas de dentes, e fiz três massagens devido a fibromiosite, o que me ocupou muito tempo.
Estou com pensamentos negros devido à minha hipoxia crónica. Também tenho um seio inchado e duro que me preocupa. Fiz uma mamografia em Outubro. Esta coisa é dura e irregular e não desaparece.
Não tenho um médico para me tranquilizar, apenas estou eu e a minha imaginação.
Adoro-te
Jerri
Doutora das Trevas

O pai de Jerri foi quem sempre mais contestou a decisão de Jerri passar um ano na Antárctida. Dizia que a responsabilidade seria enorme e que, lá nos confins, não teria ninguém que a tratasse se adoecesse.
Para impressionar a filha, dizia-lhe que ela corria o risco de ter que vir a extrair o seu próprio apêndice. Jerri respondeu, então, com uma sonora gargalhada, mal sabendo que, uns meses depois, estaria a ensinar aos seus companheiros de aventura noções mínimas de quimioterapia para a ajudar no combate a um cancro.

Tornei-me numa pessoa «do gelo». Este tipo de transformação pode acontecer a qualquer pessoa cujo coração bata ao ritmo da paisagem. É como um caso de amor com um lugar. E de todos os lugares, a Antárctica é o amante mais exigente. Os primeiros exploradores regressaram duas e três vezes até lá perderem a vida. Scott morreu enregelado; Shackleton, navegando para sul noutra expedição, alguns anos mais tarde, morreu aparentemente de ataque cardíaco. No fim, só o Gelo encerrava um significado para ele; senntia-se perdido quando regressava ao mundo.
(…)
Suponho que esta é a maior ironia da minha vida: agora que finalmente me sinto inteiramente viva, tenho de me confrontar com a possibilidade de estar a morrer.
O edema que encontrei no seio no princípio de Março não diminuiu como esperava. Agora, passados três meses, sinto também um inchaço doloroso debaixo do braço direito. Embora ainda me agarre à hipótese remota de haver outra explicação para estes sintomas, toda a minha formação médica e experiência pessoal me dizem que se trata de cancro da mama. Durante um tempo pensei que ia simplesmente manter-me calada e morrer no gelo ou pouco depois de partir. Mas agora, com a possibilidade de as minhas glândulas linfáticas debaixo do braço estarem implicadas, parece provável ficar demasiado doente para conseguir cumprir o meu serviço como médica da estação.
Chegou a altura de informar os meus patrões sobre a minha situação física. Conto em primeiro lugar ao Mike, na esperança de que ele dispense alguns técnicos do seu trabalho normal para lhes ministrar alguma formação. Se eu ficar incapacitada, a vida de alguém pode correr perigo. Nunca imaginei que fosse a minha própria. Tínhamos todos aceite e compreendido as consequências desta missão. Não há saída. Como oficial médica sei melhor do que ninguém que, em caso de doença grave, apenas podemos depender dos nossos escassos recursos. Não haverá forma de retirar feridos nem de obter mais medicamentos ou equipamentos para mim. Não estou a pedir ajuda para mim própria, mas sim autorização para preparar a minha gente para viver sem mim.
(…)
«Mike, tenho um grande edema num peito. Pode ser cancro. Já o tenho desde Março mas não te falei disto porque não há nada que se possa fazer. Mas agora tenho um tumor debaixo do braço e começo a recear o pior. Posso não viver até à abertura da estação ou posso ficar demasiado doente para trabalhar». Ele deixa-me continuar a falar. «Gostaria de escolher algumas pessoas para as ensinar a substituirem-me. Os que têm mais destreza manual e raciocínio dedutivo estão na equipa de construção ou no centro de operações da estação. Mas vão necessitar de tanta formação que preciso da tua ajuda para os tirar do seu trabalho normal». «Jerri, nós podíamos extirpar o tumor», diz Mike. (…) Penso que devias contactar o Dr. Katz (…) tem de haver alguma coisa que possamos fazer, Doutora».
Nessa quinta-feira, 10 de Junho, escrevo a Gerry Katz, o médico responsável pelas estações médicas da Antárctica, em Denver.

Jerri aconselhava-se com vários médicos, através da Internet, e todos convergiam num ponto: o único procedimento acessível à paciente era a aspiração de vestígios da massa suspeita, alojada no seu peito direito, recorrendo à penetração de finas agulhas.

A 12 de Junho, Jerri tentou a operação, usando um cubo de gelo como anestesia local e recorrendo à ajuda dos companheiros de aventura. Mas após quatro inglórias tentativas, Jerri desiste. O médico de Denver comunica o resultado a outros colegas, via Internet.

De: Gerald Katz
Para: Eric Jürgen e Harry Mahar
CC: Jerri Nielsen
Data: 14 de Junho 1999, 07:53:28 -0700 (PDT)
Assunto: caso médico
Harry e Eric,
Aqui vai informação actualizada. Infelizmente, não foi possível aspirar qualquer líquido do tumor após quatro tentativas, o que indica que a lesão é sólida.
A paciente está naturalmente preocupada e gostaria de sair do Ice ASAP, reconhecendo que isso talvez não seja possível antes do fim de Outubro. Não há opções terapêuticas para o cancro da mama no Pólo Sul. O tratamento «standard» é fazer uma biopsia e, caso seja positiva para cancro, uma ablação do tumor ou uma mastectomia. As duas últimas opções excedem as capacidades médicas funcionais no Pólo Sul, seriam um esforço épico e demasiado arriscado, dado o facto do tumor poder ser benigno.
Embora haja um sentimento de urgência, não se trata de uma emergência médica. Mas precisamos de um plano de acção no caso deste edema persistir nas próximas duas semanas.
Vou mantê-los a par da situação.
Gerry
(…)

Quando abro o e-mail na segunda-feira à noite, vejo a resposta às minhas orações:

De: Kathy Miller
Para: Jerri Nielsen
Data: 14 de Janeiro 1999, 23:09:11 +1200
Assunto: Ajuda
Olá Jerri,
Sou médica oncologista especializada em cancro da mama na Indiana University. O seu amigo Dr. Lehman (Jurgen) contactou-me sobre a sua situação. Claro que receio que ela configure um cancro primário da mama — e tenho a certeza que você pensa o mesmo. Vou falar com o meu cirurgião e anestesistas locais na conferência sobre a mama que terá lugar na manhã de quinta-feira. Antes disso, seria útil se me pudesse dar mais informações sobre a sua situação e condições.
1) Qual é a sua experiência e formação? Se não tiver formação cirúrgica, creio que não será viável qualquer abordagem cirúrgica.
2) É absolutamente impossível tirá-la da estação do Pólo Sul (ou apenas muito difícil)? Ao que sei, está no meio do Inverno polar e a estação está fechada.
3) Nem vale a pena perguntar se tem acesso a alguma quimioterapia, mas haverá opções de tratamento hormonal?
Fico a aguardar ansiosamente notícias suas. Vou discutir a sua situação com o meu cirurgião assim que possível.
Kathy Miller

Em resposta a Kathy Miller, Jerri informa que os únicos tratamentos hormonais disponíveis na base são Premarin, Provera e pílulas anticoncepcionais há muito tempo fora de validade. Mas Jerri Nielsen refere a possibilidade de recurso a um sistema de vídeo ligado ao microscópio que permite o envio de fotografias e ‘slides’, bem como a possibilidade de aviões largarem pacotes sobre a base Amundsen. E, sem perder o humor, refere que se pudesse escolher um desses «presentes» caídos dos céus, escolheria… um cirurgião.

Kathy respondeu-me logo de seguida. Concorda que não é boa ideia tentar extirpar o edema ou iniciar quimioterapia antes de termos um diagnóstico confirmado de cancro. Quer explorar a possibilidade de uma biopsia e do envio de imagens por microscópio vídeo. Se for viável um abastecimento por ar, ela quer enviar-me medicamentos que impeçam a produção de estrógenos. A terapia hormonal poderia impedir o alastramento do cancro, mas também me levaria a uma menopausa prematura; ficaria sujeita aos acessos de calor, perda de libido, pele seca e alterações de humor por vezes associadas à menopausa natural, mas seria pior.
Com esse pensamento agradável presente, escrevo à família e aos amigos para lhes dar a terrível notícia. Tinha-me abstido de lhes dizer alguma coisa sobre a doença até ser absolutamente necessário, porque sabia que os ia preocupar. Ao mesmo tempo, Big John escreveu ao seu congressista e aos senadores pela Califórnia pedindo-lhes para apoiarem um lançamento por pára-quedas de equipamento médico e de um cirurgião da força aérea no Pólo Sul para me ajudar.
Agora que os membros do Congresso vão ouvir falar numa «mulher com um tumor na mama» bloqueada no Pólo Sul, não tenho dúvidas de que a Imprensa falará no caso muito em breve, portanto tenho de informar antes a família e os amigos.
Pela primeira vez retiro os endereços de e-mail dos meus filhos da minha lista de endereços «família e amigos». Não quero que eles saibam por e-mail que a mãe tem um cancro, assumindo que o meu ex-marido os deixe ler as mensagens. Peço à minha mãe que lhes telefone.
A biopsia é marcada para terça-feira, 22 de Junho, que por acaso coincide com o solstício de Inverno. Temos apenas alguns dias para arranjar um esquema para fazer uma coisa que nunca havia sido experimentada antes: fazer uma transmissão vídeo em directo para os médicos em Denver, retirar tecido do tumor, transferir o tecido para lamelas, tingi-las para ver as células e depois transmitir as imagens das lamelas para os Estados Unidos através de um microscópio vídeo especial.
A parte mais fácil será realizar a biopsia, que é semelhante a uma aspiração mas requer uma agulha grande e uma técnica mais agressiva. Dei formação a alguns colegas para trabalharem com o equipamento biomédico e realizar actos médicos simples, como suturar e administrar soro. Do grupo escolhi Welder Walt para me ajudar na biopsia. Doze anos antes, ele tinha recebido formação de enfermeiro militar. Bill Johnson, o contramestre de carpintaria, também me vai ajudar, já que tem experiência em suturar cavalos. Temos instruções pormenorizadas da inventora do sistema: telefona-me por telefone satélite para me dizer o que fazer. É muito simpática e tem grande sentido de humor. Pergunta-me se tenho cubos de gelo para anestesiar a pele! Asseguro-lhe que não há falta de gelo nas redondezas. Não posso tomar tranquilizantes nem analgésicos porque é ilegal prescrever substâncias controladas a si próprio. Portanto, vou confiar no gelo e na lidocaína para aguentar as dores.

AGORA QUE FINALMENTE ME SINTO INTEIRAMENTE VIVA, TENHO DE ME CONFRONTAR COM A POSSIBILIDADE DE ESTAR A MORRER

Entretanto, eu e Walt praticamos a nossa técnica. Wendy consegue «desviar» alguns vegetais e um dia ou dois antes da biopsia sentamo-nos a uma mesa para praticar, introduzindo agulhas numa maçã, num inhame ressequido e numa batata seca.
A certa altura, Walt pergunta-me se estamos a trabalhar numa maçã ou num pêssego. «É uma maçã», digo olhando para ele. Walt abana a cabeça. «Estou há tanto tempo fora da sociedade que já não me lembro dos nomes dos frutos e dos legumes».
Embora o nosso fornecimento de seringas deixe muito a desejar, porque congelaram e perderam o selo, em breve temos a certeza de que conseguiremos obter tecido celular suficiente para o podermos analisar. Convoco Ken Lobe, que foi técnico de laboratório
durante a guerra do Vietname, para tingir as lamelas. Estamos um tanto preocupados com esta acção porque a única tintura que temos está fora de prazo.
Quanto às transmissões por vídeo e às ligações via satélite, temos a sorte de ter um grupo de génios residentes que estão ansiosos por um desafio. O ASA assegurou a intervenção do Dr. Karim Sergi, citologista, que a partir de Denver ajudará a dirigir a biopsia e a interpretar os resultados.

A PARTE MAIS FÁCIL SERÁ A BIÓPSIA. PARA ME AJUDAREM, ESCOLHI WALT, ANTIGO ENFERMEIRO MILITAR, E BILL, CONTRAMESTRE DE CARPINTARIA

Sensivelmente um mês após a biopsia, e já com a certeza de que padecia de um cancro na mama, Jerri inicia as sessões de quimioterapia. Dias antes, um avião da Força Aérea norte-americana largara sobre a base seis pacotes com equipamento médico e abastecimentos. Uma máquina de ultra-sons, cujo pára-quedas não abriu, ficou irremediavelmente danificada após o impacto com o solo.

A pouco e pouco, Jerri foi perdendo o cabelo e acumulando cansaço, devido aos tratamentos e ao facto de ter de assegurar os cuidados médicos a quem ficasse doente. Paralelamente, a falta de luz solar, as baixas temperaturas e a altitude polar tornavam Jerri cada vez mais débil e vulnerável. Era uma lutadora, por natureza, mas o tempo começava a escassear.

A 16 de Outubro, duas semanas antes da data em que os voos são habitualmente retomados, dá-se a operação de resgate. Jerri não podia esperar mais. Um Hercules LC-130 da Força Aérea dos EUA aterra na base, onde só pode ficar poucos minutos — e com os motores a trabalhar —, sob o risco de não voltar a levantar. No meio de um vendaval de neve, com uma temperatura de 60 graus negativos e visibilidade reduzida, Jerri é resgatada do seu gélido exílio. A operação dura 22 minutos. «Foi a aterragem mais perigosa que eu alguma vez fiz», desabafaria depois George McAllister, o experiente piloto, que já voava há 11 anos para o Pólo Sul.

Estação Amundsen-Scott, Pólo Sul. 16 de Outubro de 1999. Hoje é o dia do meu último passeio de trenó na Antárctica — desde a cúpula incrustada no gelo onde vivi durante 11 meses até à beira do campo de aviação que surge do meio dos montes de neve. Normalmente percorreria a distância a pé em poucos minutos, mas estou demasiado fraca. Estou embrulhada em tantas camadas de roupa que mal me posso mexer. Tinha o cabelo comprido e louro quando cheguei ao Pólo, mas agora a minha cabeça está completamente careca e aconchegada como um ovo numa macia touca de lã debaixo do capuz.
Uso óculos de neve e um cachecol que vai até aos olhos e impede que a minha pele congele. Estão quase 60 graus abaixo de zero.
Não sei dizer se estou assustada ou aliviada. Estou doente e muito possivelmente à beira da morte. Ao noticiarem a minha situação difícil, os jornalistas referiram-se ao Pólo Sul como o «inferno na terra». Ficariam surpreendidos se soubessem como a Antárctica me pareceu bela, com as suas ondas de gelo numa centena de matizes de azul e branco, o seu negro céu de Inverno, as suas encantadas rodas de estrelas. E como eu não tinha medo.
Aqui, neste solitário posto avançado, rodeada pelo vazio prodigioso do planalto polar, num mundo despido de ruído e de confortos inúteis, encontrei o lar mais feliz que podia imaginar. Não me quero ir embora.

Chegada aos EUA, Jerri Nielsen deu entrada no hospital da Universidade de Indiana, onde foi tratada com êxito. Presentemente, vive sem a sombra desse tumor e planeia voltar à neve — ao Alasca ou à Gronelândia — para missões idênticas à que exerceu no Pólo Sul.

Para trás ficou a Antárctida e as recordações de uma vida que recomeçou ao confrontar-se com a morte.

* «Ice Bound», de Jerri Nielsen, é um ©2001 Talk Miramax Books

Artigo publicado no “Expresso Revista”, a 10 de fevereiro de 2001

A luta sarauí

O povo sarauí aguarda pela realização de um referendo à sua autodeterminação há quase 30 anos

O recenseamento do povo sarauí, com vista ao referendo sobre a sua autodeterminação, encontra-se num impasse. Iniciado em 1994, o processo bloqueia sempre que está em causa a qualificação de quem é, e de quem não é, sarauí.

De um lado, está Marrocos, que se apoderou daquela antiga colónia espanhola após a saída do colonizador, em 1976. Do outro, a Frente Popular do Saguia El Hamra e Rio do Ouro (Polisário), criada em 1973 para lutar pela emancipação do então Sara Espanhol.

A «marroquinização» do território — acelerada pela «marcha verde» organizada por Hassan II de Marrocos, em 1975 — levou ao êxodo
de mais de 165 mil pessoas para a Argélia, hoje refugiadas no desértico acampamento de Tinduf.

A proclamação, pela Polisário, da República Árabe Saraui Democrática (RASD), em 1976, e o seu posterior reconhecimento pela Organização de Unidade Africana, extremou o conflito e obrigou à intervenção da comunidade internacional.

Em Abril de 1991, entrou em campo a MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental) com o objectivo de fiscalizar o cessar-fogo e organizar um referendo sobre o estatuto final do território. De Março de 1996 a julho de 1997, foi comandada por generais portugueses — primeiro Garcia Leandro, depois Barroso de Moura. O mandato em vigor termina a 28 de Fevereiro de 2001.

Artigo publicado no “Expresso”, a 23 de dezembro de 2000

2000/2013, Odisseia no Espaço

Com a chegada dos primeiros tripulantes à Estação Espacial Internacional, na quinta-feira, a Humanidade abriu um novo capítulo da conquista do espaço. A permanência do homem em órbita possibilitará a realização de experiências científicas, que poderão revolucionar a indústria farmacêutica. Algo que a velha Mir, que em breve será destruída, não teve tempo de fazer

William Shepherd, Iuri Gidzenko e Serguei Krikalev são os membros mais recentes da galeria de «super-homens» que passaram à história graças a prestações valiosas no domínio da exploração espacial.

Na quinta-feira, o astronauta norte-americano (que fala russo) e os dois cosmonautas russos (que falam inglês) entraram para a Estação Espacial Internacional (ISS, sigla em inglês), uma gigantesca plataforma em órbita, que possibilitará a presença humana, de forma permanente, a mais de 350 quilómetros acima da superfície terrestre.

Os três astronautas — que integram a «Expedição 1» — irão viver na ISS durante 115 dias e desempenhar tarefas essencialmente domésticas e logísticas. Os primeiros dias foram dedicados à activação do equipamento de suporte à vida humana; brevemente, uma nave de carga transportará até à ISS o laboratório «Destiny» e, mais tarde, uma outra levará oxigénio a alta pressão e painéis solares, para reforço da capacidade energética.

Revolução nos fármacos

Em Fevereiro, a «Expedição 1» será rendida por uma outra equipa russo-americana, que iniciará as experiências científicas, designadamente ao nível da influência da ausência da gravidade no corpo humano.

O interesse comercial à volta destas experiências é enorme, sobretudo por parte da indústria farmacêutica, colocada perante a possibilidade de «brevemente» poder produzir fármacos que curam muitas das doenças que hoje são incuráveis.

A construção da ISS tem sido em tudo semelhante à montagem de um «puzzle». A 20 de Novembro de 1998, foi lançado o módulo «Zaira» («alvorada», em russo), que contém os sistemas de controlo, comando e propulsão; a 6 de Dezembro seguinte, atracou o nódulo «Unity» («unidade», em inglês), que liga as duas partes principais da ISS; a 26 de Julho de 2000, juntou-se-lhes o módulo «Zvezda» («estrela», em russo), o principal elemento, que servirá de habitação e local de trabalho.

Até 2006, cerca de 45 missões transportarão mais equipamento para a ISS. Só depois ela estará concluída e com dimensões impressionantes: 108,5 metros de comprimento, 88,3 de largura e 450 toneladas de peso; terá uma inclinação de 51,6 graus em relação ao Equador e a pressão na cabina será idêntica à de 747 aviões. Em alguns locais do globo, poderá ser localizada a olho nu.

A ISS foi concebida para funcionar até 2013. Neste projecto participam 16 países — EUA, Rússia, Japão, Canadá, Brasil e 11 membros da Agência Espacial Europeia —, o que o torna o mais ambicioso e mobilizador dos projectos, em termos de cooperação científica internacional.

O significado político da ISS é inegável. Há mesmo quem não hesite em colocá-la no mesmo patamar de importância dos feitos de Iuri Gagarine (o primeiro homem a viajar no espaço, em 1961), de Neil Armstrong (o primeiro a pisar a Lua, em 1969) ou do primeiro passeio de um vaivém espacial pelo espaço.

O foguetão russo «Soyuz», que transportou a «Expedição 1» até à ISS, partiu às 5h53 (hora portuguesa) de terça-feira, do cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão — de onde foi lançado, em 1957, o «Sputnik 1», o primeiro satélite artificial terrestre. O cosmódromo está situado a cerca de 322 quilómetros de uma pequena cidade mineira chamada… Baikonur.

Baikonur, para iludir

Devido à Guerra Fria, o baptismo deste complexo espacial visou, provavelmente, o despiste do inimigo americano, mas a designação acabou por se manter — bem como, aliás, um curioso ritual por que passam os astronautas antes das missões.

Segundo a descrição da France Presse, na véspera da missão os três astronautas visionaram um velho filme soviético — «O Sol Branco do Deserto». Na terça-feira, antes de abandonarem o hotel, beberam uma taça de champanhe e assinaram os seus nomes sobre as portas dos quartos onde tinham pernoitado.

Depois, saíram do hotel, ao som da mesma música que acompanhou todos os astronautas que os precederam e, na escadaria do hotel, foram benzidos por um padre ortodoxo.

Seguiu-se o percurso de autocarro até ao cosmódromo, durante o qual a tradição mandou que se fizesse uma curta paragem para que os astronautas urinassem sobre uma das rodas do veículo…

MIR VAI CAIR EM FEVEREIRO

A Estação Espacial Internacional (ISS) representa o mais distante dos destinos conquistados pela Humanidade, mas durante anos foi à Mir que pertenceu esse privilégio.

A saída dos últimos tripulantes (dois russos e um francês) daquela estação orbital russa, a 27 de Agosto último, sentenciou-lhe um fim inglório. Os problemas técnicos eram mais que muitos e cada vez mais graves; além disso, o investimento financeiro de Moscovo fugira sem subterfúgios da obsoleta Mir em direcção à ambiciosa ISS.

A destruição da Mir está prevista para Fevereiro de 2001: a sua órbita será baixada até entrar na atmosfera terrestre, altura em que se destruirá parcialmente. Os maiores fragmentos deverão cair sobre o Pacífico (ver infografia).

Lançada em 1986, a Mir («paz», em russo) era o ponto culminante da conquista, pelo homem, da «última fronteira» — expressão imortalizada na série televisiva «O Caminho das Estrelas» — e a afirmação categórica da supremacia da URSS sobre os EUA em matéria de exploração espacial.

Durante 14 anos, foi a única estrutura orbital operacional. Por isso, era o símbolo máximo da cooperação científica internacional, de que o programa «Phase 1», da NASA, foi testemunha: de Fevereiro de 1994 a Junho de 1998, 11 tripulações norte-americanas trabalharam na Mir.

Estações ou foguetões?

A presença permanente do homem em órbita foi um desafio tão aliciante quanto a própria chegada do homem à Lua. Na década de 70, várias iniciativas se sucederam: o projecto «Salyut», do lado soviético, e o «Skylab», por parte dos norte-americanos.

IMAGEM Estação Espacial Internacional, fotografada em 2021 NASA / BOEING / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de novembro de 2000

A cruzada pan-africana de Kadhafi

O maior paladino do pan-africanismo, o líder líbio, Muammar Kadhafi, está a tornar-se um campeão das mediações e um actor incontornável da paz em África

Muammar Kadhafi, Presidente da Líbia AZAZELOK / PIXABAY

Ao leme de um país politicamente marginalizado, o Presidente da Líbia, Muhammar Kadhafi, tem-se afirmado como um diplomata de eleição, que soma êxitos onde as diplomacias ocidentais fracassam redondamente.

No início da semana passada, os separatistas muçulmanos filipinos do grupo Abu Sayyaf libertaram seis reféns — um alemão, uma franco-libanesa, duas francesas e dois sul-africanos — do cativeiro na ilha de Jolo, no Sul das Filipinas. A libertação surgiu na sequência de 15 semanas de negociações, mediadas por uma fundação líbia, dirigida por Seif al-Islam, um dos filhos de Kadhafi.

Fontes filipinas dizem que Tripoli terá pago 1 milhão de dólares por cada refém libertado, mas a Líbia alega que apenas prometeu um pacote financeiro para o desenvolvimento da região.

Uma festa nas ruínas

A vitória diplomática foi comemorada a preceito. Na terça-feira, em Tripoli, realizou-se uma recepção aos reféns, junto às ruínas da residência de Kadhafi que, em 1986, foi bombardeada pela aviação dos EUA — matando 37 pessoas, entre as quais uma filha adoptiva.

Estiveram presentes representantes dos governos dos países de origem dos reféns e, durante os discursos, a Kadhafi — surpreendentemente ausente — foi dito tudo o ele gostaria de ter ouvido. «Esta acção positiva da Líbia só pode melhorar a relação entre os nossos países», afirmou o ministro francês da Cooperação.

Com uma diplomacia activa e influente e um mercado sem a concorrência dos EUA, a Líbia é uma tentação para a Europa. Inversamente, uma aproximação ao Velho Continente significará para a Líbia o fim do isolamento a que foi condenada, após a explosão, em 1988, de um avião da Pan Am sobre a localidade escocesa de Lockerbie, fazendo 270 mortos — da qual a Líbia foi acusada.

A afirmação política de Kadhafi chega a ter requintes de ironia. Na segunda-feira, um outro grupo rebelde filipino raptou um norte-americano. De imediato, Tripoli ofereceu os seus préstimos: «Se pudermos fazer alguma coisa para salvar a vida de um ser humano, seja americano ou europeu, não hesitaremos», afirmou o subsecretário do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Sem surpresa, os EUA exigiram a libertação incondicional do refém, afastando assim a suprema das humilhações: a hipótese de um Estado pária libertar um norte-americano das garras de um grupo terrorista.

Se nos primeiros anos do seu «reinado» Kadhafi colocou a tónica na união do mundo árabe, quando, após o embargo decretado pelas Nações Unidas na sequência do «caso Lockerbie», não sentiu a solidariedade dos irmãos árabes, converteu-se ao pan-africanismo. «África é o meu lugar natural. Os árabes de África são africanos e os árabes que vivem na Ásia são asiáticos», diz, convicto.

As etapas do sonho

Gradualmente, o sonho pan-africano foi ganhando forma. Em 1997, a Líbia financiou a criação da Comunidade de Estados Sahelo-Sarianos (Comessa) e, em Julho passado, fez aprovar o seu projecto de União Africana, na Cimeira da Organização de Unidade Africana de Lomé (Togo).

Paralelamente, tem marcado presença nos bastidores dos principais conflitos: República Democrática do Congo, Grandes Lagos, Etiópia/Eritreia, Libéria, Serra Leoa, Somália e Sudão, onde todas as facções estão, actualmente, em diálogo, após aceitarem uma proposta de Kadhafi.

Presentemente, ninguém duvida que Kadhafi é não «um» mas «o» actor incontornável das relações interafricanas. Circula bem junto dos beligerantes mais complicados e consegue acordos que ninguém acha possível. Mas para voltar ao concerto internacional terá de provar que o apoio ao terrorismo faz parte do passado.

Ontem, a Líbia comemorou o 31º aniversário da revolução que colocou Kadhafi no poder. Mais de dez chefes de Estado africanos confirmaram a sua ida a Tripoli para o saudar, discutir os desenvolvimentos de Lomé e, eventualmente, solicitar-lhe os «bons ofícios».

O futuro próximo pertence-lhe. O julgamento de Lockerbie está a decorrer e, segundo uma carta de 17 de Fevereiro de 1999 — divulgada na semana passada pelo secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan —, Kadhafi tem a garantia dos EUA e do Reino Unido que o seu nome não será beliscado.

Por outro lado, está agendada para Outubro, em Marselha, a Cimeira do Mediterrâneo. A presença de Kadhafi não é um dado adquirido, mas não é provável que deixe escapar mais uma oportunidade para negar o seu isolamento e se aproximar da União Europeia.

Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de setembro de 2000

A incógnita de Damasco

Não estava previsto, mas a História chamou-o a suceder a um dos líderes históricos do Médio Oriente. Depois da morte súbita do irmão e sucessor eleito de Hafez al-Assad, Bashar não teve outra alternativa senão a de suceder ao pai, figura carismática de um dos países mais conturbados dos últimos 50 anos. Estudava em Londres e preparava uma carreira de médico oftalmologista, quando o destino lhe trocou as voltas e o fez voltar a Damasco, para marcar a entrada da Síria no próximo milénio

Os Assad. Sentados, Hafez e a esposa, Anisa Makhlouf. De pé, da esquerda para a direita, os cinco filhos: Maher, Bashar, Basil, Majid e Bushra WIKIMEDIA COMMONS

A “era dos doutores” tem, desde há pouco mais de um mês, um novo protagonista — o oftalmologista Bashar al-Assad que terá a seu cargo uma das transições mais complicadas do Médio Oriente: suceder a Hafez al-Assad à frente dos destinos da Síria.

Aquele que até há uns anos era o mais soviético e autocrático dos Estados árabes — dirigido pelo pulso firme de quem não hesitava em recorrer à repressão para silenciar as vozes incómodas — prepara-se para dobrar o milénio sob o comando de um jovem politicamente inexperiente, que aprecia Phil Collins, gosta de navegar na Internet e sempre afirmou nunca ter ambicionado suceder ao pai.

As suas capacidades de liderança são, por enquanto, uma incógnita, e o seu ar afável e sorridente transmite um sentimento de fragilidade e insegurança a quem, durante 30 anos, se habituou a venerar o rosto frio e sem expressão de Hafez al-Assad — o que lhe valeu o epíteto de Esfinge de Damasco.

Assad foi o único líder que manteve um perfil cem por cento árabe face a pressões ocidentais. Sem Assad, o nosso futuro é muito inseguro, mas Bashar já se comprometeu em seguir o programa, a visão e a estratégia do pai. Ninguém está interessado em revoluções. No dia do funeral de Hafez al-Assad era assim que falava a voz do povo sírio: Bashar nunca substituiria Assad, mas seria certamente um bom discípulo.

Bashar al-Assad nasceu a 11 de Setembro de 1965 e tinha apenas dois anos quando o pai, então ministro da Defesa, sofreu a maior humilhação da sua vida: em apenas seis dias, Israel ocupava os Montes Golã, um maciço montanhoso que envolve o Lago Tiberíades (ou Mar da Galileia) — onde se situa a nascente do rio Jordão —, que viria a constituir um dos mitos geoestratégicos do século XX.

Sr. Presidente, eu sei onde é a fronteira. Até 1967, nadei no lago, fiz lá churrascos e lá comi peixe, desabafou, em Março passado, Hafez al-Assad junto de Bill Clinton. Mas mais do que as recordações de infância, era a ânsia de vingança que presidia à permanente reivindicação de cada centímetro dos Golã e que Assad transformaria numa questão de vida ou de morte.

Assad costumava dizer que com Israel qualquer coisa seria negociável… após o regresso das fronteiras ao seu desenho anterior à Guerra dos Seis Dias. Quando recebia visitas, espalhava mapas pelo chão e realçava, durante horas, a importância dos Golã para a sobrevivência do Estado sírio.

Mas Bashar não herda essa obsessão pessoal de Assad, o que o poderá libertar para, à mesa das negociações, colocar a tónica naquilo que, de facto, é o mais importante para os sírios: o acesso aos recursos aquíferos e não propriamente a soberania sobre uma fortaleza que, do ponto de vista estratégico-militar, se tornou obsoleta perante a extraordinária capacidade tecnológica da máquina de guerra israelita.

Bashar terá nos Golã o capítulo mais difícil da sua afirmação como líder da Síria, mas outros desafios se lhe deparam.

Desde 1976 que a Síria exportou mais de 30 mil soldados para o Líbano, com redobrada intensidade após a invasão israelita do sul daquele país, em 1982. Em 1998, Hafez al-Assad entregou a gestão deste dossier a Bashar, mas não será por já conhecer a matéria que ele terá a vida facilitada.

A recente retirada de Israel do território libanês deitou por terra o mais sólido dos argumentos que justificavam e legitimavam a presença dos sírios. Timidamente, a imprensa libanesa — que já rotulou Bashar de Assad II — vai trazendo o assunto à liça, ansiando pelo dia em que o Líbano deixe de funcionar como uma província da Síria e se assuma como um Estado soberano.

Paralelamente, coloca -se a questão do futuro do Hizbullah, o grupo terrorista que, a partir do Líbano e sob o alto patrocínio da Síria, combatia o inimigo sionista e que agora, aparentemente, ficou sem motivação.

Mas se, com Assad, tudo girava à volta da oposição permanente e sistemática a Israel, com Bashar, por natureza, tudo poderá ser diferente.

Antes de Assad era o caos e a lei em vigor era a dos golpes de Estado. Assad trouxe estabilidade política à Síria — a estabilidade pela opressão e pelo terror —, mas não o desenvolvimento e muito menos a prosperidade económica. Faxes e computadores não faziam parte do ambiente de trabalho dos sírios, os telemóveis eram completamente desconhecidos e as antenas parabólicas ilegais.

A este nível, Bashar tem o perfil de um verdadeiro revolucionário. Familiarizado com o ocidente europeu, por força da sua estadia em Londres, onde se especializou em Oftalmologia, Bashar desenvolveu uma sensibilidade particular pelas novas tecnologias, sobretudo pela Internet, da qual se tornou um adepto entusiasta e um frequente navegador.

Estava em Londres, a especializar-se em Oftalmologia, quando foi chamado à Síria para se submeter ao curso intensivo de “como governar”

Da presidência da Sociedade Informática Síria, desenvolveu a maior das pressões para que o governo procedesse à informatização do país, o que começou a ser uma realidade a partir de 1998, com a introdução de 7 mil terminais de Internet. Ainda há duas semanas, Damasco anunciou que, até 2001, espera ampliar a rede em 200 mil novas ligações.

A Síria constitui, aliás, um terreno propício à implantação das novas tecnologias. Cerca de 60% da população tem menos de 30 anos e anseia que o país se liberte das amarras da história e se modernize. Por outro lado, Bashar sabe que a modernização e a aposta na inovação tecnológica é fundamental para atrair os investimentos financeiros de que o país tanto carece.

Um quarto e último desafio que se coloca a Bashar al-Assad prende-se com a sua própria manutenção no poder. A afirmação política do pai fez-se lutando contra um sentimento de inferioridade que o acompanhou desde o nascimento. Hafez al-Assad veio ao mundo em 1930, no seio da uma família alauita — cerca de 12% dos mais de 15 milhões de sírios —, da minoria xiita, vista pela esmagadora maioria dos sírios (sunitas), como uma seita herege, e consolidou o poder aglutinando à sua volta representantes de várias outras minorias, nomeadamente ismaelitas, cristãos, curdos, drusos, laicos…

Partindo desta base de apoio, Hafez al-Assad construiu e controlou a máquina do poder e garantiu a lealdade do Exército — onda a maioria das unidades de elite é composta por alauitas — e dos serviços secretos.

Se, por um lado, Bashar está legitimado por ser um Assad, o facto de ser um alauita granjeia-lhe, automaticamente, um conjunto de inimigos, designadamente dos Irmãos Muçulmanos, um grupo sunita exilado na Jordânia que se tem oposto violentamente ao predomínio alauita em Damasco. E o facto de ser solteiro, torna-o ainda mais vulnerável, pois não existe qualquer aliança matrimonial que o possa socorrer — contrariamente ao pai que, ao casar com uma alauita oriunda de um clã diferente, capitalizou apoio.

Talvez este aspecto não venha a constituir um verdadeiro problema se Bashar se conseguir afirmar e alterar o tradicional esquema de solidariedade tribal através de reformas políticas e da liberalização económica.

Bashar herda tudo por resolver e vê-se prisioneiro da falta de preparação para o cargo em virtude de não ter sido a primeira escolha do pai. Quando nasceu, Assad tinha já dois filhos: uma rapariga (a mais velha) e um rapaz, Basil, que, na esteira da mais fiel das tradições monárquicas, foi o eleito para lhe suceder. Foi Basil, e não Bashar, quem se viu, desde cedo, envolvido nas lides militares e foi alvo de uma educação cuidada e vocacionada para a liderança.

Daí que, quando, a 21 de Janeiro de 1994, Assad surpreende Bashar, em Londres, com a notícia da morte do irmão — na sequência de um acidente de viação, perto do aeroporto de Damasco — e o convoca para o regresso urgente à Síria, a situação se tenha assemelhado ao voltar à estaca zero porque tudo estava por fazer: havia que formar Bashar rapidamente para que ele cumprisse a nobre missão de suceder ao pai.

O percurso académico de Bashar tinha seguido por um caminho contrário àquele que seguiria se tivesse sido o eleito. Começou por frequentar o liceu franco-árabe Al-Hourriet, estudou Medicina na Universidade de Damasco e, entre 1988 e 1992, Oftalmologia no hospital militar de Techrin, igualmente na capital síria. Depois, seguiu-se o refúgio londrino, para os estudos especializados — de onde lhe advém a alcunha de o doutor — e de onde é arrancado em 1994, para ser submetido a um curso rápido e intensivo de como governar.

Sem qualquer preparação militar — algo inaceitável para as elites governativas de um país do Médio Oriente —, logo ingressou na Academia Militar de Homs e em Janeiro de 1999, foi graduado coronel. Momentos após a morte do pai, o Parlamento promoveu-o a general e nomeou-o comandante-chefe das Forças Armadas.

Paralelamente, multiplicaram-se pelas ruas os seus retratos, ele que aos olhos do povo era um ilustre desconhecido, contrariamente ao irmão Basil que já tinha conquistado o afecto dos sírios.

A herança de Bashar é pesada: uma Síria economicamente frágil e um Estado pródigo em coleccionar inimigos — com Israel e Iraque à cabeça

Ainda o pai era vivo, quando Bashar nomeou o seu primeiro inimigo a abater — a corrupção, dando início a uma espécie de operação mãos limpas e banindo do governo e do exército o mais pequeno vestígio de corrupção, ainda que tal significasse o afastamento de alguns dos mais antigos colaboradores do pai.

A morte de Hafez al-Assad, a 10 de Junho de 1999, precipitaria todo o processo de legitimação de Bashar, num país que, sendo uma república, estava prestes a reconhecer uma sucessão dinástica. E eis que à legitimidade sanguínea se junta todo o processo de legalização burocrática vertiginosamente acelerado: horas depois do pai falecer, o Parlamento reúne-se de urgência e altera a Constituição, passando a idade mínima para ascender a Presidente de 40 para 34 anos (a idade de Bashar); em meados do mês, o Partido Baas — partido único, no poder também no Iraque — reúne-se em congresso e escolhe Bashar como o seu candidato à presidência; dias depois, o Parlamento nomeia-o Presidente; a 10 de Julho, num referendo popular, 97,2% dos sírios aprovam-no e uma semana depois Bashar al-Assad toma posse, tornando-se, assim, o Presidente de todos os sírios e, aos 34 anos, o mais jovem Chefe de Estado em todo o mundo.

A herança de Bashar é pesada: herda uma Síria que ainda é olhada com desconfiança mas que, a partir de 1996, deixou de constar da lista do Departamento de Estado norte-americano de países que apoiam o terrorismo; herda um país economicamente frágil, mas jovem e com vontade de explorar os caminhos da revolução informática; herda um Estado pródigo em coleccionar inimigos — com Israel e Iraque à cabeça —, mas que se tornou um actor incontornável da paz no Médio Oriente.

Se Assad foi o protector dos leões (o significado, em árabe, de Hafez al-Assad) — fiel ao lema de que mais vale ser temido do que amado” —, Bashar tem a aparência de um pequeno cachorro a quem se exige, porém, a força e garra de um felino.

Ascendeu ao trono por unanimidade, mas só o tempo dirá se o instinto de Thomas Friedman, um articulista do The New York Times, estava certo quando, imediatamente após a morte de Assad, escreveu: A lápide deveria dizer: Hafez Assad, Presidente temido e feroz. Durou demasiado tempo e morreu cedo demais.

OS PRÓXIMOS LÍDERES

Quem se seguirá? É esta a pergunta que com maior insistência paira no subconsciente de todos quantos se interessam pela conturbada história dos países árabes do Médio Oriente e Norte de África.

Em pouco mais de um ano, Jordânia, Bahrain, Marrocos e Síria despediram-se de líderes carismáticos e experientes e sentaram na cadeira do poder” jovens na casa dos trinta anos. As atenções viram-se agora para os veteranos ainda em acção e os palpites sobre quem será o próximo a claudicar dispersam-se. Será o palestiniano Arafat ou o líbio Kadhafi? O egípcio Mubarak ou qualquer um dos soberanos dos pequenos reinos do Golfo?

Não há analista que se atreva a fazer previsões — há anos que a saúde do Rei Fahd, na Arábia Saudita, está por um fio —, mas um facto é incontornável: no Iraque, Saddam Hussein já tratou de introduzir um dos filhos na estrutura política do país. A 27 de Março, Uday Hussein — um engenheiro doutorado em Ciência Política pela Universidade de Bagdade — foi eleito para a Assembleia Nacional iraquiana com… 99,99% dos votos. Aos 35 anos, acumula uma quantidade impressionante de cargos, desde o comando das milícias Fedayin de Saddam até à presidência do sindicato dos jornalistas, passando pela direcção de inúmeras associações juvenis, estudantis e desportivas e pela administração de vários órgãos de comunicação social. Essa concentração de poder fê-lo coleccionar inimigos com fartura. Em 1996, sobreviveu como que por milagre a uma chuva de balas que crivaram o automóvel em que seguia e o atingiram em dez pontos do corpo.

A sua recuperação foi lenta e demorada, mas quando voltou a televisão iraquiana fez questão de passar imagens suas a nadar no rio Tigre, para que não houvesse dúvidas de que o enfant terrible estava de volta e em grande forma.

No clã Hussein, as disputas, por vezes, só se resolvem à lei da bala. Em 1995, Uday esteve na origem da fuga de dois genros de Saddam para a Jordânia. O episódio humilhou o patriarca da família de tal forma que logo Uday procurou redimir-se: atraiu os cunhados a Bagdade e… participou, pessoalmente, na sua execução.

A entrega do lugar de delfim de Saddam” a Uday não é unanimemente aceite. Qusay, o filho mais novo de Saddam, desempenha importantes funções ao nível da estrutura militar do regime, pelo que nem sempre a coexistência entre os dois irmãos é fraterna.

Poucos conhecem Uday de perto, mas muitos dos que com ele se cruzaram arrependeram-se para toda a vida. Quando a selecção iraquiana de futebol falhou a qualificação para um campeonato do Mundo, Uday — que adora futebol — mandou prender os jogadores. Depois, chicoteou-os e torturou-os. Se vier a suceder ao pai, como se espera, Uday passará a personificar, entre a nova geração de príncipes — a geração Internet, como já é chamada —, uma nova modalidade de liderança. Será a subida ao poder de playboys assassinos e sanguinários, sedentos de poder e apenas preocupados com o estatuto pessoal, por oposição a figuras tais como Abdallah II da Jordânia ou Mohammed VI de Marrocos, por exemplo, que não só conquistaram de imediato os súbditos como as simpatias do Mundo.

Artigo publicado na Revista do Expresso, a 19 de agosto de 2000