Arquivo da Categoria: Balcãs

O rastilho voltou a acender-se no barril de pólvora chamado Kosovo

No norte do território, confrontos entre populações sérvias e polícias albaneses feriram 30 membros da força militar internacional. A NATO vai enviar mais 700 efetivos

Mapa do Kosovo pintado com a bandeira da Sérvia WIKIMEDIA COMMONS

Aos quinze anos de vida, o Kosovo faz jus à problemática região dos Balcãs, onde se insere, e acumula tensão atrás de tensão. Subsistem feridas abertas desde que esta antiga província sérvia de maioria albanesa (muçulmana) cortou amarras com a Sérvia (cristã), de forma unilateral, a 17 de fevereiro de 2008. Os problemas sentem-se com particular intensidade no norte do Kosovo, onde populações de origem sérvia resistem a obedecer às autoridades de Pristina. Esta semana, a violência voltou-se contra a missão da NATO, no território há 24 anos.

1. O que está na origem da mais recente tensão?

Um imbróglio político saído das eleições locais de 23 de abril, em quatro municípios do norte do Kosovo, onde a maioria da população é de origem sérvia: Leposavic, Mitrovica Norte, Zubin Potok e Zvecan. Estes sérvios, que não reconhecem o Governo de Pristina (capital do Kosovo) e são informalmente apoiados pelo de Belgrado (Sérvia), boicotaram o escrutínio, reduzindo a taxa de afluência às urnas para míseros 3,47%. Dos 45.095 eleitores, votaram 1566 albaneses e 13 sérvios. Todos os autarcas eleitos são albaneses e têm a legitimidade ferida. “Foram eleitos por apenas 3,5% dos eleitores. Não têm credibilidade alguma”, diz ao Expresso o major-general Raul Cunha, que foi conselheiro militar do representante especial no Kosovo do secretário-geral das Nações Unidas, entre 2005 e 2009.

2. O que levou à erupção de violência esta semana?

Na segunda-feira, os autarcas eleitos tentaram assumir funções. “O primeiro-ministro do Kosovo, de forma abusiva, resolveu levar avante a tomada de posse desses autarcas, com a proteção da polícia do Kosovo”, continua o militar. No exterior dos edifícios concentraram-se populações sérvias em protesto. A violência entre a polícia albanesa e populações sérvias eclodiu com maior intensidade em Zvecan, cerca de 45 quilómetros a norte de Pristina, onde o autarca eleito obteve 114 votos num universo de 6998 eleitores. “No meio da manifestação, houve disparos feitos pela polícia do Kosovo, foram feridos sérvios e a partir daí a situação ficou descontrolada”, diz Cunha. Além de 52 manifestantes, ficaram feridos 30 militares da Força do Kosovo (KFOR) — 19 húngaros e 11 italianos —, uma missão militar internacional de manutenção da paz liderada pela NATO e presente no território desde 1999.

3. Entre as eleições e os confrontos, nada foi feito?

No mês passado, a União Europeia chamou a si a tarefa de mediar o estabelecimento da Associação de Municípios de Maioria Sérvia, um órgão aceite por Belgrado e Pristina no Acordo de Normalização assinado a 19 de abril de 2019 (que não contempla o reconhecimento do Kosovo independente pela Sérvia), mas que nunca foi avante. “Discordo fundamentalmente da proposta”, atirou o primeiro-ministro kosovar, Albin Kurti, nas negociações em Bruxelas, em que participaram o Presidente sérvio, Aleksandar Vucic, e o alto-representante da UE para Relações Exteriores, Josep Borrell. “A proposta representa o desejo de uma República Srpska no Kosovo.” A República Srpska é a entidade política sérvia na Bósnia-Herzegovina, que desafia repetidamente a legitimidade do Estado.

4. Por que razão a violência se voltou contra a NATO?

“A força internacional protegeu a ocupação dos edifícios pelos autarcas albaneses e os sérvios entenderam que essa atuação da KFOR foi contra eles”, explica Raul Cunha. No papel, a KFOR tem por missão “manter um ambiente seguro e protegido”. Porém, neste episódio, “a sua atuação perturbou até a segurança. A KFOR, em vez de dizer ao primeiro-ministro do Kosovo para retirar de lá os autarcas, protegeu os edifícios, onde também já estava a polícia do Kosovo”. O militar português recorda que, na época em que o Kosovo estava ainda sob a tutela das Nações Unidas (1999-2008), “havia o cuidado de colocar polícias sérvios nos municípios onde os sérvios eram maioria, mas agora não. Se mandam para lá as forças de intervenção da polícia kosovar, está visto que vai haver problemas. Se a seguir vai a KFOR proteger as forças de intervenção da polícia do Kosovo, pior ainda”.

5. A NATO vai enviar mais 700 soldados. O que muda?

Esse contingente significa um reforço substancial dos cerca de 4000 efetivos (de 28 países) atualmente em missão. Mas, alerta Raul Cunha, “não resolve nada”. Além da polícia, no território há as Forças de Segurança do Kosovo, uma espécie de exército. “Estou convencido de que as forças da NATO não terão capacidade para as enfrentar. Se colocarmos na equação o exército da Sérvia, então os 700 homens da NATO vão resolver zero. É um sinal de força, mas para quê? O que tem de acontecer é a desmobilização de toda a tensão, o que só será possível se houver pressão por parte de quem tem essa capacidade, que são os Estados Unidos, sobre o Governo do Kosovo, levando-o a cumprir aquilo que está acordado.”

6. Como reagiram os EUA, sólido aliado do Kosovo?

Entre o coro de condenações à violência e apelos à inversão na escalada, foi surpreendente a posição dos Estados Unidos, que foram dos primeiros países a reconhecerem a independência do Kosovo e que têm estado ao seu lado desde então. “A decisão do Governo do Kosovo de forçar o acesso aos prédios municipais aumentou as tensões de forma drástica e desnecessária”, reagiu o secretário de Estado, Antony Blinken. O Kosovo “deve garantir que os autarcas eleitos cumpram as suas funções de transição em locais alternativos fora dos prédios municipais e deve retirar as forças policiais das imediações”. Em paralelo, Washington cancelou a participação do Kosovo em exercícios militares da NATO. Pristina acusou a “reação exagerada” do amigo americano.

7. Porque é o Kosovo tão importante para a Sérvia?

A pergunta poderia ser endereçada ao tenista sérvio Novak Djokovic, que esta semana, após vencer a primeira partida no torneio de Roland-Garros, escreveu na lente da câmara que transmitia em direto: “O Kosovo é o coração da Sérvia. Parem com a violência.” Ao mesmo tempo que apelou à trégua, o nº 1 do mundo deitou combustível na fogueira ‘anexando’ o Kosovo. Para qualquer sérvio, o Kosovo é a terra de origem da sua nacionalidade. “Há território no Kosovo que devia continuar na Sérvia. É como se nós ficássemos sem Guimarães para ficar integrado na Galiza”, compara Cunha, que aponta o dedo ao Ocidente. “Aquando do cessar-fogo após os 78 dias de bombardeamentos da NATO à ex-Jugoslávia, em 1999, em defesa dos albaneses do Kosovo, celebrou-se o Acordo de Kumanovo, que previa que militares da Sérvia garantissem a segurança de populações sérvias no Kosovo e, sobretudo, de lugares de culto: mosteiros ortodoxos, igrejas, o patriarcado. A KFOR nunca deixou que regressassem.”

8. Que solução para o Kosovo?

“O Kosovo não faz sentido como país, faz sentido se a maioria do território do Kosovo se juntar à Albânia”, defende Cunha, autor do livro “Kosovo, a Incoerência de uma Independência Inédita”. Enquanto esta ou outra fórmula não convencerem as partes, a questão continuará a minar a afirmação internacional dos dois países: sem pleno reconhecimento internacional, o Kosovo não consegue aderir à ONU; sem reconhecer o Kosovo, a Sérvia não entra na UE.

Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de junho de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Ruas bloqueadas no Kosovo, forças em prontidão na Sérvia: as razões de fundo da mais recente tensão numa relação turbulenta

Catorze anos após o Kosovo declarar unilateralmente a sua independência da Sérvia, a minoria sérvia do país continua a desafiar as autoridades de Pristina. O recurso a camiões para bloquear estradas do território, em protesto contra decisões das autoridades kosovares, mais não é do que uma forma de afirmação da soberania de Belgrado sobre partes do país

Mapa do Kosovo com as comunidades sérvias assinaladas a azul e as albanesas a amarelo, integrante do Acordo de Bruxelas de 2013, que foi o primeiro acordo de princípios relativo à normalização das relações entre a Sérvia e o Kosovo WIKIMEDIA COMMONS

Antes da invasão russa da Ucrânia, a última grande guerra na Europa foi travada no território da antiga Jugoslávia. O desmembramento deste Estado originou sete novos países, processos de independência sangrentos e feridas que não cicatrizam — a mais grave das quais chama-se Kosovo.

Esta antiga província sérvia de maioria albanesa (muçulmana) declarou a sua independência da Sérvia (cristã ortodoxa) de forma unilateral em 2008. Desde então, o reconhecimento internacional tem sido a grande prioridade da diplomacia kosovar.

O país já solicitou adesão à União Europeia (mas não é reconhecido pela totalidade dos 27 membros) e sonha com o estatuto de primus inter pares na comunidade internacional (mas ainda não faz parte das Nações Unidas).

Quanto à sua segurança, está dependente da presença militar internacional no território (como a KFOR, a missão da NATO que está no Kosovo desde 1999).

No terreno, o Kosovo é um território envolto em tensão permanente. Esta terça-feira, a temperatura subiu uns graus após populações da minoria sérvia do país erguerem novas barricadas nas ruas da região de Mitrovica (norte), numa ação de protesto que dura há semanas.

Horas antes, a Sérvia havia colocado exército e polícia em “completo estado de prontidão de combate”, temendo que as autoridades do Kosovo pudessem recorrer à força para retirar as barricadas e desobstruir as ruas que ligam as zonas sérvia e albanesa da cidade.

“Todas as medidas serão tomadas para proteção do povo sérvio no Kosovo”

Bratislav Gasic, ministro do Interior da Sérvia

O recurso a grandes camiões atravessados nas ruas e outras formas de barricadas é uma forma de protesto recorrente, em especial na parte norte do Kosovo, onde vive uma minoria de cerca de 50 mil sérvios.

Estes não reconhecem o Estado do Kosovo e declaram lealdade à Sérvia. No dia a dia, sentem-se motivados a cumprir as leis ditadas por Belgrado e rejeitam com orgulho as ordens que emanam de Pristina.

Distribuição das populações sérvias no Kosovo, em 1948 WIKIMEDIA COMMONS

A origem da atual tensão entre Sérvia e Kosovo reside num procedimento burocrático decidido, em agosto, pelo Governo do Kosovo que determinou que os carros dos sérvios kosovares passariam a ter matrículas com as letras RKS (uma sigla decorrente do nome do país: República do Kosovo).

Esta nova lei contraria a prática em vigor desde 1999, segundo a qual as viaturas da minoria sérvia circulam com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como KM para residentes em Kosovska Mitrovica ou PR para moradores em Pristina.

Apesar de as considerar ilegais, o Kosovo tem-nas tolerado — até agora. No mês passado, autarcas sérvios de municípios do norte, juízes e centenas de polícias demitiram-se em protesto contra esta lei das matrículas.

“O Kosovo não pode dialogar com gangues criminosos e a liberdade de movimento deve ser restabelecida. Não deve haver barricadas em nenhuma estrada”, defendeu o Governo kosovar, num comunicado divulgado na segunda-feira.

O documento acrescenta que a polícia do Kosovo está em condições de remover as barricadas, aguardando apenas autorização da força de manutenção de paz da NATO no território (KFOR).

A pensar na neutralidade a que a KFOR está obrigada, a Sérvia, por seu lado, solicitou à NATO a deslocação de mais de 1000 efetivos para o norte do Kosovo para proteger os sérvios kosovares de eventuais situações de assédio por parte dos albaneses.

Para acentuar a tensão, tudo acontece numa época festiva e especialmente sagrada para os sérvios. Em jeito de prenúncio de uma possível escalada, na segunda-feira, o Kosovo recusou a entrada no país ao Patriarca Porfírio da Sérvia.

A dias de os sérvios (tal como os russos) celebrarem o seu Natal, a 7 de janeiro, o líder da Igreja Ortodoxa Sérvia tencionava levar aos sérvios kosovares uma mensagem de paz. No atual contexto, qualquer intenção de paz bem pode transformar-se num rastilho para a guerra.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Receios 20 anos após a guerra

Invasão da Ucrânia pode reavivar problemas na antiga Jugoslávia. Sérvia e Bósnia são os países mais vulneráveis

Antes da invasão russa da Ucrânia, a última grande guerra na Europa travou-se nos Balcãs Ocidentais (1991-2001), desencadeada pelo desmembramento da Jugoslávia. Hoje, o nível de conflitualidade na região permanece baixo, mas subsistem problemas que tornam os receios de desestabilização reais. “Há muitos problemas em curso e a guerra na Ucrânia reforça alguma instabilidade existente. Não se pode dizer que vai haver guerra nos Balcãs Ocidentais, mas veremos cada vez mais tensões”, diz ao Expresso Florent Marciacq, codiretor do Observatório dos Balcãs, da Fundação Jean Jaurès (Paris).

No grupo dos países mais vulneráveis está a Sérvia, que aspira ao melhor de dois mundos incompatíveis: relação próxima com a Rússia, assente numa matriz cristã ortodoxa, e adesão à União Europeia — a Sérvia é candidata desde 2012. “A pressão para que a Sérvia se alinhe é muito alta, agora, e quanto mais sanções são adotadas contra a Rússia, mais pressão há. O problema é que, internamente, a Sérvia sempre valorizou muito a amizade com a irmã Rússia, e Vladimir Putin é muito popular no país. Para os políticos sérvios, qualquer sanção ou argumento contra a Rússia é uma total contradição da relação que vêm construindo há décadas.”

Moscovo tem sido um aliado fundamental de Belgrado na questão do Kosovo, a antiga província sérvia de maioria albanesa, que declarou a independência em 2008 e é hoje reconhecida por menos de metade dos países do mundo, o que constitui um obstáculo à sua adesão à ONU. Como explica ao Expresso Pascoal Pereira, professor na Universidade Portucalense, a questão do Kosovo, no presente contexto de invasão russa da Ucrânia, pode levar a um afastamento da Sérvia em relação à Rússia.

Duas datas críticas

“Moscovo tem sido dos principais apoios de Belgrado na defesa da soberania sérvia sobre o Kosovo. Esse apoio assenta no princípio da integridade territorial e da inviolabilidade das fronteiras internacionais, que as forças aliadas ocidentais teriam violado gravemente com a intervenção militar [da NATO] de 1999, da qual decorreu a declaração unilateral de independência pelo Kosovo. Ora, os atos da Rússia na Ucrânia são contrários a esse quadro de defesa do direito internacio­nal”, diz o docente português. “A Sérvia pode ficar ainda mais isolada na sua oposição à independência do Kosovo.”

Outro país balcânico com potencial de desestabilização é a Bósnia-Herzegovina, dividida em duas entidades políticas: a Federação da Bósnia-Herzegovina e a República Srpska, esta última de maioria sérvia, com aspirações separatistas e liderada por um próximo de Putin. “Há uma convergência de narrativas”, comenta Marciacq. “E Milorad Dodik [líder sérvio bósnio] usa um pouco estes sentimentos antiocidentais da Rússia para legitimar a sua reivindicação de secessão”, que ecoa bem em Moscovo.

Em outubro passado, Dodik anunciou a saída da República Srpska das forças de segurança, do sistema judicial e da administração tributária federais, prevista para junho próximo. Outra data crítica será 3 de novembro, quando o Conselho de Segurança da ONU for chamado a renovar o mandato da EUFOR, a missão de manutenção de paz da UE na Bósnia. “A Rússia tem direito de veto”, conclui o francês. “Se disser não, coloca em risco a estabilidade de todo o país.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de março de 2022