Em paz ou em guerra, o Iraque é um tesouro da arqueologia. Cinco portugueses procuram artefactos com 5000 anos
André Tomé tem uma certeza. Se, algures na Síria, se verificar uma destruição de património semelhante à que aconteceu há semanas no Iraque — no Museu de Mossul e nas cidades históricas de Hatra e Nimrud —, haverá uma indignação global nas redes sociais e o conflito voltará a ser notícia. “Mas depois vamos esquecer que, todos os dias, continuam a morrer pessoas”, quando, no fim, “mais do que os tijolos e as pedras, o que interessa são as pessoas”.
As palavras não seriam tão surpreendentes não fosse André um arqueólogo. Falou ao “Expresso” nas vésperas de partir para o Curdistão iraquiano para escavar, pelo segundo ano, no Vale de Bazyan, província de Sulaimaniya. Ali chegou facilmente há uma semana, num voo da Turkish Airlines vindo de Istambul. A viagem de volta a casa está marcada para 15 de junho. André não hesitará em antecipá-la se as condições de segurança se deteriorarem. “Isto não é um Indiana Jones. Ao primeiro sinal de insegurança, repensaremos a estratégia e, se for preciso, voltamos.”
Os combates contra o Daesh (autodenominado Estado Islâmico) estão a mais de 100 km do campo de escavação. O facto de a grande cidade de Kirkuk estar nas mãos dos curdos tranquiliza-o. “Há mais checkpoints, há mais controlo.”
André, de 28 anos, lidera o projeto Kani Shaie, juntamente com outro português, Ricardo Cabral, de 31 anos (ambos da Universidade de Coimbra), e com o belga Steve Renette, da Universidade da Pensilvânia (EUA). Kani Shaie é uma região atravessada ao longo da História por grandes rotas entre oriente e ocidente que permanece “terra incógnita”, desconhecida do ponto de vista arqueológico. O objetivo do projeto é recolher vestígios do quarto milénio antes de Cristo, quando se formaram as primeiras cidades da civilização mesopotâmica.
A missão arrancou em 2013, com dinheiros portugueses, e logo confirmou o potencial do sítio. Entre os achados, André salienta uma pequena tábua de argila furada, com imagens de animais, que funcionaria como “uma espécie de fatura” entregue, provavelmente, por um mercador que transportava animais ao destinatário.

A descoberta motivou a equipa para continuar, este ano com financiamento exclusivamente norte-americano, no futuro logo se verá. “Não sabemos o que vai acontecer ao Curdistão. Agora está bem, mas imaginemos que o Estado Islâmico é eliminado, que os curdos avançam para a independência e que há um conflito entre Bagdade e Erbil… Que acontecerá a esses sítios? Temos essa urgência, não de super-herói, mas de alguém consciente de que é importante fazer algo.”
Além dos líderes, integram a equipa mais três portugueses e uma antropóloga italiana. Dois arqueólogos curdos acompanham os trabalhos. O projeto emprega locais e colabora com a Direção de Antiguidades de Sulaimaniya, a Universidade e o museu, onde os achados ficam guardados.
Visitar o sítio com óculos 3D
Além das escavações, a missão vai recolher imagens do sítio. “Temos trabalhado na área da realidade aumentada. Queremos fazer uma espécie de museu virtual, onde seja possível visitar o sítio com um alto grau de realismo. Estamos a testar óculos 3D para que as pessoas sintam que estão lá”, sem necessidade de reconstrução.

André não é um purista. Considera que perante a destruição de património, reconstruir ou não deve ser analisado consoante os casos. “Em relação aos budas de Bamiyan, no Afeganistão, acho que devem ser reconstruídos. Podem ser um garante de estabilidade e futuro naquela região, incentivando o turismo. Noutros casos, pode não interessar tanto até porque as destruições passaram a fazer parte da memória. Vemos o EI destruir património dos assírios, depois pensamos e vemos que os assírios fizeram exatamente a mesma coisa”, diz o arqueólogo. “Não podemos ser tão fanáticos e puristas como o Estado Islâmico.”
André Tomé estreou-se a escavar na região em 2008, após concluir os estudos na Universidade de Coimbra. Começou pela Síria num sítio na província de Hasakah que tem, hoje, as milícias do EI a um quilómetro de distância. Os jiadistas preocupam-no, mas recorda que há mais de 700 sítios arqueológicos ilegais na Síria e no Iraque. “Há tempos, vi umas entrevistas a pessoas que faziam essas escavações. Sabiam que estavam a destruir o passado mas diziam que precisavam de dinheiro para comer. Isto tem de ser compreendido.” Ainda que a história desses locais se perca para sempre.
(Foto de abertura: Sítio arqueológico no Vale de Bazyan PROJETO KANI SHAIE)
Artigo publicado no “Expresso”, a 9 de maio de 2015
