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Corrida contra o tempo para proteger os rohingya do coronavírus

Ainda não há casos de covid-19 dentro dos campos de refugiados rohingya no Bangladesh, mas é questão de tempo. Manuel Pereira, português que coordena o trabalho humanitário da Organização Internacional para as Migrações nos campos, explica ao Expresso o que está a ser feito para tentar aguentar o embate

Para um povo habituado a viver sob o signo do drama, como são os rohingya, a pandemia de covid-19 é apenas mais uma de muitas adversidades. O novo coronavírus ainda não entrou nos campos de refugiados desta minoria muçulmana de Myanmar (antiga Birmânia), mas está cada vez mais próximo.

No país que os acolhe, o Bangladesh, há 7103 casos confirmados e 153 mortos, e no distrito de Cox’s Bazar, onde estão localizados os campos, os casos positivos (que ainda são apenas 13) aumentam de dia para dia.

“O encerramento de fronteiras e as medidas de confinamento decretadas pelo Governo do Bangladesh contribuíram para atrasar a chegada do coronavírus aos campos”, diz ao Expresso Manuel Pereira, chefe de missão adjunto da Organização Internacional para as Migrações (OIM) no Bangladesh.

“Além disso, foi reduzida a presença de não-residentes dentro dos campos e está-se a desenvolver programas de sensibilização e distanciamento social para mitigar contactos e possíveis transmissões, até termos melhores condições de resposta médica.”

Cox’s Bazar é o distrito mais ao sul do Bangladesh. A importação de contágios está dependente da evolução do surto no resto do país. “As autoridades estão a limitar os movimentos para o distrito, o que é positivo”, diz o português, de 41 anos, natural de Lisboa. “Cox’s Bazar está isolado, com movimentos condicionados também para refugiados e pessoal humanitário, sobretudo ao nível das entradas e saídas dos campos.”

No Bangladesh, os campos ocupam uma área de cerca de 24 quilómetros quadrados e dão abrigo a 859.161 rohingyas (números de março da OIM). A esmagadora maioria — 708.985 — chegou à região após 25 de agosto de 2017, quando começou, em Myanmar, uma violenta campanha de perseguição à minoria muçulmana. Manuel Pereira alerta que nos campos, “o isolamento social é muito difícil, devido à grande densidade populacional”.

Na semana passada, como 1800 milhões de muçulmanos em todo o mundo, os rohingya começaram a cumprir o Ramadão, o nono mês do calendário islâmico, que obriga à prática do jejum desde o nascer até ao pôr do sol. Diariamente, a provação é quebrada pelo iftar, refeição comunitária que junta muita gente à volta da mesa.

Nos campos, “o iftar é feito em família e em comunidade, em horários diferentes. Como ainda não há casos positivos, existe alguma flexibilidade. Mas tentamos sensibilizar os líderes religiosos para que seja feito o distanciamento social e a celebração decorra sobretudo ao nível da família”.

Quem canta o vírus espanta

Sensibilizar é a palavra de ordem da OIM nos campos rohingya. A organização tem em curso campanhas de promoção de hábitos de higiene destinadas aos refugiados, mas também às populações dos aglomerados envolventes aos campos.

As recomendações são transmitidas porta a porta, em sessões ao ar livre envolvendo pequenos grupos, nas distribuições de ajuda humanitária (comida e bens não alimentares) ou durante as sessões de apoio psicossocial. A Internet, que podia ser um aliado neste contexto, está cortada desde setembro de 2019 por “motivos de segurança”, diz o Governo de Daca.

“A falta de Internet não permite aos refugiados comunicarem a partir de casa ou indiretamente com o pessoal humanitário”, diz Manuel Pereira. “Além disso, limita as ações de sensibilização e pode fomentar a consolidação de boatos que circulem em pequenos núcleos onde as nossas campanhas ainda não tenham chegado.”

Estar desligado na Rede dificulta a partilha de vídeos como este, onde o artista Muhammed Taher, refugiado rohingya, interpreta uma canção da sua autoria, de consciencialização para o coronavírus. O músico é apoiado pelo Centro de Memória Cultural, programa da OIM que compila mais de 600 artefactos, práticas e perfis representativos do património cultural deste povo.

FALTA VÍDEO!!!!

As campanhas de sensibilização da OIM ensinam a lavar as mãos como um profissional, explicam o conceito de distância social, ajudam a identificar os sintomas da doença, orientam as pessoas na procura de cuidados médicos e esclarecem para combater boatos. “Alguns acham que é um inseto que provoca a doença e que pode ser morto com facilidade. Outros pensam que todos os infetados morrem”, diz Manuel Pereira.

O português, formado em Engenharia do Ambiente e que começou a trabalhar para as Nações Unidas em 2006, em Timor-Leste, considera que os rohingya são um povo disciplinado que escuta e tenta acatar os conselhos. “São pessoas muito afáveis e, como é natural, estão muito preocupadas e pedem informação e apoio.”

Nesta ação de formação da OIM, um grupo de homens rohingya aprende a tossir para o braço, no campo de Jadimura, no Bangladesh ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES (OIM)

Numa corrida contra o tempo, a OIM — principal prestadora de cuidados de saúde nos campos — está a criar espaços de isolamento para doentes de covid (refugiados ou oriundos das comunidades locais), a dar formação específica sobre a doença a pessoal dos seus 35 centros de saúde, a distribuir equipamento de proteção individual aos profissionais que estão na “linha da frente” e a aumentar o número de locais para ser medida a temperatura do corpo.

“Neste momento, os testes às populações estão centralizados nos serviços de saúde do Governo, uma vez que ainda há poucos”, explica o português. “Reportamos casos suspeitos e até agora, felizmente, não houve nenhum positivo.”

A OIM está também a tentar antecipar o mais possível a necessidade de tratar doentes com alguma gravidade. “Os parceiros humanitários e o Governo do Bangladesh estão a aumentar, a reforçar e a criar estruturas para tratamento de casos graves entre os refugiados. A compra de equipamento, construção de instalações temporárias, formação de pessoal e contratação de outros mais está a ser acelerada. Ajudamos o Governo para podermos ter capacidade de resposta aos casos mais graves sem sobrecarregar em demasia o sistema nacional de saúde. As limitações são muitas, a nível financeiro, logístico e de recursos humanos, mas continuaremos esta batalha para salvar vidas.”

Funcionários da OIM preparam um centro de isolamento para suspeitos de infeção com covid.19, no campo rohyngya de Leda ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES (OIM)

Trabalhar no apoio aos rohingya significa estar em alerta simultâneo a mais do que uma emergência. Neste momento, paralelamente à pandemia de covid-19, os olhos voltam-se também para os céus.

“A primeira época dos ciclones já começou. Nos próximos seis meses, vamos viver um período de potenciais ciclones e de monção, com muita chuva e ventos fortes”, prevê Manuel Pereira. “Esperemos que não se formem ciclones na Baía de Bengala. Se conseguirmos gerir bem a evolução da covid-19, ou mesmo limitar as contaminações dentro dos campos, podemos continuar a operar dentro dos procedimentos de resposta de emergência que aperfeiçoamos nos últimos dois anos. Caso contrário, teremos de fazer adaptações significativas para garantir serviços e proteção para todos.”

(FOTO PRINCIPAL Nesta fila de distribuição de garrafas de gás, num campo de refugiados rohingya de Cox’s Bazar, no Bangladesh, cumpre-se o distanciamento social ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES — OIM)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui