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Uma surpresa para os jornalistas de fora

A imprensa internacional foi incapaz de antecipar o 25 de Abril. Houve mesmo quem saísse de Portugal nas vésperas do golpe militar… Mas passada a estranheza, a atração de correspondentes e enviados estrangeiros pela Revolução dos Cravos foi incondicional

Capa da revista “Time”, de 6 de maio de 1974

A imprensa internacional foi incapaz de antecipar o 25 de Abril. Houve mesmo quem saísse de Portugal nas vésperas do golpe militar… Mas passada a estranheza, a atração de correspondentes e enviados estrangeiros pela Revolução dos Cravos foi incondicional

A revolução portuguesa apanhou o mundo de surpresa e Werner Herzog em contrapé. O jornalista suíço, com escritório em Madrid, viera até Portugal por alturas do levantamento das Caldas da Rainha de 16 de março. Convencido de que nada aconteceria a curto prazo, regressou à capital espanhola a 22 de abril, ignorando alertas de que algo poderia estar iminente… “Tinha falado com um militar que me disse para esperar algum tempo e não voltar já para Madrid. Chamava-se António Reis. Eu pensava que ele era um romântico sonhador e não acreditei. Quando ouvi as notícias no dia 25 percebi que ele sabia de tudo”, recorda. “Talvez tenha sido melhor assim… Teria sido terrível eu saber o que ia acontecer sem poder dizer a ninguém.”

Werner apanhou o último comboio do dia 25 para Portugal, onde chegou na manhã de 26. Para poupar dinheiro — trabalhava em regime freelance —, hospedou-se em pensões baratas na Avenida da Liberdade onde, em condições precárias, ia dando resposta às crescentes solicitações da imprensa estrangeira. Chegou a trabalhar simultaneamente para dois jornais suíços (“Tagesanzeiger” e “Basler Zeitung”) e dois alemães (“Frankfurter Rundschau” e “Stuttgarter Zeitung”).

A Revolução dos Cravos colocara Portugal na primeira página dos jornais como nenhum acontecimento antes. Nos dias seguintes, reabertas as fronteiras, afluíram a Lisboa repórteres de todo o mundo. “Chegaram bastantes, mas poucos estavam preparados para entender o que se passava”, diz. “Lembro-me de um jornalista da televisão suíça que tentava seguir os acontecimentos e saber quem era quem. Fomos para a Estação de Santa Apolónia, onde uma multidão ouvia um discurso. ‘Quem é aquele? Quem é aquele?’, perguntou-me. ‘Chama-se Mário Soares. E acaba de regressar do exílio em Paris’…”

Visto do exterior, o Portugal de inícios de 1974 denotava nervosismo. O golpe frustrado das Caldas era a prova de que algo mexia, mas a possibilidade de uma revolução estava longe das expectativas. “O ‘Le Monde’ não atribuiu grande importância ao 16 de março”, recorda José Rebelo, exilado em Paris e então membro da administração do diário francês, do qual viria a ser correspondente em Portugal entre 1975 e 1991. “Pensou que era uma escaramuça entre militares. De tal forma que enviou a Portugal um jovem estagiário, o Dominique Pouchin.”

Como era vespertino, o “Le Monde” noticiou o 25 de Abril na edição que saiu para as bancas à uma da tarde. Os tanques nas ruas e a ausência de violência — “o carácter romântico da revolução”, como diz José Rebelo — foi crucial para o sucesso mediático dos acontecimentos. “Não sei se houve outro facto na história do ‘Le Monde’ que tenha justificado um tão grande número de artigos sobre Portugal…” O jornal chegou a ter enviados especiais em Lisboa, Porto, Açores e em Angola.

Quartéis-generais nos hotéis

Em Lisboa, os jornalistas estrangeiros tinham tendência a agrupar-se por hotéis. “Os franceses ficavam no Mundial, os ingleses iam mais para o Tivoli e os americanos para o Sheraton”, recorda. “Depois constituíamos autênticas redações. No sétimo andar do Hotel Mundial, havia jornalistas do ‘Le Monde’, do ‘Nouvel Observateur’, de revistas de direita, como ‘Le Point’ ou ‘L’Express’, ou do ‘L’Humanité’, órgão do Partido Comunista francês. Trabalhávamos ali, jantávamos todos juntos, partilhávamos o que víamos e rentabilizávamos ao máximo os contactos uns dos outros.”

Entre a legião de enviados, José Rebelo recorda um da agência Nova China: “Vinha com cozinheiro e tudo.”  O facto de Portugal pertencer à NATO e, sobretudo, o futuro de Angola atraía especialmente jornalistas do Leste.

Emma Gilbert recorda o dia em que foi recrutada para ir traduzir para inglês o anúncio de formação do I Governo Provisório, feito por Sanches Osório, porta-voz da Junta de Salvação Nacional. “Eu não quero exagerar, mas havia, à vontade, uns 500 jornalistas” naquela sala do Palácio Foz, sede do Secretariado Nacional de Informação.

Nascida em Portugal e de nacionalidade dinamarquesa, Emma era fluente em inglês. Conhecedora da realidade local, foi logo contratada pela agência sul-africana Argus, a primeira etapa de uma carreira no jornalismo que haveria de torná-la, a partir de janeiro de 1975, correspondente em Portugal da Associated Press, que funcionava num escritório apertado da Praça da Alegria, por cima do Maxime. O laboratório fotográfico era a casa de banho.

Nos dias agitados após a revolução, Emma trabalhou também como guia-intérprete de repórteres que chegavam, alguns acabados de cobrir a guerra no Vietname, como o fotógrafo alemão Horst Faas, premiado com um Pulitzer. “Um dia, fui com um jornalista americano, que também tinha estado no Vietname, para a zona do RALIS. Os tropas estavam armados com G3 e o povo gritava: ‘Armas para o povo! Armas para o povo!’ Nós estávamos na frente da manifestação. A dada altura, ao ouvir-nos falar inglês, alguém gritou: ‘Está aqui a CIA!’ Ficámos um pouco aflitos. Comecei a pensar como é que podíamos sair dali. Ele disse: ‘É assim: agachas-te e começas a recuar de costas por baixo dos braços deles.’ E assim saímos dali. Eram épocas de grande desafio.”

Cara cansada de tanto sorrir

Quarenta anos depois, Sandy Sloop não tem dúvidas que o 25 de abril de 1974 foi, “talvez, o dia mais importante” da sua vida. Este norte-americano nascido no Brasil — que, entre 1977 e 1990, foi o correspondente em Lisboa da agência United Press International — chegara a Portugal em 1971 “a caminho de África”, o seu principal interesse, mas também com o objetivo de estudar português e “descobrir o que era a ditadura”.

Soube da revolução de madrugada e correu logo para a rua, “para participar na história que se fazia”. “Escrevi um postal para a família para ter pretexto para andar na rua.” Percorreu Lisboa de lambreta: tentou, sem sucesso, chegar ao aeroporto; no Rossio, viu uma esquadra da NATO partir ao longe e assistiu à passagem da coluna de Salgueiro Maia a caminho do Quartel do Carmo — saudada por cravos vermelhos e flores de todos os tipos. No Largo do Carmo, Sandy assistiu aos acontecimentos em cima de um chaimite. Quando voltou para casa, já de madrugada, “sentia os músculos da cara cansados de tanto sorrir”.

Pouco depois da revolução, foi contactado pela embaixada dos EUA e aceitou acompanhar, durante uma semana, dois jornalistas norte-americanos (do “Baltimore Sun” e do “Chicago Tribune”) e um australiano (do “The Age”, de Melbourne), profissionais batidos, com experiência de histórias quentes, como parecia ser o caso “pelo que significava para Portugal, mas também em termos africanos.”

“No nosso primeiro almoço, levei-os ao Bonjardim, o rei dos frangos, junto ao Rossio. Um deles perguntou-me: ‘Você que mora cá, como é que reage a isto tudo?’. Eu disse: ‘Bem, para mim, isto é uma espécie de orgasmo coletivo’. Ele comentou: ‘É uma expressão muito forte, mas eu trabalho para um jornal de família… Tenho a impressão que não vou poder citá-lo’.”

Sandy refere que os três eram “praticamente analfabetos” em relação a Portugal. Durante décadas, além do caso do “Santa Maria” e do início das guerras em África, muito pouco tinha acontecido no país que tivesse chamado a atenção da imprensa estrangeira. “Havia muito poucos jornalistas estrangeiros acreditados em Lisboa antes de 25 de abril. Estariam provavelmente em Madrid ou em Paris e ficavam com um olho cá.”

Nos EUA, na redação da “Time”, julgava-se que Portugal era Espanha. E mesmo entre nuestros hermanos havia uma grande ignorância sobre a situação do lado de cá da fronteira

Chegados a Portugal na década de 60, a norte-americana Martha de la Cal e o marido, o fotógrafo inglês Peter Collins, eram exceção. Pela mão de Martha, a revolução portuguesa chegou à revista “Time”, com uma ilustração de Spínola a fazer a capa da edição de 6 de maio de 1974. Falecida em 2011, a jornalista recordou, numa entrevista de 2008, o desconhecimento do mundo em relação a Portugal. “Eu mandava muitíssimo material para a redação central em Nova Iorque, onde havia jornalistas muito bem pagos só para escrever. Depois a ‘Time’ enviava-me o que eles escreviam para eu fazer correções. A primeira coisa que me mandaram no dia 25 de abril dizia: ‘Desde Fernando e Isabel de Espanha que não…’ Eu mandei de volta a dizer: ‘Não! Estamos em Portugal! Não é Espanha!’ Sabia-se muito pouco sobre o país.”

Mesmo em Espanha, Portugal era uma realidade desconhecida. “Conhecíamos Fátima, Eusébio, Amália e o vinho do Porto. Ninguém pensava ir a Portugal”, recorda Ramón Font, o catalão que viria a ser correspondente em Lisboa da agência EFE, da Radio Nacional de Espanha e da TVE. “Eu conhecia o livro de Spínola (‘Portugal e o Futuro’) e, porque estava politizado, sabia quem era Mário Soares e Álvaro Cunhal.”

Excursão política

A trabalhar numa rádio de Barcelona, fez-se à estrada decidido a “saber o que era a liberdade. Com um grupo de amigos do jornalismo, do cinema, do ensino, fizemos uma excursão política a Portugal, durante uma semana”. Marcou-o muito a visita ao jornal “República”, onde se impressionou com a figura de Raul Rego. “Eu não sei quanto tempo aqueles jornalistas dedicavam ao seu trabalho, porque passavam horas a receber colegas estrangeiros e nunca diziam ‘não posso’. Estavam sempre disponíveis para explicar as coisas seriamente.”

Ramón Font diz que o golpe das Caldas colocara-o “de prevenção”. Ainda assim, não deixou de se sentir surpreendido quando soube da revolução. “O 25 de Abril foi uma surpresa para toda a gente, sobretudo pelo seu estilo e ausência de violência. Foi o que me fascinou. Lembro-me de uma conversa, muitos anos depois, com o dono do restaurante Tavares em que lhe disse: ‘Deixe de se queixar! Os tanques passaram em frente a este restaurante, um símbolo do antigamente, e ninguém partiu os vidros’. Ele disse: ‘É verdade, desculpe!’”

Artigo publicado na edição especial “25 Abril 40 anos”, Vol. 1, distribuído com o “Expresso, de 12 de Abril de 2014

Salgueiro Maia, o capitão sem medo, morreu há 20 anos

Morreu aos 47 anos. A História consagra-o como o maior exemplo de coragem da revolução de 25 de Abril de 1974. Salgueiro Maia, o capitão sem medo, desapareceu a 4 de abril de 1992

Grafiti de Salgueiro Maia, numa rua de Lisboa WIKIMEDIA COMMONS

O português é caracterizado em todo o mundo pela sua capacidade de desembaraço ou de desenrasca, como se diz na tropa. E naturalmente que (naquela madrugada) a condicionante de desenrascanço era relevante.

Numa entrevista que hoje se recorda (neste vídeo), Salgueiro Maia o rosto da coragem da Revolução dos Cravos, que morreu faz hoje 20 anos não disfarça a forma improvisada com que foi montada a operação militar que derrubou uma ditadura com mais de 40 anos, em Portugal.

Com a simplicidade que lhe era reconhecida, relata como avançou com a ideia apenas na véspera da Revolução, como a comunicação social ajudou a iludir a falta de tropa e armamento do lado dos revoltosos e como paralelamente aos cravos, o povo, em apoteose, aclamou os militares distribuindo os primeiros jornais livres de censura e… bocados de presunto.

https://www.youtube.com/watch?v=MleHl_67iYw&feature=emb_logo

“Quem quiser que venha comigo!”

Nascido em Castelo de Vide, a 1 de julho de 1944, Fernando José Salgueiro Maia ingressou na Academia Militar, em Lisboa, em outubro de 1964. Terminado o curso, apresentou-se na Escola Prática de Cavalaria (EPC), em Santarém, para frequentar o tirocínio. Foi comandante de instrução em Santarém e em 1968, com a guerra colonial em curso, partiu para o Norte de Moçambique, integrado na 9ª Companhia de Comandos.

Em março de 1971, foi promovido a capitão e em julho de 1971 embarcou para a Guiné. De regresso a Portugal, dois anos depois, voltou a Santarém, à EPC. Participou nas reuniões clandestinas do Movimento das Forças Armadas, integrando, como delegado de cavalaria, a Comissão Coordenadora do Movimento. Até que a 25 de abril de 1974, Salgueiro Maia teve o seu encontro com a História.

Ao princípio da madrugada, na parada da Escola Prática de Cavalaria, afirmou perante 240 homens: Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado: os Estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!

Todos cedem ao carisma de Salgueiro Maia. Às três e meia da manhã, dez viaturas blindadas atravessam a porta de armas da EPC, comandadas pelo capitão sem medo. O objetivo é atingir… Toledo, o nome de código para o Terreiro do Paço e os seus ministérios o coração do regime.

Revolução ignora o semáforo vermelho

Já em Lisboa, Salgueiro Maia escuta um carro-patrulha da PSP informar o respetivo comando da passagem da coluna, impressionado com o número de chaimites.

Recordaria o capitão: Enquanto ouvia estas informações, o jipe trava de repente e dou comigo parado no sinal vermelho do cruzamento da Cidade Universitária. Olho para o lado e vejo um autocarro da Carris também parado. Achei que era demais parar a revolução ao sinal vermelho, quando o que distinguia os carros do MFA era um triângulo vermelho no lado esquerdo das viaturas ou tapando a matrícula. Mando avançar tocando as sirenes das autometralhadoras EBR até chegar ao Terreiro do Paço.

A missão é cumprida com êxito, antes de ser dado o alarme geral. Charlie Oito (Salgueiro Maia) comunica a Tigre (Otelo Saraiva de Carvalho): Ocupámos Toledo e controlamos Bruxelas e Viena (Banco de Portugal e Rádio Marconi)! A partir deste momento, os passos do capitão confundem-se com a história do próprio 25 de abril. Ao longo do dia, ele viria a ser o comandante do movimento mais sujeito a situações de perigo e tensão, que enfrentou com grande serenidade.

Ao fim da tarde daquela quinta-feira, o cerco militar montado no Terreiro do Paço força o presidente do Conselho, Marcello Caetano, à rendição. Ainda hoje, no Largo do Carmo, uma placa de homenagem a Salgueiro Maia assinala o local onde se dirigiu aos governantes sitiados no Quartel do Carmo. Salgueiro Maia viria a escoltar Marcello Caetano até ao avião que o transportaria para o exílio, no Brasil.

Mural na Avenida de Berna, em Lisboa, evocando os principais símbolos da Revolução dos Cravos — ao centro Salgueiro Maia —, numa abordagem contemporânea feita por quatro artistas da plataforma Underdogs, dirigida por Alexandre Farto (Vhils) FRALISS / WIKIMEDIA COMMONS

Os estudos depois da Revolução

Filho de um ferroviário, Francisco da Luz Maia, e de Francisca Silvéria Salgueiro, frequentou a Escola Primária em São Torcato, Coruche, e fez os estudos secundários em Tomar e Leiria. Depois da revolução, licenciou-se em Ciências Políticas e Sociais, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em Lisboa.

Participou no 25 de novembro de 1975, saindo da EPC aos comandos de uma coluna às ordens do Presidente da República, Costa Gomes. Viria a ser transferido para os Açores, só voltando a Santarém em 1979, para comandar o presídio militar de Santa Margarida. Em 1981, foi promovido a major e em 1984, regressou à Escola Prática de Cavalaria.

Condecorações póstumas

Avesso a privilégios e honrarias, ao longo dos anos, Salgueiro Maia recusaria ser membro do Conselho da Revolução, adido militar numa embaixada à sua escolha, governador civil de Santarém e pertencer à Casa Militar da Presidência da República.

Em 1983, recebeu a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, em 1992, a título póstumo, o grau de Grande Oficial da Ordem da Torre e Espada e, em 2007, a Medalha de Ouro de Santarém.

Em 1989, foi-lhe diagnosticado um cancro que, não obstante duas intervenções cirúrgicas nos anos seguintes, o viria a vitimar, a 4 de abril de 1992. Salgueiro Maia foi sepultado no cemitério de Castelo de Vide, na presença de três ex-Presidentes da República António de Spínola, Costa Gomes e Ramalho Eanes e de Mário Soares, chefe de Estado em funções, uma homenagem inequívoca ao maior exemplo de coragem e valentia da Revolução dos Cravos.

FOTOGALERIA : 28 fotografias sobre Salgueiro Maia

Artigo publicado no Expresso Online, a 4 de abril de 2012. Pode ser consultado aqui