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Como Guterres foi parar à capa da “Time”

A revista “Time” acompanhou o secretário-geral da ONU num périplo pelo Pacífico onde há países que, face às alterações climática, lutam para não serem engolidos pelo mar. Na capa, António Guterres surge em pose dramática, com a água do Pacífico já pelos joelhos. Mas a mensagem é de esperança: “Os países mais atingidos pelas alterações climáticas estão a lutar — e a obter resultados”, diz a “Time”. E Guterres tem sido um grande aliado

As alterações climáticas não se compadecem com as hesitações políticas dos governantes do mundo e vão desbravando o planeta com violência. Aos poucos, há países que estão, literalmente, a desaparecer do mapa. É a eles que a revista “Time” dedica o tema principal da sua mais recente edição.

Na capa, António Guterres surge na pele de um cidadão de Tuvalu, um dos territórios mais ameaçados pela subida dos oceanos. Com a água do mar pelos joelhos e o rosto carregado, o secretário-geral das Nações Unidas coloca-se na posição dramática que, mais cedo ou mais tarde, afetará qualquer habitante à face da Terra.

“O que tentamos dizer ao mundo é que quando nós nos afundarmos, todas as cidades se afundarão também”, alerta Tuilaepa Malielegaol, primeiro-ministro da Samoa, outro país vulnerável à subida do nível da água do mar.

No artigo da “Time”, Guterres poderia ser também um habitante da aldeia de Vunidogoloa, nas Ilhas Fiji. Outrora uma comunidade com mais de 100 pessoas, a aldeia de Vunidogoloa foi tomada pelo avanço da floresta tropical e das águas salgadas do Pacífico. A vida tornou-se impossível e, há cinco anos, o Governo das Fiji construiu uma cidade nova mais acima na colina. Foi a primeira comunidade nas Fiji a ser relocalizada por causa das alterações climáticas, mas outras 40 já estão sinalizadas e deverão mudar de sítio nos próximos anos. “Penso nas alterações climáticas todos os dias”, diz à reportagem da “Time” o primeiro-ministro Frank Bainimarama.

Em maio passado, António Guterres testemunhou pessoalmente o drama de quatro países do Pacífico Sul durante um périplo que o levou à Nova Zelândia, Ilhas Fiji, Vanuatu e Tuvalu, onde foi feita a fotografia da capa da “Time”. Não foi uma simples visita.

O português tem em mãos a organização de uma Cimeira pela Ação Climática, prevista para setembro, em Nova Iorque, que reunirá chefes de Estado, homens de negócios e líderes da sociedade civil. Com ela, Guterres pretende dar palco às nações mais vulneráveis e levar os países desenvolvidos a comprometerem-se com metas mais ambiciosas, nomeadamente ao nível da redução das emissões de dióxido de carbono.

“Guterres está a trabalhar no sentido de posicionar as pequenas nações insulares não só como o centro político do debate, mas também como o centro moral”, diz a “Time”.

Os pequenos países têm-se mexido com sucesso no sentido de pôr este assunto no mapa político. Articulados, contribuíram para dar forma ao Acordo de Paris de 2015 e para a elaboração de um importante relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, que enfatiza a urgência em limitar o aquecimento do planeta a 1.5º C até 2100.

Podemos ficar sentados a observar, questiona a “Time”

“O relatório chamou mais a atenção do que até a aprovação do próprio Acordo de Paris”, escreve a “Time”, “e inspirou o empurrão para um Green New Deal (Novo Acordo Verde) nos Estados Unidos bem como novos e mais agressivos planos climáticos num punhado de outros países”.

“O sucesso destes países resulta numa grande lição: nenhuma nação pode resolver sozinha um problema tão complexo como as alterações climáticas, mas juntas as nações podem fazer a diferença”, conclui a “Time”. “Podemos ficar sentados a observar as pequenas ilhas do Pacífico a desaparecerem — mas quem acham que será atingido a seguir?”

António Guterres — um entusiasta confesso do multilateralismo — está ativamente empenhado em contrariar essa letargia. É esse o reconhecimento que a “Time” lhe faz.

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As preocupações (e as imagens) de António Guterres durante a viagem que o colocou na capa da “Time”

Fotogaleria: A viagem de António Guterres ao Pacífico Sul

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 14 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui

Cenas mediterrânicas nos (outrora gélidos) Norte e Centro da Europa

Por esta altura do ano, milhares de cidadãos destes oito países costumavam rumar a Sul em busca de calor e momentos de relaxamento junto a piscinas, rios e oceanos. Neste verão, não precisam… têm tudo isso à porta de casa

Uma gigantesca “piscina” junto à Torre Eiffel, em Paris, França BERTRAND GUAY / AFP /GETTY IMAGES
Banhos de sol junto ao canal Kattensloot, em Amesterdão, Holanda REMKO DE WAAL / AFP / GETTY IMAGES
“Praia” com vista para arranha-céus, no centro de Estocolmo, Suécia HOSSEIN SALMANZADEH / AFP / GETTY IMAGES
Praia sobrelotada, banhada pelo Mar Báltico, no município de Timmendorfer Strand, Alemanha FABIAN BIMMER / REUTERS
Mergulhos para a água na cidade costeira de Kastrup, nos arredores de Copenhaga, Dinamarca MADS CLAUS RASMUSSEN / AFP /GETTY IMAGES
Os habituais passeios por Hampstead Heath deram lugar a momentos de relaxamento sobre a relva, em Londres, Reino Unido TOLGA AKMEN / AFP / GETTY IMAGES
Uma mulher pratica remo em pé, no lago Pallasjarvi, na Lapónia, Finlândia OTTO PONTO / LEHTIKUVA / REUTERS
Brincadeiras diferentes para estas crianças belgas, junto aos chafarizes da Place La Monnaie, no centro de Bruxelas NICOLAS MAETERLINCK / AFP / GETTY IMAGES
Praia de Travemuende, norte da Alemanha FABIAN BIMMER / REUTERS

FALTA FOTO 10. Parisienses refrescam-se no Jardim do Trocadéro, França BERTRAND GUAY / AFP / GETTY IMAGES

Praia cheia em… Inglaterra, na zona de Clacton-on-Sea, condado de Essex, banhada pelo Mar do Norte NICK ANSELL / GETTY IMAGES
Saltos para a água nos canais de Amesterdão, Holanda REMKO DE WAAL / AFP / GETTY IMAGES
Casal de turistas em traje de praia tiram uma “selfie” sobre a Ponte do Milénio, em Londres, Reino Unido JONATHAN BRADY / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de julho de 2018. Pode ser consultado aqui

Luta para ficar à tona

As  pequenas ilhas, que raramente prendem as atenções, concentram em si vários dos problemas que afligem a Humanidade, servindo de laboratório para a ONU, que na segunda e terça-feira dedica uma sessão especial à questão 

Vista aérea sobre Malé, a capital das Maldivas, no Oceano Índico SHAHEE ILYAS / WIKIMEDIA COMMONS

As pequenas ilhas — que polvilham o planisfério nas zonas onde, aparentemente, só vemos azul — raramente prendem as atenções. No entanto, elas existem, são aos milhares, muitas são habitadas e têm preocupações “do tamanho do mundo”.

Muitas das vulnerabilidades que afectam estas ilhas advêm quer dos seus contornos físicos quer da sua localização geográfica. Por isso, 41 delas instituíram, em 1990, a AOSIS (Aliança das Pequenas Ilhas Estados), uma organização que, desde então, tem funcionado como um laboratório das Nações Unidas para os problemas mais prementes. Quanto mais não seja porque muitas dessas “dores de cabeça” — as ecológicas, especificamente — serão partilhadas pelos países maiores (e mais desenvolvidos) num futuro não muito distante.

Longe do mediatismo que caracteriza outras reuniões do género — com participantes bem menos discretos — a Assembleia Geral da ONU vai dedicar, na segunda e terça-feira, uma sessão especial às pequenas ilhas e suas especificidades.

As alterações climáticas

Na viragem do milénio, as alterações climáticas constituem uma das principais fontes de preocupação para as pequenas ilhas. O aquecimento global da Terra (entre 1 e 3,5 graus centígrados, até 2100) e a consequente subida do nível do mar (entre 15 e 95 centímetros) colocam estas ilhas na “linha da frente”, como potenciais vítimas das catástrofes naturais.

As ilhas Tuvalu, por exemplo — que são o quinto Estado independente mais pequeno do mundo — correm mesmo o risco de, no próximo século, desaparecerem do mapa. Elas consistem em nove atóis de origem coralinea, habitados por cerca de 9500 pessoas, e o seu ponto mais alto não ultrapassa os cinco metros. Também as Maldivas — um arquipélago com quase 2000 ilhas, onde habitam cerca de 275 mil pessoas e cujo “pico montanhoso” não vai além dos seis metros — poderão ter a mesma “sorte”.

Para agravar a situação, todas as ilhas membros da AOSIS (exceptuando Malta, Chipre, Bahrein e parte das Bahamas) situam-se na região intertropical do Globo, onde o clima é mais quente e mais húmido do que em qualquer outra parte do planeta.

A Ásia-Pacífico, em particular, é a região onde as manifestações naturais decorrentes dos fenómenos “El Niño” e “La Niña” se tem feito sentir, desde há 20 anos, com maior frequência e intensidade. Logicamente, os seus efeitos devastadores ganham maior amplitude quando estão em causa pequenas massas de terra.

Com excepção da Papua Nova Guiné e Cuba, todas as outras ilhas da AOSIS são mais pequenas do que Portugal e mais de metade têm, inclusivamente, um tamanho inferior ao da Grande Lisboa. Em Março de 1982, em virtude do “El Niño”, o arquipélago do Tonga — uma área que, apesar de ser inferior à da ilha da Madeira, detém o recorde mundial de terrenos cultivados (79%) — viu a maior parte das suas colheitas (amêndoa e banana) serem completamente destruídas pelo ciclone “Isaac” que se abateu sobre a Oceania.

Mais recentemente, em Julho de 1998. a província de Sepik, no Noroeste da Papua-Nova Guiné, foi atingida por um forte maremoto, seguido de uma onda gigante de 10 metros de altura, que mataram perto de 2000 pessoas, ou seja, aproximadamente um quinto da população que habitava a região.

A pequenez das ilhas face à agressividade climática contribuiu para que elas tomassem consciência da sua importância ao nível das energias alternativas. Muitos especialistas defendem já que as pequenas ilhas reúnem condições invejáveis para liderar a revolução energética global, através da utilização de fontes “verdes”, tais como a água, o vento e a biomassa.

Em Sukiki, nas Ilhas Salomão, o aproveitamento energético da luz solar, em detrimento das lâmpadas de querosene, foi feito com muito sucesso e com inegáveis benefícios económicos e ambientais para as populações.

O desgaste do turismo

As costas das ilhas são as zonas mais expostas às intempéries. Para além de concentrarem a maior parte da população, elas abrigam os principais recursos económicos — o peixe e o potencial turístico (praias exóticas, águas límpidas e recifes de corais). A sua degradação significa, portanto, um sério revés para a capacidade de sobrevivência das ilhas.

O turismo, em particular, é vital para estas ilhas. Verdadeiros “paraísos na Terra”, quanto mais pequenas, isoladas e longínquas são, mais apetecíveis se tornam. As pequenas praias das Seychelles, por exemplo, atraem, anualmente, mais de 130 mil turistas. Tendo em conta que este arquipélago é constituído por mais de 100 ilhas que, juntas, têm uma área pouco superior a metade da ilha da Madeira e que só tem cerca de 77 mil habitantes, os receios da pressão humana são evidentes e compreensíveis.

Mas nem só a intervenção humana desgasta estes “lugares de sonho”. Também as forças da natureza afastam os turistas. Na ilha de Nevis, por exemplo, a praia de Pinney vem sofrendo uma erosão permanente, desde a década de 70. Periodicamente, mais uma fila de palmeiras é arrancada ao solo e o hotel já forma mesmo uma pequena península no meio do mar. O seu restaurante, com a ajuda do furacão “Luís”, em 1995, perdeu mesmo toda a clientela: um mês após estar pronto, já só via peixes, algas e muita água entrarem pela porta adentro. A UNESCO está ciente destes fenómenos e informou que há regiões insulares no Leste das Caraíbas, onde a erosão das praias e das dunas avança à razão de cinco metros por ano.

Ecossistemas em crise

As populações nativas, nem sempre dão o melhor exemplo aos forasteiros, no que se refere à necessidade imperiosa de manter os ecossistemas em equilíbrio. Inevitavelmente, quem acaba por pagar, directamente, esta cara factura é a biodiversidade das ilhas, que se vê amputada de algumas das suas espécies mais apreciadas.

Neste âmbito, a amplitude da degradação dos bandos de aves nas Caraíbas é particularmente preocupante. O “Pato Sibilante da Índia Oriental”, por exemplo, uma espécie que habita os pântanos de vários países da região, é já considerado uma espécie ameaçada: em Cuba e nas Bahamas, devido à caça ilegal; no Haiti, devido à utilização dos seus “habitats” para o cultivo do arroz; na República Dominicana, por causa dos pesticidas e, na Antígua e Barbuda, devido ao desvaste de extensas áreas de mangais.

O recurso a áreas protegidas é uma solução que algumas ilhas adoptam para salvaguardar a biodiversidade. A Jamaica, por exemplo, já delimitou cinco extensões com esse objectivo, a maior das quais Portland Bight — ocupa quase o dobro da área do Parque Natural da Serra da Estrela. Estabelecida em Abril passado, esta reserva abriga as maiores florestas secas de origem calcária de toda a América Central e Caraíbas. São cerca de 48 quilómetros quase contíguos de mangais, 53 espécies vegetais que só existem na Jamaica e pântanos habitados por aves aquáticas e crocodilos, o símbolo nacional do país.

A falta de água

Rodeadas de água por todos os lados, é difícil perceber em que medida este recurso pode constituir, por si só, um motivo de preocupação para as ilhas. Mas, mesmo as ilhas onde chove abundantemente podem não ter vida fácil.

Por um lado, a sua baixa altitude proporciona que os lençóis freáticos subterrâneos sejam facilmente contaminados, quer por agentes poluidores, quer pela água salgada dos oceanos. Por outro lado, o abastecimento de água às populações implica infra-estruturas de armazenamento e distribuição de vulto, raramente existentes.

Em Tarawa, o atol mais populoso do arquipélago de Kiribati, o acesso às reservas subterrâneas de água doce gerou, em 1996, um conflito, que se arrastou por dois anos, entre a comunidade de Bonkiri e o Governo. Em Tarawa, os cuidados com a água são tais, que já se tornou um hábito ferver toda a água que se bebe. Periodicamente, o dispêndio da água que se consome é racionado, e os filtros para a sua purificação já fazem parte dos utensílios domésticos.

Artigo publicado no Expresso, a 25 de setembro de 1999