Milhões manifestam-se nas ruas desde há meses contra o Governo, visto como um fantoche da China
Podia até ser uma campanha de charme, mas no contexto sociopolítico que Hong Kong atravessa mais soa a desespero. Esta semana, jornais influentes de todo o mundo publicaram um anúncio de página inteira, pago pelo Governo desta Região Administrativa Especial chinesa, destinado a sossegar potenciais investidores e visitantes. “Tem sido difícil, mas vamos continuar. A economia caiu, mas vamos recuperar em força. Hong Kong continua a ser uma sociedade livre e acolhedora e os nossos fundamentos são fortes”, leu-se nos norte-americanos “The New York Times” e “The Wall Street Journal”, no inglês “Financial Times”, no alemão “Frankfurter Allgemeine Zeitung” e no francês “Le Monde”, entre outras publicações de referência.
A campanha — que custou 7,4 milhões de dólares de Hong Kong (€850 mil) — descreveu um centro financeiro “altamente internacionalizado” e “competitivo”. Em setembro, uma ação de relações públicas do género já tinha realçado “uma sociedade segura, aberta, acolhedora e cosmopolita” e “uma economia dinâmica, vibrante e ligada ao mundo”.
Em circunstâncias normais, este seria um retrato impossível de contrariar. Hong Kong surgiu, este ano, em quarto lugar no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, que compara riqueza, alfabetização, educação, expectativa de vida, natalidade, entre outros fatores. Mas os tempos são de grande agitação nesta antiga colónia britânica, mergulhada na sua pior crise política desde a transferência da soberania para a República Popular da China, em 1997.
Desde 9 de junho que o território está tomado por gigantescos protestos antigovernamentais. Na mobilização do dia 16 desse mês, estima-se que tenham desfilado dois milhões de pessoas — a população total ronda os 7,5 milhões.
Batalhas no metro e na universidade
Os protestos nasceram pacíficos, mas, face à inação do Governo em corresponder às reivindicações das ruas, evoluíram para jornadas de violência, que provocaram, até ao momento, dois mortos. Sem liderança visível e identificada, os manifestantes já irromperam pelo Conselho Legislativo (LegCo, o Parlamento local), usaram estações de metro para batalhas campais com a polícia, paralisaram o aeroporto internacional e levaram à suspensão das aulas no campus universitário.
Hong Kong quer mais democracia e refuta medidas que instalem no território as garras de Pequim
O rastilho da turbulência foi aceso vai para um ano. Em fevereiro, o Executivo liderado por Carrie Lam propôs uma nova lei da extradição, que semeou a revolta. Ao prever que cidadãos de Hong Kong fossem levados e julgados na China continental, permitia a interferência de Pequim no sistema judicial.
O primeiro grande protesto, a 9 de junho, teve como principal slogan “Não à extradição para a China”. Mas a “surdez” do Governo — o diploma só seria retirado do circuito legislativo a 23 de outubro — provocou os manifestantes, que aumentaram a lista de condições para abandonarem as ruas. Agora exigem também uma investigação independente à atuação da polícia, uma amnistia para os manifestantes presos, a reformulação do discurso das autoridades para quem os protestos são “motins” e a eleição do chefe de Governo por sufrágio direto e universal.
A última exigência, em particular, não é nova nas ruas de Hong Kong. Em 2014, o desejo de mais democracia fez sair à luz do dia o Movimento dos Guarda-Chuvas. Dinamizado, sobretudo, por estudantes, bloqueou o centro da cidade durante 77 dias. A presença de guarda-chuvas nos protestos de 2019 — que invocam a resistência possível aos gases tóxicos disparados pela polícia — recorda que essa reivindicação continua por cumprir.
Hong Kong tem Parlamento e Governo próprios, mas o povo só elege metade dos 70 deputados do LegCo e os conselheiros distritais. O chefe do Governo é escolhido por um colégio eleitoral.
A arma do voto
Enquanto o status quo se mantém, os cidadãos descontentes lutam com todas as armas possíveis, incluindo… o voto. Nas últimas eleições locais, a 24 de novembro, visando a escolha dos conselheiros distritais, os candidatos pró-democracia averbaram uma vitória arrasadora, conquistando 388 dos 452 lugares em disputa. Ainda que simbólica — dado que estes cargos são de mero aconselhamento —, esta foi uma vitória legitimada por uma taxa de afluência às urnas superior a 71%.
Hoje, como em 2014, há uma preocupação maior na mente de quem se manifesta. Hong Kong está em contagem decrescente rumo a um futuro desconhecido. Desde a entrega da soberania à China que o território beneficia de uma transição de 50 anos que garante aos seus 7,5 milhões de habitantes direitos e liberdades não extensíveis aos 1500 milhões da China continental — a fórmula “um país, dois sistemas”.
Em Hong Kong há liberdade de expressão e de imprensa, liberdade de religião e de manifestação, livre comércio e fluxo de capitais. Em contraste, na China vinga a doutrina do Partido Comunista e, desde o ano passado, o “Pensamento de Xi Jinping”, o chefe de Estado chinês, foi incluído na Constituição. Com 2047 no horizonte — e o receio de Pequim passar a pôr e dispor no território —, os cidadãos desta região administrativa pressionam por mais democracia e refutam medidas que transportem as garras de Pequim sobre o território e sobre as vidas de cada um.
“Imagine que Espanha decidia que há uma nação ibérica, reivindicava Portugal, impunha a língua espanhola ao povo português e dizia que para se ser ibérico você teria de adotar a identidade, cultura e tradições espanholas. E também que teria de esquecer a sua própria história e concentrar-se na história de Espanha.” Era nestes termos que, a dada altura, um cidadão de Hong Kong explicava ao Expresso o que estava em causa. A sua esperança é que, chegados a 2047, a dinâmica de Hong Kong tenha contagiado a restante China — ainda que esta pareça empenhada em provocar o movimento inverso.
(FOTO Protestos em Hong Kong, em meados de 2019 STUDIO INCENDO / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso”, a 21 de dezembro de 2019. Pode ser consultado aqui