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A vontade de um homem rico continua a cumprir-se 124 anos depois

Um obituário prematuro retratou Alfred Nobel, que fizera fortuna criando e vendendo armas de guerra, como um “comerciante da morte”. Chocado com a sua imagem pública, o sueco destinou parte da sua riqueza àqueles que conferirem “os maiores benefícios à humanidade”. Esta sexta-feira, o Prémio Nobel da Paz será atribuído pela 100ª vez

Os Prémios Nobel têm na sua origem uma imensa fortuna, a última vontade de um homem culto e uma verdade inconveniente: aquele que ainda hoje mais recompensa os esforços de paz em todo o mundo foi um grande fabricante de armas. Ainda hoje, a empresa sueca Bofors e a alemã Dynamit Nobel decorrem de projetos de Alfred Bernhard Nobel.

Nascido em 1833, em Estocolmo (Suécia), cresceu no seio de uma família dedicada à indústria do armamento. O pai, o engenheiro Immanuel, construiu minas subaquáticas para a Rússia, durante a Guerra da Crimeia. Alfred herdou dele a curiosidade científica e investiu na criação de novos tipos de explosivos. Registou 355 patentes a nível internacional, uma das quais a dinamite, que revolucionou a arte da guerra.

Quando os Nobel choraram a morte de Ludwig — o mais velho dos oito filhos de Immanuel e Caroline —, em abril de 1888, um jornal francês publicou um obituário pensando tratar-se de Alfred. “O comerciante da morte morreu”, escreveu-se. “O Dr. Alfred Nobel, que enriqueceu encontrando formas mais rápidas de matar mais pessoas, morreu ontem.”

A cerimónia de atribuição do Nobel realiza-se em Oslo, a 10 de dezembro, data da morte de Alfred. O laureado recebe uma medalha em ouro, um diploma e nove milhões de coroas suecas (quase 830 mil euros) GETTY IMAGES

Confrontado com aquela imagem pública, este homem culto, fluente em cinco línguas e grande estudioso de Química — na tabela periódica, o elemento nobélio foi assim batizado em sua homenagem —, ficou em choque.

Quando morreu, deixou manuscritas quatro páginas repartindo a sua riqueza por familiares, criados e conhecidos, e por um fundo destinado a premiar anualmente “aqueles que, no ano anterior, conferiram os maiores benefícios à humanidade”.

Alfred determinou as áreas a merecer distinção e responsabilizou instituições por esse reconhecimento: os prémios da Física e da Química seriam atribuídos pela Real Academia Sueca das Ciências, o da Fisiologia ou Medicina pelo Instituto Karolinska de Estocolmo e o da Literatura pela Academia de Estocolmo.

Além do processo de paz israelo-palestiniano (1994, na foto), o Nobel já reconheceu outros diálogos políticos: EUA-Vietname (1973), Israel-Egito (1978), África do Sul (1993) e Irlanda do Norte (1998) GETTY IMAGES

Quanto ao prémio destinado ao “campeão da paz”, não seria concedido por uma organização sueca, mas por “um comité de cinco pessoas selecionadas pelo Storting [Parlamento] norueguês”. Esta deferência para com o reino da Noruega decorre de uma realidade política: à época, suecos e noruegueses eram todos súbditos do rei sueco, apesar de os noruegueses terem Constituição e Parlamento próprios.

Por essa altura, o Storting já tinha uma tradição de envolvimento em questões de arbitragem internacional e trabalho feito no âmbito da União Interparlamentar, uma instituição global fundada em 1889. Com alguma naturalidade, Alfred encarrega-o de distinguir “a pessoa que fez mais ou melhor trabalho em prol da fraternidade entre as nações, da abolição ou redução de exércitos permanentes e da realização e promoção de congressos de paz”.

O norte-americano Henry Kissinger (à esquerda na foto, com o Presidente chinês Xi Jinping, em 2018) é o premiado mais antigo ainda vivo. Nesse ano de 1973, o colaureado, o vietnamita Le Duc Tho, recusou o prémio THOMAS PETER / GETTY IMAGES

Desde que foi atribuído pela primeira vez, em 1901, o Nobel da Paz já consagrou 89 homens e 17 mulheres. Aos 17 anos, a estudante paquistanesa Malala Yousafzai (2014) foi o laureado mais jovem de sempre.

Por duas ocasiões, os holofotes incidiram sobre um trio: três homens em 1994 — Yasser Arafat, Shimon Peres e Yitzhak Rabin —, pelo acordo de paz israelo-palestiniano do ano anterior; e três mulheres em 2011 — Ellen Johnson Sirleaf (Presidente da Libéria), Leymah Gbowee (ativista liberiana) e Tawakkol Karman (ativista iemenita).

O “campeão da paz” é, porém, o Comité Internacional da Cruz Vermelha, que já recebeu o Nobel por quatro vezes: três enquanto organização (1917, 1944 e 1963) e uma a título individual, já que o suíço Henry Dunant, cofundador da organização, foi o primeiro galardoado, em 1901. No total, este Nobel já foi entregue a organizações por 27 vezes.

Três laureados estavam presos na hora de receber o Nobel: o jornalista alemão Carl von Ossietzky (1935), a política birmanesa Aung San Suu Kyi (1991) e o ativista chinês Liu Xiaobo (2010), cuja cadeira (na foto) ficou vazia ODD ANDERSEN / AFP / GETTY IMAGES

O Nobel da Paz já foi entregue por 99 vezes. Em 1948, um dos 19 anos em que não foi atribuído, o Comité anunciou que “não havia candidato vivo adequado”. A justificação soou a arrependimento… A 30 de janeiro desse ano, o indiano Mahatma Gandhi tinha sido assassinado. Símbolo mundial do pacifismo, morreu sem nunca ter recebido o prémio.

A embaraçosa ausência de Gandhi na lista de laureados leva a que, no próprio “site” oficial do Nobel, haja uma justificação: “Até 1960, o Prémio Nobel da Paz era concedido quase exclusivamente a europeus e americanos. Em retrospetiva, o horizonte do Comité Nobel Norueguês pode parecer muito estreito. Gandhi era muito diferente dos laureados anteriores. Não era um político ou um defensor real do direito internacional, não era essencialmente um trabalhador humanitário e não era um organizador de congressos internacionais de paz. Ele teria pertencido a uma nova classe de laureados.”

Mahatma Gandhi (1869-1948), sorridente, na companhia das netas Ava e Manu, na Birla House, em Nova Deli, onde o ativista passou os últimos 144 dias de vida GETTY IMAGES

Gandhi parece ser um peso na consciência do Comité Norueguês. Em 1989, quando o Nobel da Paz foi dado a Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama do budismo tibetano, o presidente do Comité disse tratar-se, “em parte, de um tributo à memória de Mahatma Gandhi”.

(FOTO Início do testamento de Alfred Bernhard Nobel, datado de 27 de novembro de 1895 JESSICA GOW / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 10 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui