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Os talibãs não as deixam estudar, mas elas não se dão por vencidas: 50 afegãs vão frequentar universidades portuguesas

O regresso dos talibãs ao poder encurralou as afegãs em casa. Para as estudantes universitárias, em especial, as perspetivas de futuro caíram por terra, mas para 50 delas o sonho continuará em Portugal, onde têm garantidas bolsas de estudo para frequentar instituições do ensino superior. Nas 1424 candidaturas recebidas, “todas as raparigas usaram a expressão ‘poder continuar aquilo que eu estava a fazer’”, diz ao Expresso Ana Santos Pinto, responsável da Nexus 3.0, a organização não governamental que está na origem do projeto

FOTO Escola pública feminina, na província de Bamyan, no Afeganistão FLICKR CANADA IN AFGHANISTAN

A 15 de agosto de 2021, a retirada em contrarrelógio das tropas internacionais do Afeganistão e, em simultâneo, a avançada sem resistência dos talibãs sobre Cabul constituíram um enorme embaraço para quem acreditava que 20 anos de presença estrangeira no país tinham tornado a influência dos talibãs residual.

Nimroz, no sudoeste, foi a primeira província a cair, nove dias antes de as forças do Emirado Islâmico entrarem na capital. Nove dias depois, mais 32 regiões ficaram totalmente sob controlo talibã. Apenas a província do Panjshir, no nordeste, resistiu durante uns tempos.

Com igual rapidez, a autoridade dos talibãs impôs-se a todo o território, com o sector da educação a servir de montra do novo Afeganistão. Quatro dias após controlarem os edifícios governamentais em Cabul, as escolas secundárias reabriram para um novo ano letivo, mas apenas com professores e estudantes do sexo masculino.

A generalização da interdição do ensino às mulheres seria questão de tempo. A 20 de dezembro de 2022, foi proibido o acesso às universidades. Apenas as escolas primárias continuaram a ter estudantes do sexo feminino, uma cedência controversa num país tribal e conservador como é o Afeganistão.

Em junho passado, quase 80 meninas foram hospitalizadas na sequência de casos de envenenamento em duas escolas primárias do norte do país. Em causa estão raparigas nascidas já este século sem conhecimento nem memória do que é viver sob domínio talibã e andar invisível debaixo de uma burca.

Para muitas delas, agora sem direito a educação formal, resta correr riscos e procurar conhecimento em centros de aprendizagem clandestinos — ou então sair do país.

1424 candidaturas para vir para Portugal

É o que acontecerá a 50 universitárias afegãs que prosseguirão com os estudos em Portugal, ao abrigo de um programa que lhes garante uma bolsa com duração até três anos. “Recebemos 1424 candidaturas. Cada manifestação de interesse não é um número, é uma história, uma vida que está em causa”, explica ao Expresso Ana Santos Pinto, secretária-geral da Nexus 3.0, a organização não governamental (ONG) na origem do programa.

“A vida destas raparigas não parou, está fechada dentro de casa. Algumas delas continuam a ler e a procurar conhecimento, dentro dos limites que a casa e o regime lhes impõe. Isso é uma demonstração de resiliência e de esperança de que podem ter um futuro”, explica Santos Pinto.

Um primeiro grupo de 25 afegãs chegará a tempo de frequentar o ano letivo 2023/24. As restantes virão no próximo. “Bem sei que 25 é um número limitado, mas é aquilo que sabemos que conseguimos fazer com eficácia”, garante a responsável.

Todas as raparigas frequentavam universidades quando os talibãs as encurralaram dentro de casa. Em Portugal, tirarão o curso que escolherem, dentro das vagas disponibilizadas pelas instituições de ensino superior aderentes.

Duas rondas de entrevistas

“Elas candidatam-se àquilo que querem de acordo com uma listagem”, explica a fundadora da Nexus 3.0, realçando a recetividade “muito positiva” de universidades e politécnicos.

“Consoante as vagas que cada instituição disponibilizar, serão feitas duas rondas de entrevistas: uma mais pessoal, do ponto de vista da candidata, do seu percurso, das condições que dispõe e daquilo que já fez; e depois a própria instituição terá os seus critérios, do ponto de vista de exames e de provas de conhecimento.”

Desse trabalho cruzado entre as disponibilidades da academia portuguesa e os interesses pessoais das afegãs resultará a escolha dos 50 nomes. Selecionadas as estudantes, seguir-se-á uma etapa sensível.

Neste momento, a esmagadora maioria das candidatas está no Afeganistão. Outras já foram forçadas a sair do país e estão em países vizinhos, como o Paquistão e o Irão, “muito poucas ainda com o estatuto de proteção internacional”, diz a professora universitária.

As que estão no país terão de arranjar forma segura para atravessar a fronteira. “O primado é, naturalmente, a segurança destas raparigas. Temos de o fazer de uma forma o mais discreta possível, porque não se trata só da segurança delas, mas de toda a sua família”, que fica para trás.

“Estas raparigas nasceram após 2001”, o ano do 11 de Setembro, da subsequente invasão militar do Afeganistão e da deposição do primeiro governo talibã, punido por ter dado guarida à Al-Qaeda de Osama bin Laden.

“O que elas conhecem do país é um processo de presença internacional, dentro do qual houve uma abertura à educação, ao desenvolvimento de capacidades, uma esperança de construção de um futuro. E, subitamente, todo o planeamento de vida, tudo aquilo que imaginaram deixou de ser possível. As expectativas destas raparigas deixaram de poder ser concretizadas neste contexto”, diz Ana Santos Pinto.

“Os últimos 20 anos criaram uma noção de possibilidades diferentes daquela que existia há 40. Nas candidaturas, todas elas usaram a expressão ‘poder continuar aquilo que eu estava a fazer”, prossegue. Segundo a UNESCO, se em 2001 cerca de 5000 afegãs frequentavam o ensino superior, em 2021 esse número era de 100 mil.

CRONOLOGIA DE UM DESASTRE HUMANO

  • 19.09.2021 — Escolas secundárias reabrem só com professores e alunos do sexo masculino. Escolas femininas ficam encerradas indefinidamente.
  • 20.12.2022 — Mulheres são proibidas de frequentar as universidades.
  • 06.06.2023 — Talibãs dão 40 dias às ONG internacionais para transferirem as suas operações relativas à educação para organizações locais.

Este programa da Nexus 3.0 — organização fundada em 2022, por três mulheres, focada na promoção da educação, ciência, artes e cultura em contextos de fragilidade, violência e conflito — é também uma resposta a duas posições recentes da Assembleia da República.

  1. A 10 de fevereiro último, um projeto de resolução recomendou ao Governo que avaliasse com urgência a criação de um estatuto de estudante específico para refugiadas impedidas de frequentar o ensino superior, tendo como prioridade as afegãs. Apresentado pelo Livre, foi aprovado com votos favoráveis de todas as bancadas e abstenção do partido Chega.
  2. A 10 de março seguinte, outra resolução recomenda ao Governo que “incentive as instituições de ensino superior a implementarem programas de acolhimento e apoio a estudantes, investigadores e professores, provenientes do Afeganistão, que sejam impedidos de estudar, estejam em risco ou forçados à deslocação”. De iniciativa do PAN, foi aprovada por unanimidade.

“Não se pode apregoar a igualdade de género e não se tentar fazer alguma coisa quando no Afeganistão ocorre uma discriminação absoluta, um verdadeiro apartheid de género”, diz Ana Santos Pinto.

A expressão, que condensa a impossibilidade de exercício de direitos por razão de género, é usada atualmente pelas Nações Unidas para qualificar o tratamento dos talibãs às mulheres. “Com este nível de proibição absoluta não me ocorre outro exemplo” de regime político ao qual se possa aplicar este rótulo, diz a professora de Relações Internacionais.

CRONOLOGIA DO CERCO TALIBÃ ÀS MULHERES

  • 26.12.2021 — Proibição das mulheres viajarem a mais de 72 km sem a companhia de “um familiar masculino próximo”.
  • 07.05.2022 — Obrigatoriedade de as mulheres se cobrirem totalmente em público, incluindo o rosto. Doze dias depois, a medida é aplicada também às apresentadoras de televisão.
  • 10.11.2022 — Mulheres proibidas de usar banhos comunitários, ginásios e parques públicos.
  • 24.12.2022 — Proibição das mulheres trabalhar em organizações não governamentais. Cinco dias depois, os talibãs acedem a que continuem a trabalhar em ONG do sector da saúde.
  • 04.04.2023 — Afegãs proibidas de trabalhar para as Nações Unidas. A 5 de maio, o secretário-geral António Guterres anunciou que as operações da organização continuam no país, apesar das mulheres não poderem trabalhar para a ONU e ONG.
  • 05.07.2023 — Interdita a entrada em salões de beleza femininos, a quem é dado um mês para fecharem portas.

Outra frente do programa destinada a “criar capacidade no Afeganistão” será o ensino online. “Neste momento, o que as raparigas têm no Afeganistão para contactar com o exterior — seja da sua casa, seja do país — é essencialmente um telemóvel com acesso à Internet. É irregular e instável, mas existe. Gostaríamos de providenciar cursos de ensino superior com recurso ao online. Permitir-nos-ia chegar a mais raparigas”, diz a responsável.

Para garantir o financiamento do projeto, a Nexus 3.0 — que já coordena um programa de bolsas para refugiados oriundos da Ucrânia — bateu a várias portas, garantindo verbas públicas e comunitárias, bem como apoio de instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e mecenas.

As bolsas estão garantidas, faltando ainda uma verba complementar, a ser angariada por recolha privada, para custear despesas com viagens e alojamento, a necessidade de equipamentos informáticos ou de uma consulta num dentista, por exemplo. Nesta ligação é disponibilizada informação sobre como contribuir.

“Independentemente da sua área científica, todas as raparigas que submeteram candidatura têm o desejo de transformar o contexto das mulheres no Afeganistão”, conclui Ana Santos Pinto, que participou no processo de análise das propostas. “Para elas, é aquilo que, obviamente, é mais sensível.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui

Há dois anos no poder, Governo talibã afirma-se pelo “apartheid de género”

Os radicais privaram as mulheres de trabalhar e de frequentar estabelecimentos de ensino. Determinadas em seguir com a vida que tinham, 50 universitárias afegãs virão estudar para Portugal

Mulher coberta por uma burqa, no Afeganistão DIRK HAAS / FLICKR AFGHANISTAN MATTERS

O regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão, fez na terça-feira dois anos, reativou um conceito da Ciência Política que não se aplica, de forma tão absoluta, a nenhum outro regime político — “apartheid de género”. O termo, que remete para uma situação de discriminação sistemática e institucionalizada das mulheres, é hoje usado pelas Nações Unidas para rotular o Governo dos radicais.

Primeiro, baniram as mulheres de balneários, ginásios e parques públicos. Depois, deixaram cair a guilhotina sobre os sonhos de milhares de jovens, proibindo-as de frequentar a universidade e de exercer uma profissão (exceção feita ao sector da saúde). Sucessivos decretos foram encurralando as afegãs em casa. A 5 de julho passado, os talibãs deram um mês a todos os salões de beleza femininos para fechar portas.

Com as vidas interrompidas, e remetidas ao desígnio medieval de cuidar da casa e ter filhos em exclusivo, muitas estão recetivas a seguir em frente noutro país. É neste contexto que chegarão a Portugal 50 estudantes universitárias afegãs (25 já este ano letivo), no âmbito de um programa de atribuição de bolsas da Nexus 3.0, uma organização não governamental fundada em 2022 por três mulheres portuguesas.

Recomeçar em Portugal

“Não se pode apregoar a igualdade de género e não se tentar fazer alguma coisa quando, neste momento, no Afeganistão, ocorre uma discriminação absoluta e um verdadeiro apartheid de género”, diz ao Expresso Ana Santos Pinto, secretária-geral da organização.

A esmagadora maioria das jovens que irá beneficiar das bolsas estão no Afeganistão, onde frequentavam os mais variados cursos. Em Portugal, estudarão o que escolherem, mediante as vagas disponibilizadas por universidades e politécnicos de todo o país. “A vida destas raparigas não parou, antes está fechada dentro de casa”, continua Ana Santos Pinto. “Algumas delas tentam continuar ativas, leem e procuram conhecimento, dentro dos limites que a casa e o regime impõem. É uma demonstração de resiliência e de esperança.”

Ao todo, a Nexus 3.0 recebeu 1424 candidaturas. Esta procura revela que “fugir” do país continua a ser a prioridade para muitos afegãos. Nas travessias do Mediterrâneo, onde muitos migrantes arriscam a vida para tentar chegar à Europa, os afegãos continuam a ser dos contingentes mais numerosos. Em finais de 2022, 52% do total mundial de refugiados eram sírios, ucranianos e afegãos.

O regresso ao poder retirou os talibãs das trincheiras da resistência armada, que tanto sangue derramou durante a presença militar internacional. Mas não pacificou o país. “O Afeganistão está mais seguro do que estava nos anos da presença dos EUA e da NATO. Mas os talibãs têm sido incapazes de passarem de força rebelde para força governamental”, diz ao Expresso Agostino Bono, analista no International Team for the Study of Security Verona.

Alternativa chamada Daesh

A queda em desgraça do Governo do Presidente Ashraf Ghani, que fugiu do país no dia em que os talibãs entraram em Cabul sem a mínima resistência, impulsionou grupos terroristas no Afeganistão e no Paquistão. “O grupo que mais beneficiou foi o Estado Islâmico — Província Khorasan [Daesh-K], estabelecido em 2014, que combate os talibãs e assume-se como uma alternativa ao seu Emirado Islâmico”, acrescenta Bono.

Um ataque revelador desta inimizade ocorreu a 8 de junho, durante o funeral de um político talibã, morto num ataque suicida. Uma explosão dentro da mesquita onde decorria o ritual, na província de Badakhshan (norte), provocou 19 mortos. O Daesh-K reivindicou o ataque ao funeral e a execução do político.

“O Afeganistão nunca terá segurança enquanto o Daesh-K estiver ativo na região”, prevê o investigador. “O Daesh-K, que no passado tinha como principal alvo os hazaras [minoria xiita], agora visa interesses estrangeiros. Em finais de 2022, atacou as embaixadas russa e paquistanesa e um hotel chinês. A estratégia visa desacreditar o Emirado perante a população e a comunidade internacional.”

Outra potencial fonte de instabilidade decorre das divisões entre talibãs. Em linha de choque estão a ala dura, representada pelo líder supremo, Mawlawi Hibatullah Akhundzada, instalado em Kandahar (local de nascimento do movimento talibã, no sul), e outra mais pragmática, protagonizada pela liderança do Governo em Cabul. Em teoria, os últimos, ditos moderados, estão dispostos ao diálogo com o Ocidente e a abrir as escolas às raparigas. Atualmente, os conservadores levam a melhor.

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de agosto de 2023, e no “Expresso Online”, no mesmo dia. Pode ser consultado aqui e aqui

Acontecimento internacional do ano. Os talibãs estão de volta ao poder

Vinte anos após o início de uma guerra declarada para os derrubar, os talibãs são de novo Governo em Cabul. Como se EUA e NATO nunca lá tivessem estado

Símbolos do domínio talibã no Afeganistão: mulheres cobertas com burqa e a cavidade vazia onde existiu um dos budas gigantes dinamitados pelos extremistas, em Bamiyan. Esta foto foi tirada a 17 de junho de 2012 SGT. KEN SCAR / WIKIMEDIA COMMONS

O novo normal no Afeganistão é um cenário de terror de onde quem lá vive tenta fugir a todo o custo. A recente chegada a Portugal de um grupo de jovens músicas que integram a orquestra do Instituto Nacional de Música do Afeganistão é só um exemplo.

Desde que os talibãs recuperaram as rédeas do poder, a 15 de agosto, o quotidiano do país está envolto em atos de vingança e manifestações de intolerância tais que garantem ao Afeganistão um lugar de destaque nos relatórios internacionais relativos ao exercício de direitos e liberdades, pelas piores razões.

A música é proibida em locais públicos. Afegãos que trabalharam para forças militares estrangeiras recebem visitas de talibãs, com o intuito de os levar de casa, sem regresso garantido. Por todo o país, em especial em zonas recônditas, multiplicam-se relatos de detenções, tortura e execuções de cidadãos afetos ao antigo regime, de ataques contra ativistas, jornalistas, religiosos e personalidades da cultura. A lei dos talibãs voltou a punir ladrões com enforcamentos em praça pública e a autorizar agressões nas ruas a transeuntes que, de alguma forma, não se apresentem consoante os códigos defendidos pelos “estudantes de teologia”. Ainda que o novo poder prometa uma amnistia geral, no terreno, os militantes têm sede de desforra.

As mulheres estão, para já, proibidas de estudar e de trabalhar, exceção feita a médicas, essenciais para o atendimento de pacientes do sexo feminino nos hospitais. Os talibãs garantem que as restrições impostas às mulheres são temporárias. Ironicamente, é uma mulher que, atualmente, personaliza o principal obstáculo que o novo regime talibã enfrenta — o do reconhecimento internacional.

No final de julho, a menos de um mês de os talibãs entrarem em Cabul, Adela Raz, afegã de 35 anos, foi nomeada embaixadora do Afeganistão nos Estados Unidos. Sem o reconhecimento formal do novo regime por parte de Washington, os talibãs não conseguem substituí-la, ainda que, inversamente, a diplomata esteja cada vez mais de mãos atadas, sem autoridade nem fundos para assegurar o funcionamento da embaixada. Na semana passada, outro diplomata afegão, Ghulam Isaczai, cedeu às circunstâncias e demitiu-se da chefia da missão do Afeganistão na ONU.

Sem reconhecimento

Quando foram poder pela primeira vez (1996-2001), os talibãs viram três países reconhecerem o Emirado Islâmico do Afeganistão: Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Passados 20 anos, não há Estado que arrisque ser pioneiro a legitimar um sistema de governo igualmente retrógrado e medieval.

Quatro meses após voltarem ao poder, não se pode dizer que os talibãs vivam num isolamento diplomático absoluto. A China, por exemplo — que precisa do Afeganistão para que não aumente o problema na região de Xinjiang (onde os uigures, a minoria muçulmana chinesa, vivem em campos de concentração) —, já entregou aos talibãs milhões em ajuda de emergência. Mas as autoridades de Pequim não avançam sozinhas para o reconhecimento de um regime que prometeu moderação e inclusão e acabou a escolher um governo sem mulheres, com pouca diversidade étnica e até com um ministro procurado pela Interpol (o que não é novidade no Afeganistão). “As coisas serão diferentes quando a China, o Paquistão, a Rússia e o Irão chegarem a um consenso sobre o assunto”, assegurou o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi.

Só aparentemente os talibãs de 2021 são uma cópia dos de 2001. desta vez, a avançada não se fez à bomba, mas com negociações que tornaram o regresso ao poder inevitável

Paralelamente à vantagem política de serem aceites na cena internacional como iguais entre pares, o reconhecimento internacional é crucial para que o Governo talibã consiga aceder a empréstimos e financiamentos, em particular junto de instituições como o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional, e veja sanções serem levantadas, o que só acontecerá caso se comporte dentro de determinados limites. Sem apoio internacional, não haverá dinheiro para pagar salários e fica comprometida a administração — e estabilidade — de um país com cerca de 40 milhões de habitantes e índices de pobreza gritantes.

Décadas de guerras

Dono de uma geografia que tem tanto de estonteante como de agreste — sem litoral, com extensas regiões escassamente povoadas e pelo menos quatro montanhas com cumes acima dos 7000 metros —, o Afeganistão é também consequência de décadas de conflitos. Nos últimos 200 anos, por entre períodos de confrontos internos entre os diferentes grupos étnicos, o orgulhoso povo afegão enfrentou três potências estrangeiras: o Império Britânico (1838-42, 1878-80 e 1919-21), a União Soviética (1979-1989) e os Estados Unidos (2001-2021). Todas saíram do Afeganistão derrotadas e os afegãos consolidaram a fama de insubmissos.

O regresso dos talibãs ao poder resulta, pois, de mais uma guerra mal conduzida por quem se propôs erradicar as raízes do terrorismo internacional. Declarada para vingar o 11 de Setembro, derrubar o regime talibã — que permitiu que a Al-Qaeda usasse o Afeganistão para atacar Washington e Nova Iorque — e impedir que o país continuasse a ser porto seguro para terroristas, a invasão do Afeganistão revelou-se uma missão de contraterrorismo que não foi pensada para construir um novo país, em termos políticos e militares.

Essa ilusão ficou a descoberto quando os “estudantes” reassumiram o Governo de Cabul no momento em que as últimas tropas da NATO regressavam a casa. Contrariamente a 2001, quando a entrada em Cabul foi antecedida por dias de bombardeamentos sobre a capital, desta vez os talibãs marcharam de forma fulminante e sem enfrentarem a mínima resistência.

Só aparentemente é que os talibãs de 2021 são uma cópia dos de 2001. Desta vez, a avançada não se fez à bomba, mas beneficiando de negociações que tornaram o seu regresso ao poder inevitável, mal a NATO virasse costas.

Falta de liderança

A inércia quer das forças armadas quer de milícias afetas a senhores da guerra (alguns dos quais fugiram mesmo do país) indicia cumplicidade entre fações que noutros tempos se digladiavam até à morte. A exceção foi um grupo de combatentes tajiques, liderados por um filho do lendário comandante Massud, que, entrincheirado no vale do Panjshir, apenas conseguiu atrasar uns dias a vitória total dos talibãs.

A inação das tropas governamentais expõe problemas de liderança, simbolizados na fuga do Presidente Ashraf Ghani para o estrangeiro, mas também na facilidade com que muitos soldados afegãos passaram para as hostes talibãs. Entre as suas motivações está um sentimento de abandono decorrente, por exemplo, de salários em atraso. Outra vulnerabilidade das forças armadas afegãs — cuja constituição foi a grande prioridade da missão da NATO — é terem sido criadas em função de lealdades tribais, e não em obediência a uma cadeia de comando funcional.

Mas algo mais escancarou as portas do poder aos talibãs: o processo negocial que decorreu com os Estados Unidos em Doha, a capital do Catar, onde os “estudantes” abriram escritório por volta de 2010. Essas conversações diretas culminaram na assinatura de um acordo de paz, a 29 de fevereiro de 2020, entre a Administração Trump e a liderança talibã — à revelia e sob protesto do Governo de Cabul.

Através desse entendimento, Washington obteve a garantia de que os talibãs não manteriam relações com a Al-Qaeda nem permitiriam que o seu território se tornasse albergue de organizações terroristas. Por seu lado, a fatura apresentada pelos talibãs foi a retirada de todas as tropas estrangeiras do país.

Que mudou Joe Biden?

Com Joe Biden na Casa Branca, não só os Estados Unidos mantiveram a estratégia traçada pela equipa de Donald Trump — sem tentar sequer endurecer exigências — como anteciparam a data de saída do Afeganistão de 11 de setembro para 31 de agosto.

Esse adiantamento poupou os norte-americanos ao embaraço de verem coincidir o 20.º aniversário do 11 de Setembro com o regresso dos talibãs ao poder, mas não protegeu Washington de acusações de traição por parte de afegãos nem de uma imagem de humilhação, patente no caos em que decorreram os últimos dias da retirada, com 183 mortos num atentado do autodenominado Estado Islâmico (Daesh) no aeroporto de Cabul (entre os quais 12 norte-americanos) e milhares de afegãos a escalarem aviões em tentativas desesperadas para saírem do país.

Sair ou ficar pode ser a diferença entre viver ou morrer. É o que se depreende das palavras ao Expresso de um afegão que tem a cabeça a prémio, por ter colaborado com os Estados Unidos: “Os talibãs têm muito dinheiro proveniente dos serviços alfandegários, mas não percebem nada de governação. Estão unidos a matar e matar. Não têm nenhuma humanidade, nenhuma dignidade.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 23 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

À espera que a barba cresça para tentar fintar os talibãs

Perseguido pelo regime, um afegão revela o seu plano de fuga do país. Um relato dramático a partir de Cabul

Said estima que o pesadelo tenha durado uns 40 minutos. Uma eternidade para quem sentia a morte à distância de poucos metros. Por volta das 11 da noite, um grupo de homens identificados com os talibãs bateu à porta da casa dos seus pais em Cabul, capital do Afeganistão. Vinham buscá-lo.

“Eram dois carros. Um estava parado à nossa porta e o outro à entrada da rua. Junto à porta havia três homens e mais dois ao fundo da rua”, recorda ao Expresso este afegão, de 36 anos, descrevendo o que observou através da câmara de vigilância instalada junto à entrada da casa dos pais.

Nervoso, Said ligou a pedir ajuda a amigos, que o aconselharam a não abrir a porta. Por aqueles dias já se sabia o que podia significar uma visita noturna dos talibãs. “Aparecem à noite e levam pessoas de suas casas. Dois ou três dias depois, os cadáveres são despejados num lugar qualquer.”

Os talibãs precisam de integrar as suas forças numa forma de organização centralizada, o que se tem revelado difícil

Perante a insistência dos talibãs, foi a mãe quem levantou a voz para lhes responder de dentro de casa. Questionada acerca do paradeiro do filho, respondeu que não se encontrava ali e que nem sequer estava no país. Os homens não acreditaram, disseram ter informações de que Said estava naquela casa, mas acabaram por abandonar o local.

Foi na casa dos pais que Said se refugiou quando os talibãs assumiram o poder no Afeganistão, após entrarem em Cabul, a 15 de agosto, sem a mínima resistência. Sabia que tinha a cabeça a prémio por ter colaborado com as tropas estrangeiras, que, na perspetiva talibã, “ocuparam” o país durante 20 anos. “A minha família está em risco. Os meus irmãos dizem que tomam conta dos meus pais mas que eu tenho de me salvar sozinho.”

Dólares para subornar

Sem sair de casa desde a assustadora visita dos talibãs, há cerca de duas semanas, Said tem procurado gizar uma forma de se pôr a salvo. A fronteira com o Paquistão está a pouco mais de 200 quilómetros de distância, o que deverá levar umas quatro horas por estrada. Said quer chegar ao ponto de passagem de Torkham, mas para lá chegar precisa de passar despercebido…

Conta, para isso, com a ajuda e cumplicidade de um amigo. “Optei por falar a uma só pessoa. Muita gente envolvida dá sempre problemas. Este meu amigo é de confiança.” Motorista de camiões, Ajmal tem experiência em movimentar-se na zona de Torkham. Pediu a Said que pusesse de parte uns 500 dólares (€433) para dar a um facilitador, na fronteira. Enquanto esse dia não chega, Said deixa que a barba cresça para disfarçar a sua aparência. “Eles conhecem-me. Vou tentar modificar a minha expressão.”

O Expresso conheceu Said em 2011, em Cabul. Na altura, este afegão estudava na Faculdade de Medicina Curativa do Instituto de Ensino Superior Ariana, uma instituição privada em Jalalabade (Leste), perto da fronteira com o Paquistão. Foi ele o guia numa visita a uma escola daquela região conservadora — frequentada por rapazes e raparigas — que beneficiou de financiamento português. “Lembras-te que te pedi que fizéssemos uma visita rápida? Aquelas montanhas em frente à escola estavam cheias de talibãs. Haveria perigo se tivéssemos demorado muito.”

Dificuldade em centralizar

Desde que regressaram ao poder — o novo Governo do Emirado Islâmico do Afeganistão foi anunciado a 7 de setembro —, os responsáveis talibãs procuraram obter reconhecimento internacional adotando um discurso de moderação, oposto ao extremismo impiedoso que caracterizou a sua primeira passagem pelo poder, entre 1996 e 2001.

Entre outras garantias, prometeram uma amnistia para quem colaborou com as forças estrangeiras. Mas o quotidiano dos cidadãos revela-se muito diferente, com muitos talibãs empenhados em vingar essa traição pelas próprias mãos.

“Os talibãs funcionam mais como uma rede espalhada do que como uma estrutura hierárquica robusta”, explica ao Expresso Haroun Rahimi, professor de Direito na Universidade Americana de Cabul. “Agora no poder, precisam de integrar as suas forças, verticalmente, numa forma de organização centralizada. Isso tem-se revelado difícil.”

Said vai partilhando vídeos e fotos macabros, publicados pelos afegãos nas redes sociais, para exemplificar as atrocidades do dia a dia. Perseguições nas ruas, casas rebentadas à bomba, homens executados a tiro ou espancados em sessões de tortura intermináveis.

Num dos últimos vídeos enviados ao Expresso, os corpos de dois homens enforcados oscilam lentamente do ramo de uma árvore. “Uns dizem que eram membros do Daesh [o autodenominado Estado Islâmico, inimigo dos talibãs], outros dizem que eram inocentes”, diz Said. “Este massacre não vai terminar. Os talibãs são muito selvagens, não têm compaixão por ninguém.”

É a um destino cruel destes que Said quer escapar, ainda que tenha de deixar para trás a mulher e três filhos menores. Se conseguir chegar a Islamabade, capital do Paquistão, irá começar outra luta: bater à porta de embaixadas ocidentais (que no Afeganistão estão encerradas), contar a sua história, apresentar documentação e esperar que lhe abram a fronteira para recomeçar a vida em outro país. A salvo. “A vida no Afeganistão já não é possível. Apenas se contam os momentos de dor, tristeza e morte.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui e aqui

Americanos estão de saída. Teme-se reinício da guerra

Crescem as áreas controladas pelos talibãs. Receando uma insurgência, há cada vez mais civis a pegar em armas

Uma criança afegã caminha junto a um militar norte-americano, na província de Helmand REECE LODDER, U.S. MARINE CORPS / RAWPIXEL

A guerra americana no Afeganistão tem tantos anos como o 11 de Setembro. Foi sobre este país da Ásia Central que os Estados Unidos retaliaram após o pior atentado sofrido em solo próprio. O Afeganistão era governado pelos talibãs, que abrigavam a Al-Qaeda de Osama bin Laden. Quase 20 anos passados, os militares americanos estão de volta a casa. Para trás deixam um país cada vez mais nas mãos dos talibãs e, de novo, à beira da guerra.

“A verdade é que hoje a sobrevivência, segurança e unidade do Afeganistão estão em perigo”, alertou na quarta-feira Abdullah Abdullah, que lidera o Alto-Conselho para a Reconciliação Nacional no Afeganistão. “Com a retirada das tropas estrangeiras, a guerra escalou. Infelizmente, os talibãs tiraram partido disso. A saída das tropas naturalmente deixou um vácuo nalgumas áreas.”

A percentagem de território na posse dos talibãs não é unânime, mas é consensual a perceção de que os domínios islamitas estão a crescer para norte dos tradicionais bastiões de Helmand e Kandahar, a sul.

“Mesmo com as forças internacionais no terreno, os talibãs vinham há muitos anos aumentando a sua influência e controlo de vastas regiões de território”, comenta ao Expresso o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força da NATO no Afeganistão entre 2007 e 2008. “Claro que do ponto de vista militar, a saída dos contingentes internacionais facilita-lhes a vida. Terão de fazer face a um inimigo mais reduzido e com menor capacidade militar.”

Esta semana, o comandante das forças dos EUA no Afeganistão expressou grande preocupação em relação ao futuro imediato do país. “A guerra civil é um caminho que podemos visualizar”, alertou o general Austin S. Miller. “A situação de segurança não é boa.”

Notícias dão conta da reorganização de grupos de antigos mujahedin (que combateram a ocupação soviética e, depois, o regime talibã). Igualmente, sobretudo em áreas habitadas por minorias étnicas, como os hazaras, estão a ser formadas milícias civis contra os talibãs. A perspetiva de grupos armados, organizados com base em lealdades tribais e em torno de “senhores da guerra”, voltarem a pegar em armas para repelir uma crescente insurgência talibã é um filme de terror que o Afeganistão já conhece.

Alemães já estão em casa

O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, estabeleceu o dia 11 de setembro como data final (e simbólica) para a saída das tropas do Afeganistão. A operação deverá ser concluída mais cedo, previsivelmente dentro de dias. Os alemães, que correspondiam ao segundo maior contingente estrangeiro, deixaram o Afeganistão terça-feira.

Quase duas décadas de guerra consagraram o Afeganistão como um atoleiro, onde chegaram a servir em simultâneo 150 mil norte-americanos e onde morreram cerca de 2500. “Falharam muitas coisas” na estratégia americana, analisa Carlos Branco. “Em primeiro, faltou interesse num processo de peace building [construção da paz] logo após a derrota dos talibãs. Os EUA estavam apenas interessados em capturar o Bin Laden e o seu envolvimento inseriu-se no âmbito do contraterrorismo. Isso deu tempo aos talibãs para sarar feridas e recomporem-se.”

“Nunca se quis aceitar que os talibãs são uma força política incontornável”, diz o major-general Carlos Branco

“Quando a natureza do envolvimento internacional alterou-se e evoluiu para a contrassubversão, Washington assumiu que o conflito ia ser resolvido militarmente, nunca se empenhando a sério em encontrar uma solução política. Essa constatação ocorreu demasiado tarde e de forma errada, para resolver o seu problema com os talibãs, mas não o dos seus aliados afegãos, que terão de viver no Afeganistão lado a lado com os talibãs. O diálogo intra-afegão, que devia estar há anos no topo da agenda, é ainda hoje uma miragem.”

A 29 de fevereiro de 2020, o acordo de paz celebrado entre a Administração Trump e os talibãs abriu caminho ao diálogo intra-afegão que decorre em Doha, capital do Qatar, sem o mínimo progresso. Para o Governo de Cabul, a prioridade é obter um cessar-fogo, mas para os talibãs controlar mais territórios significa ganhos políticos.

“Os Estados Unidos vão retirar-se sem uma solução política para o país”, conclui o militar. “Não sabemos como vai ser o próximo governo e a fórmula política para acomodar a futura correlação de forças. Nunca se quis aceitar que os talibãs são uma força política incontornável e que há que contar com eles, seja qual for a solução política. Pensou-se ser possível um Afeganistão sem talibãs. Não só são uma força política importante como não vão desaparecer. É incompreensível que nunca tenha havido uma política orientada para os pashtuns, a etnia [maioritária no país] em que assenta o poder talibã. Foi tudo tratado com muita arrogância. Agora há que lidar com as consequências desses erros.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de julho de 2021. Pode ser consultado aqui